Não basta ser mulher
" (...) não basta ser mulher, tem que ser hipossuficiente e vulnerável, pelo menos em determinado momento de sua vida".
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Atualizado em 16 de julho de 2013 13:14
Luana Piovani e Dado Dolabella travaram um duelo público e notório, com desavenças e supostas agressões por parte de Dado, situação que bateu às portas da Justiça do RJ para aplicação das medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha (lei 11.340/06 arts. 18 a 24).
Cumpre ressaltar, inicialmente, que este processo tramita em segredo de justiça, o que inviabiliza a análise concreta do pedido da autora e, consequentemente, do embasamento teórico de que ela se valeu para fundamentar seu pedido cautelar e a especialidade do foro em virtude da lei Maria da Penha (LMP).
De qualquer modo, foi anunciada a decisão do TJ/RJ, em sede de embargos infringentes e de nulidade, para afastar a aplicação especial da lei Maria da Penha e remeter os autos ao juízo criminal comum1.
Cumpre atentar para o alcance da LMP, levando-se em conta os arts. 2º e 5º, da legislação especial. Isso porque não é toda e qualquer agressão à mulher, tampouco em indiscriminados locais, que irá caracterizar a situação peculiar de proteção à mulher vítima de violência.
Desta feita, para que a mulher se valha das medidas de proteção previstas nos arts. 18 a 24, da LMP, faz-se necessário que a agressão contra ela se dê em âmbito familiar e doméstico (final do art. 1º) e que configure uma relação íntima, de afeto entre homem e mulher.
Igualmente, torna-se imprescindível que a violência seja de gênero. Neste ponto, há certa divergência doutrinária e jurisprudencial para defini-la, com conceituação um tanto quanto difusa para o termo.
Mas, mesmo assim, o entendimento que predomina é o de que a violência de gênero se configura a partir dos papéis que homem e mulher desempenham na sociedade e na família, configurando verdadeira relação de submissão da esposa ao marido; namorada ao namorado e da convivente ao parceiro.
Por fim, e não menos importante, a violência pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, conforme art. 7º, LMP (ou qualquer outra modalidade de violência, vez que o rol deste artigo é exemplificativo).
Desta feita, pode-se afirmar que esses requisitos, quando presentes, configuram a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher, o que dá ensejo à aplicação da lei Maria da Penha.
Sendo assim, neste ponto reside a fundamental distinção, que irá nortear a questão sub studio: como bem salientou o relator do processo, é fato público e notório que Luana Piovani nunca foi uma mulher oprimida, muito menos subjugada pelo homem, o que faz com que fique descaracterizada sua hipossuficiência.
No mais, ao que parece (já que não há como consultar as petições pelo segredo de justiça), a agressão ocorreu em local não doméstico e a aplicação da LMP parece mesmo se distanciar do caso concreto.
Isso porque Luana e Dado são figuras públicas, dotadas de notoriedade. Somado a isso o fato da agressão supostamente ter se dado em local não doméstico, tem-se que a situação de vulnerabilidade não se configura. Isso porque a vulnerabilidade, aqui, é a situacional, isto é, aquela presente em determinado momento da vida da mulher. Vale dizer, a mulher não é vulnerável, mas, naquele determinado instante, está vulnerável.
Novamente, considerando que Luana Piovani é uma figura pública, com notoriedade e que a agressão supostamente ocorreu em ambiente fora da residência, aliado ainda à condição de não submissão e opressão, é que decidiu o TJ pelo afastamento da aplicação da LMP ao caso concreto, por não estarem presentes a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher.
Não se pode olvidar, jamais, que isso não significa que o suposto autor do crime sairá impune, mas apenas que os autos serão remetidos ao juízo competente. Se não estão presentes os requisitos da LMP, o juízo competente é o criminal comum e não o especial de proteção à mulher.
Finalmente, também não se pode perder de vista o fato de que a LMP não se aplica somente à mulher hipossuficiente e em situação de vulnerabilidade.
Como corolário do princípio da isonomia material, meninos, homens e idosos que se vejam na mesma situação de vulnerabilidade e hipossuficiência podem e devem ter a seu favor decretadas as medidas de proteção da LMP2, como decorrência da aplicação analógica dos dispositivos citados3.
Conclui-se, ante todo o exposto e sem a devida consulta aos autos, que o TJ/RJ analisou de forma prudente, sopesando o real alcance da LMP aliada à vontade de nosso legislador em proteger os bens jurídicos específicos (mens legis e mens legistatoris). É bastante evidente a realidade de opressão e violência às mulheres, porém, como bem disse o relator do referido Tribunal, "(...) aplicar essa importante legislação a qualquer caso que envolva o gênero mulher, indistintamente, acabaria por inviabilizar os Juizados de Violência Doméstica e Familiar, diante da necessidade de se agir rapidamente e de forma eficiente para impedir a violência do opressor contra a oprimida, bem como, não se conseguiria evitar a impunidade"4.
Assim, se à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta, parafraseando o grande imperador romano, para a lei Maria da Penha não basta ser mulher, tem que ser hipossuficiente e vulnerável, pelo menos em determinado momento de sua vida.
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1 https://www.migalhas.com.br/quentes/181918/caso-de-luana-piovani-nao-se-enquadra-em-lei-maria-da-penha
2 https://mp-df.jusbrasil.com.br/noticias/3017712/lei-maria-da-penha-e-aplicada-em-caso-de-violencia-contra-idoso
3 https://www.migalhas.com.br/depeso/151858/aplica-se-a-lei-maria-da-penha-aos-idosos
4 https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20130704-05.pdf
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado e pós-graduado "Lato Sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/São Paulo.