Rotulagem de transgênicos: uma nova regra
Em 25.4.2003, foi publicado o Decreto nº 4.680, que, de um lado, revogou o Decreto nº 3.871, de 31.12.2001 ("Decreto nº 3.871/01"), e de outro, alterou sensivelmente o rumo da opção brasileira para o regramento da rotulagem de produtos que contenham ou sejam elaborados com OGMs - Organismos Geneticamente Modificados.
segunda-feira, 19 de maio de 2003
Atualizado em 16 de maio de 2003 13:35
Rotulagem de transgênicos: uma nova regra
Beatriz M.A. Camargo Kestener
Fernando Ayres Gimenez*
1. - Em 25.4.2003, foi publicado o Decreto nº 4.680, de 24.4.2003 ("Decreto nº 4.680/03"), que, de um lado, revogou o Decreto nº 3.871, de 31.12.2001 ("Decreto nº 3.871/01"), e de outro, alterou sensivelmente o rumo da opção brasileira para o regramento da rotulagem de produtos que contenham ou sejam elaborados com OGMs - Organismos Geneticamente Modificados, ou comumente conhecimentos como transgênicos. Decreto nº 4.680/03 insere-se no bojo de uma série de regulamentos para a comercialização da soja, especialmente, no território nacional, como se verá adiante.
I. - O DECRETO Nº 4.680/03
2. - Pela nova ordem legal, todos os produtos alimentícios destinados ao consumo humano e animal, aí incluídos os ingredientes, aditivos e coadjuvantes de tecnologia elaborados a partir de plantas, animais ou microorganismos geneticamente modificados (enzimas, ácidos orgânicos, corantes, etc.), que contiverem mais de 1% desses produtos em sua composição, deverão trazer no rótulo essa informação para conhecimento do consumidor.
3. - A finalidade da norma é regulamentar o direito à informação assegurado aos consumidores pela Lei nº 8.078, de 11.9.19901, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), tornando obrigatória a rotulagem de qualquer alimento que contenha ou tenha sido produzido a partir de OGM, com presença acima de 1% de sua composição.
4. - O Decreto nº 4.680/03 também alterou a regra então vigente no bojo do Decreto nº 3.871/01, que exigia a rotulagem apenas dos alimentos embalados, destinados exclusivamente ao consumo humano. Atualmente, quer embalados, quer à granel, quer destinados ao consumo humano, quer destinados à alimentação animal, todos os produtos que contenham mais de 1% de ingredientes produzidos a partir de OGMs em sua composição deverão conter a informação na respectiva rotulagem. Mais ainda, até mesmo os alimentos de origem animal, originados de animais que tiverem ingerido ração com OGM, também deverão ser rotulados. Estabelece o art. 2º do Decreto:
"Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto"
.5. - Conquanto a redação da norma pudesse ser mais clara, referida disposição foi, depois, complementada pelos §§ 1º a 4º do mesmo artigo, para esclarecer que a vocação da regra é estabelecer um novo e bem mais severo limite aceitável à presença de produtos produzidos a partir de OGMs em uma partida do produto equivalente, obtido por técnicas convencionais.
6. - O cálculo desse limite será de 1% do volume do produto como um todo, revogada que foi também a regra anterior que previa a hipótese de o produto ser constituído por mais de um ingrediente geneticamente modificado, quando então o limite deveria ser individualmente considerado para cada ingrediente isolado.
7. - Se o produto contiver mais de 1% de ingrediente produzido a partir de OGMs na sua composição, no respectivo rótulo deverá constar, em destaque, uma das seguintes expressões: "'(nome do produto) transgênico', 'contém (nome do ingrediente ou ingredientes) transgênico(s)' ou 'produto produzido a partir de (nome do produto transgênico)'2".
8. - Não indica a norma, nem mesmo na sua exposição de motivos, o porquê devesse a informação ter um tratamento de destaque, maior do que as demais informações constantes do rótulo, ao pressuposto de que todas as informações ali insertas contém em si mesmas alguma relevância para o consumidor: validade, qualidade, origem, composição, são todas informações relevantes, destinadas a assegurar a saúde e a adequada segurança do consumidor. Embora também não conste a motivação da regra que indique a importância da estipulação, a nova norma também impõe o dever de informar, na rotulagem, a espécie doadora do gene incorporado ao OGM.
9. - O cerne da discussão sobre a rotulagem de OGMs está aí: seus defensores entendem que assim se estará assegurando o direito à informação dos consumidores, em relação aos alimentos compostos de OGMs. Os que entendem pela inadequação do Decreto argumentam que, há muito, existem técnicas de melhoria genética na agricultura: híbridos foram criados, plantas têm suas variedades constantemente melhoradas, e nunca antes houve necessidade de informar ao consumidor qualquer destas técnicas agrícolas, ou acerca de eventuais outras formas de obtenção dos alimentos.
10. - Quanto à obrigatoriedade de se rotular alimentos e ingredientes produzidos a partir de animais alimentados com ração contendo ingredientes transgênicos, tal como os alimentos de origem vegetal, esses produtos deverão trazer a seguinte informação na rotulagem: "(nome do animal) alimentado com ração contendo ingrediente transgênico", ou "(nome do ingrediente) produzido a partir de animal alimentado com ração contendo ingrediente transgênico'3
11. - Os trabalhos divulgados pela FAO/ONU revelam ser extremamente improvável a troca de material genético entre células da planta modificada e do organismo que dela se alimente. Desde sempre, a ingestão de material genético - de plantas e animais - na dieta humana, tem sido de 0.1 a 1.0 g por dia, considerando toda a dieta do indivíduo, diariamente. Portanto, as restrições em torno da ingestão de material genético modificado - que são infinitamente menores - devem considerar que seu consumo representa um volume inferior a 1/250.000 da totalidade de DNA absorvido por um indivíduo.
12. - A conclusão desses estudos indica que a possibilidade de transferência de genes de vegetais modificados para células de mamíferos é extremamente reduzida, sendo lícito concluir que a rotulagem específica, pelo simples fato de um produto ser produzido com animal que ingeriu OGM, não é tecnicamente relevante, posto que não se presta a trazer informações adicionais imprescindíveis em relação aos riscos ou benefícios à saúde do consumidor.
13. - Diz o parágrafo quatro do Art. 2º do Decreto nº 4.680/03, que caberá a Comissão Técnica Nacional de Biotecnologia (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, reduzir ou não o percentual de 1% que obriga a rotulagem. A norma não autoriza revisão para majorar o percentual. Parece-nos um tanto remota a hipótese de redução, levando-se em consideração que o país mal possui laboratórios suficientemente aparelhados para verificar a presença de OGMs no limite de 4%, que dirá para a nova regra, que exige equipamento mais modernos e técnicas extremamente avançadas, pouco disponíveis no Brasil, sem contar que a regra, da forma como posta, atinge também os produtos derivados de OGM que tecnicamente nem mesmo contenham material genético. Nada disso foi observado por aqueles que auxiliaram o Poder Executivo na elaboração do Decreto.
14. - Aliás, nesse aspecto, o Decreto nº 4.680/03 promoveu um desserviço à nação. O antigo Decreto nº 3.871/01 previa a criação de uma comissão que seria responsável pela criação de regulamentos de certificação, quer positiva (da presença de OGMs numa partida de grãos, por exemplo), quer negativa (da ausência de OGMs). Era atribuição da referida comissão: elaborar uma metodologia de análise para a detecção de OGMs, que passa por (i) estabelecer procedimentos e métodos de coleta e amostragem; (ii) fixar de padrões comparativos do OGM e seu paradigma convencional; (iii) padronizar e validar métodos para a realização dos testes laboratoriais; (iv) validar e desenvolver métodos e sistemas para a certificação da cadeia produtiva, e enfim, (v) promover o aparelhamento de laboratórios e a capacitação de profissionais afetos às avaliações.
15. - Sabe-se que, até o presente momento, mesmo em países desenvolvidos, poucas são as empresas que estão em condições de implementar a rotulagem de OGM na sua totalidade. Vale lembrar que, para cada OGM liberado, será necessário desenvolver, certificar e capacitar laboratórios com os seus respectivos métodos de detecção daquela alteração genética: a metodologia aplicável para a soja geneticamente modificada não é exatamente a mesma aplicável ao milho geneticamente modificado, muito embora conceitualmente a avaliação laboratorial parta dos mesmos princípios tecnológicos.
16. - Nada disso consta do novo decreto, e considerado que a Comissão então sob a égide do Decreto nº 3.871/01 não chegou a concluir seus trabalhos, é de se indagar quais serão os mecanismos que permitirão a execução apropriada do Decreto
nº 4.680/03, e quem serão os órgãos governamentais responsáveis pela adequada fiscalização.
17. - Nos termos do antigo Decretonº 3.871/01, cada uma das Pastas Federais representadas na Comissão poderia formular regras de rotulagem complementar, quando aplicáveis à sua área de competência, valendo destacar: ao Ministério da Agricultura quando relativas à produção vegetal e animal; ao Ministério da Saúde, quando relativas aos alimentos em geral, e especialmente, aos alimentos processados (industrializados). O fato é que são ainda tímidas as medidas adotadas pelas Pastas Federais. Como se verá adiante, a regulamentação hoje existente (certificação de grãos transgênicos) é específica para um único produtos e não para quaisquer produtos em geral, como seria de se esperar.
18. - Ainda na seara das inovações, o Decreto criou a uma espécie de discriminação reversa, pela qual aos produtores ou distribuidores de alimentos e ingredientes alimentares livres de OGMs é facultada a rotulagem negativa, quando houver no mercado similar transgênico: "produto (seu nome ou do ingrediente) livre de transgênicos". Essa regra visa valorizar notadamente os grãos e, em especial, a soja convencional, com o objetivo de criar-lhe um valor adicional, de maneira que o produtor seja recompensado pelos custos mais altos da cultura sem modificação genética, o que, a princípio asseguraria que no país fossem plantadas as variedades convencionais e as geneticamente modificadas, conferindo ao Brasil certa vantagem competitiva em relação aos mercados que adotam somente uma modalidade de cultura.
II. - A SOJA E A SAFRA DE 2003
19. - Entretanto, a discussão acima é meramente teórica, tendo em vista que o plantio em escala comercial, assim como a aprovação de qualquer OGM no país, continua suspenso por conta de decisão judicial que condicionou a liberação da soja transgênica, primeiro OGM analisado no Brasil, à apresentação de estudo de impacto ambiental4.
20. - A inércia em decidir-se pela aprovação de OGMs, levou ao plantio em grande escala da soja transgênica no sul do país, obrigando o Governo Federal a editar a Medida Provisória nº113 de 26.3.2003 ("MP nº 113/03"), que autorizou a colheita e a comercialização da safra de 2003 para a soja transgênica, sob pena de ter de incinerá-la: prevaleceu o conteúdo econômico da questão, a provar que o OGM não é o que se apregoa: implicitamente, está comprovada a segurança do produto, quer para o consumo animal, quer para o consumo humano, porque não se pode conceber o contrário apenas por questões econômicas.
21. - Nos termos da MP nº 113/03, a rotulagem da soja transgênica da safra de 2003, exclusivamente, e os derivados dela5, deverá conter os dizeres "pode conter soja transgênica" e "pode conter ingrediente produzido a partir de soja transgênica", conforme o caso. A mesma informação deverá constar da documentação fiscal, que visa garantir a rastreabilidade do produto. A comercialização dos produtos compostos à base de soja da safra de 2003 deverão ser comercializados apenas até 31.01.20046, e a partir daí, deverão ser destruídos.
22. - Em termos práticos, isso quer dizer que as regras do Decreto nº 4.680/03 aplicam-se somente para os produtos produzidos a partir da próxima safra7. E nisso, referido Decreto contém uma preclusão lógica: por ora, está suspensa a comercialização de outras safras de soja geneticamente modificadas que não a de 2003. Indaga-se: o decreto tem por finalidade, então, regular os produtos de origem estrangeira? A norma não esclarece.
23. - Referido Decreto nº 4.680/03 vem na senda também de outro normativo: a Instrução Normativa nº 21, de 10.4.2003, da lavra da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Meio Ambiente. Por essa norma, o Ministério da Agricultura criou o mecanismo de certificação da soja livre de OGMs, a sugerir que toda a soja não certificada, a contrario senso, poderia contê-los.
24. - Já é um passo no caminho da boa regulamentação, na medida em que não apenas a soja produzida no país, mas a também a de origem estrangeira poderá ser certificada. Nada se dispôs, porém, a respeito dos derivados dela, quer nacionais, quer, principalmente, os derivados de origem estrangeira. Parece-nos que a lacuna gerará alguma insegurança aos fabricantes que importem derivados de soja, para a sua produção de alimentos.
25. - Por fim, uma das inovações introduzidas pelo Decreto, que talvez produza maior impacto, é previsão de aplicar-se as penalidades previstas no CDC para as infrações às suas disposições. É provável que haja inúmeros questionamentos esse respeito, uma vez que o Decreto nº 4.680/03 não esclarece se as penalidades aplicáveis são as de natureza administrativa ou as de natureza penal. Tipos penais e penas privativas de liberdade não podem ser criadas pela via do decreto presidencial, mas devem, necessariamente, submeter-se ao processo legislativo adequado no âmbito do Congresso Nacional.
26. - Impõe-se que o Governo Federal enfrente a questão de pronto, criando regulamentos programáticos, que regulamentem a produção e comercialização racional dos OGMs no país. Nada justifica que sejam editadas medidas paliativas, que visem apenas remediar as situações concretas que se apresentam com a força da realidade, implícita na larga produção de soja transgênica no sul do país. Há que se oferecer à população brasileira e aos produtores em geral uma solução definitiva para a questão.
27. - Sem pretensão de esgotar a análise das modificações introduzidas pelo Decreto e, especialmente, de sua repercussão, pode-se constatar que essa regra representou o triunfo de alguns grupos contrários à biotecnologia. Não é de todo inoportuno mencionar que sua implementação representará um aumento significativo no custo geral da produção de alimentos, cujo resultado final também cairá na conta do consumidor.
28. - É certo que a indústria e os produtores de alimentos deverão acolhê-la e implementá-la, porque a norma é de execução imediata. Indubitavelmente, o Decreto 4.680/03 representará um custo a mais na produção de alimentos, com a realização dos testes, seja para aqueles oriundos de técnicas convencionais (notadamente em vista da certificação de grãos prevista na Instrução Normativa nº 71/03), como para aqueles resultantes da utilização da biotecnologia, que igualmente alcançará o mesmo consumidor a quem se destina a rotulagem informativa. Resta saber se os consumidores estarão dispostos a arcar com o custo da informação quase absoluta.
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1. Artigo 6º do CDC estabele os direitos básicos dos consumidores, entre eles o direito à informação em seu inciso III
2. § 1º do Art .2º do Decreto 3. Art .3º do Decreto 7. Lei de Biossegurança - A Legislação que não deixam aplicar, Antonio José L.C. Monterio, Anexo ao BI 1.756 5. alimentos, ingredientes, coadjuvantes de tecnologia, aditivos, etc. 6. §3º do Art. nº 5º do Decreto 7. Art. nº 5º do Decreto________________________
*sócia e associado do escritório Pinheiro Neto Advogados, integrantes da Área Contenciosa.
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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