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Rumo a uma nova visão do setor postal

Maria Neuenschwander Escosteguy Carneiro

A missão do Supremo Tribunal Federal é precipuamente zelar pela interpretação que conceda à Constituição a maior eficácia possível, diante da realidade que se apresenta. A essência do passado deve ser aproveitada para que dela se tire valiosas lições, mas não, para aprisionar o futuro. O sentido das normas é condicionado pela evolução da vida em sociedade.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Atualizado às 07:51


Rumo a uma nova visão do setor postal



Maria Neuenschwander Escosteguy Carneiro*


A missão do Supremo Tribunal Federal é precipuamente zelar pela interpretação que conceda à Constituição a maior eficácia possível, diante da realidade que se apresenta. A essência do passado deve ser aproveitada para que dela se tire valiosas lições, mas não, para aprisionar o futuro. O sentido das normas é condicionado pela evolução da vida em sociedade.


A história é pródiga em demonstrar, por meio de diversos exemplos, que a noção mais adequada de serviço público não está vinculada à essência do objeto, mas é consequência de uma necessidade historicamente determinada de maior ou menor intervenção do Estado em certa esfera da economia.


Em seu voto na ADPF 46, ajuizada pela ABRAED, o Ministro Relator Marco Aurélio conta a seguinte estória da mitologia grega: no caminho para Atenas, havia um ladrão chamado Procrusto que, além de assaltar os que passavam, atemoriza os transeuntes com um teste cruel: deveriam estes deitar-se em um leito - o "Leito de Procrusto" - e, caso nele coubessem, poderiam continuar o caminho. Contudo, se fossem maiores, Procrusto lhes cortava a cabeça, a fim de se amoldarem à armação. Se fossem menores do que o leito, seriam espichados até poderem conformar-se à superfície.


Esta analogia com a mitologia grega revela o que não se deve deixar que aconteça com o setor postal. Nas palavras do próprio Ministro: "Não se pode transformar a Carta da República no 'Leito de Procrusto' e, assim, espichar ou diminuir o alcance das normas conforme se fizer necessário para que se julgue constitucional certa lei ou ainda determinada política de governo que se queira defender.Os intérpretes do Diploma Maior devem zelar para que este se mantenha íntegro, forte, para que os princípios constitucionais, tão caros à Democracia, sejam sempre analisados em conjunto, a fim de manter a unidade de uma Lei Fundamental que efetivamente represente o espírito de seu povo."


Em 17 de novembro de 2005, prosseguindo o julgamento da ADPF nº 46, votaram os Ministros Joaquim Barbosa e Cezar Peluso pela improcedência total da arguição, na linha do voto proferido pelo Ministro Eros Grau, sob o argumento principal de que o serviço postal é público, devendo respeitar o interesse geral da coletividade e não se lhes aplicando os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. O Ministro Gilmar Mendes votou pela procedência parcial da ADPF, acompanhando o voto divergente do Ministro Eros Grau e, quanto aos arts. 42 a 45 da Lei nº 6.538/78, que tratam dos crimes de violação do privilégio postal, reputou-os inconstitucionais, em razão da violação ao princípio da reserva legal.


Para o Ministro Joaquim Barbosa, a correta interpretação do verbo "manter", disposto no art. 21, X CF/88, seria assegurar a execução do serviço, pela União, em todo o território nacional. Além disso, continuou o Ministro, afirmando que a Lei nº 6.538/78 define claramente "carta", não havendo como excluir deste conceito as faturas, boletos bancários, e demais correspondências correlatas.


Por sua vez, em linha de argumentação distinta, votou o Ministro Carlos Ayres de Britto pela procedência parcial da ADPF estabelecendo que o serviço postal é serviço público não passível de transpasse à iniciativa privada, sendo que a CF trata o serviço postal de forma diferenciada para favorecer a comunicação privada entre pessoas, o sigilo de correspondência epistolar e telegráfica e a integração nacional.


A questão, para o Ministro Carlos Ayres, deve cingir-se à caracterização da correspondência epistolar como de caráter privado. E, em tendo caráter privado, a exclusividade da União deve restar circunscrita às atividades que impliquem comunicação privada telegráfica. Portanto, a recepção da Lei nº 6.538/78 pela CF/88 restringiu-se às atividades relacionadas à entrega de cartas e correspondência agrupada (tal como disposto na lei), devendo as encomendas e correspondências de caráter mercantil ser excluídas do regime de exclusividade.


O julgamento foi mais uma vez suspenso em decorrência do pedido de vista da Ministra Ellen Gracie.


Parece-me todavia, na linha do que venho sustentando, que não há como atribuir ao serviço postal outra natureza que não a de serviço público. E, sendo serviço público, não há que se falar em monopólio. É bem verdade, também, nos termos do voto do Ministro Joaquim Barbosa, que não é da competência do STF "quebrar o monopólio", o que, se houver que ser feito, é da atribuição do legislador ordinário.


O tratamento jurídico mais adequado que deve ser dado ao setor postal é aquele sinalizado pelo Ministro Carlos Ayres de Britto: é o serviço postal um serviço público e deve o Poder Público regular, por meio do legislador ordinário, a forma de exploração do serviço, em suas diversas modalidades, restando fora da exclusividade da União as correspondências de caráter mercantil e encomendas.


O que deve ser evitado é deixar o setor da forma como se encontra, regulamentado por uma legislação ordinária que não abarca todas as modalidades de exploração dos serviços postais.


Nas palavras de Chico Buarque, "A História é um carro alegre/Cheio de um povo contente/Que atropela indiferente/Todo aquele que a negue". Aguardemos os votos dos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal...

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*Advogada do escritório Siqueira Castro Advogados









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