Direito à recusa de tratamento médico: apontamentos sobre o caso Antonella Mirabelli à luz do direito brasileiro
À primeira vista, a decisão parece ser uma importante afirmação do direito individual à recusa de tratamento, contudo, uma análise detida do caso concreto levanta dúvidas sobre as questões biojurídicas que envolvem o caso.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Atualizado em 11 de julho de 2013 15:14
Na semana passada, vários sites brasileiros noticiaram a morte de Antonella Mirabelli, uma argentina de 19 anos, portadora de uma grave anorexia. O caso chegou juízo da cidade de Rosário Del Tala, na província de Entrerios, pois o pai da jovem exigia que ela fosse involuntariamente internada, requisitando ainda a guarda das outras seis filhas, menores de idade. Contudo, a decisão foi de respeitar a vontade da paciente uma vez que ela era maior de idade e estava no gozo de suas faculdades mentais.
À primeira vista, a decisão parece ser uma importante afirmação do direito individual à recusa de tratamento, contudo, uma análise detida do caso concreto levanta dúvidas sobre as questões biojurídicas que envolvem o caso. Vejamos:
a) os pais de Antonella eram separados e a jovem vivia com sua mãe e sua avó materna, e, juntas, seguiam uma religião extremista que preconizava a cura de enfermidades por Deus, rechaçando a medicina.
b) no momento da morte, Antonella estava na presença de sua mãe, que não lhe prestou qualquer assistência.
c) a anorexia é um distúrbio alimentar causado por uma preocupação excessiva com o peso corporal, que pode resultar distúrbios psiquiátricos graves.
d) após a morte de Antonella, o Poder Judiciário argentino ordenou a exumação do corpo da jovem, a vacinação obrigatória de suas seis irmãs, entre 7 e 16 anos, e que seja realizado um estudo multidisciplinar da família.
Analisando o caso à luz do Direito brasileiro, tem-se o art. 15 do CC veda a imposição de tratamento ao afirmar que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica".
Este artigo já foi objeto de muitas críticas, inclusive a V Jornada de Direito Civil do CJF editou o enunciado 403, no qual faz uma interpretação deste artigo conforme a CF: "O direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da CF, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão de tratamento ou da falta dele, desde que observado os seguintes critérios:
a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente;
b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e
c) oposição que diga respeito à própria pessoa do declarante."
Percebe-se assim que há, no Direito brasileiro, a possibilidade de uma pessoa se recusar a tratamento médico por questões religiosas, ainda que esta recusa implique em sua morte. Contudo, essa possibilidade é limitada à comprovação da capacidade jurídica plena da pessoa, de modo que apenas aqueles que forem considerados capazes e estiverem em pleno gozo de suas faculdades mentais poderão efetuar licitamente tal recusa.
Significa dizer que a discussão do caso Antonella Mirabelli, à luz do direito brasileiro, está adstrita à verificação da capacidade da jovem. Ou seja, em sendo a jovem maior de idade, pois tinha 19 anos, é preciso verificar se a anorexia nervosa teria causado a incapacidade da jovem, viciando a manifestação de recusa de tratamento consciente, livre e autônoma.
Uma análise preliminar do caso demonstra que houve erros na condução do mesmo, uma vez que há indícios de que a jovem estivesse com um grave distúrbio psiquiátrico, em virtude da anorexia, além de estar sob forte pressão de sua genitora e de sua progenitora. De modo que, em se confirmando tais indícios, trata-se de um caso de abandono de incapaz e erro judicial e não de respeito à autodeterminação individual, pois Antonella não tinha capacidade para consentir com a recusa de tratamento.
Saliente-se, por fim, que o direito à autodeterminação do indivíduo à recusa de tratamento é uma importante conquista individual da contemporaneidade, substanciada no reconhecimento à dignidade da pessoa humana e à autonomia privada. Contudo, este direito não pode dar margens à que vontade de terceiros prevaleça sobre a vontade do indivíduo, quando este não tiver capacidade para consentir.
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* Luciana Dadalto é advogada gestora do Departamento de Direito Médico, Odontológico e Hospitalar do escritório Ivan Mercêdo Moreira Sociedade de Advogados.