MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Possibilidade de alegação em juízo do desequilíbrio econômico nos contratos particulares

Possibilidade de alegação em juízo do desequilíbrio econômico nos contratos particulares

Flávia de Oliveira Machado

"No curso de execução do contrato, muitas vezes, o cenário econômico se alterava tornando desproporcional a prestação de uma parte perante a da outra..."

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Atualizado em 2 de julho de 2013 14:21

Os contratos, como já é sabido, têm papel relevante na Economia, sendo elemento essencial à garantia das transações, trazendo segurança jurídica às partes e mitigando os riscos decorrentes das obrigações assumidas pelos contratantes.

Desde o Estado Liberal no século XIX imperava de forma absoluta o postulado pacta sunt servanda, segundo o qual o contrato fazia lei entre as partes, devendo ser cumprido sem ressalvas1. Os particulares podiam contratar livremente, sem qualquer interferência pública nos direitos e obrigações reciprocamente assumidos por conta do ajuste ou mesmo do seu impacto na seara econômica ou social. Ainda, o contrato se revestia como se norma legal fosse, tangenciando a imutabilidade.

Segundo Maria Helena Diniz2, o pacta sunt servanda se justifica porque o contrato, uma vez celebrado livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito.

Entretanto, no curso da execução do contrato muitas vezes o cenário fático e econômico se alterava, gerando "situações injustas" e tornando desproporcional a prestação de uma parte perante a da outra naquela determinado instrumento, razão pela qual atualmente este princípio tem sido mitigado.

Dessa forma, a obrigatoriedade aos termos pactuados não é absoluta. Como bem explica Maria Helena Póvoas3, há que se respeitar a lei e, sobretudo, outros princípios que coexistem juntamente com as obrigações das partes, como o da boa-fé, o da legalidade, o da igualdade, entre tantos outros; afinal, os princípios gerais do Direito integram um sistema harmônico.

Referida mudança se dá por força da equivalência das prestações contratuais, ligada ao princípio da igualdade, que procura, dentre outras coisas, evitar a desproporcionalidade em prejuízo de um dos contratantes.

"a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância"4. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo : RT, 1991. p. 101)

Aqui nos deparamos com a expressão do Direito Canônico rebus sic stantibus, entendida como "permanecendo as coisas como estavam antes", ou seja, que nos pactos de execução continuada e cujas prestações se perpetuam no futuro deve-se manter a proporcionalidade entre elas de forma a não alterar esse equilíbrio existente quando da celebração do instrumento. Tal cláusula consagra a Teoria da Imprevisão.

A legislação brasileira, no intuito de solucionar essa questão, prevê em seu art. 478 do CC/02 que, em contratos a prazo ou duradouros, "se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato".

Observa-se assim que o legislador permite a resolução contratual quando um elemento inusitado e surpreendente afetar a execução do contrato, colocando em situação de extrema dificuldade um dos contratantes, isto é, ocasionando a excessiva onerosidade em sua prestação, como consagra o art. 317 do CC/02.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Para fundamentar a revisão do contrato pela quebra do equilíbrio econômico a doutrina se socorre da chamada Teoria da Imprevisão, considerando os dois dispositivos acima citados (art. 478 e 317 do CC/02). E são os elementos trazidos pelo art. 478 do CC/02 o núcleo do desequilíbrio econômico superveniente no direito civil brasileiro.

Trazemos também o enunciado no. 176 do Conselho da Justiça Federal que diz:

176 - Art. 478: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.

Nos termos da legislação vigente e dos ensinamentos da renomada professora Maria Helena Diniz5, "o órgão judicante deverá, para lhe dar ganho de causa, apurar rigorosamente a ocorrência dos seguintes requisitos:

a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada;

b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do benefício exagerado para o outro;

c) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebram o contrato, não possam ter previsto esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas".

Nessa esteira, conforme esclarece Flávio Tartuce6, a revisão não será possível quando o contrato assumir a forma unilateral ou gratuita. O contrato deve ser bilateral ou sinalagmático, presentes o caráter da onerosidade e o interesse patrimonial, de acordo com a ordem natural das coisas. Ainda, o contrato deve assumir a forma comutativa, tendo as partes envolvidas total ciência quanto às prestações que envolvem a avença.

Vale lembrar que os contratos instantâneos ou de execução imediata (que são aqueles em que o cumprimento ocorre de imediato, caso da compra e venda à vista) estão fora da aplicação da revisão judicial por imprevisibilidade.

No mesmo sentido, Arnaldo Rizzardo7 afirma que a razão justificativa da teoria da imprevisão está, como o nome indica, nos acontecimentos imprevistos, que acarretam a impossibilidade subjetiva, ou absoluta, ou mesmo a onerosidade excessiva da prestação. Daí parte-se para a recomposição das obrigações assumidas, ou a atenuação de suas consequências.

Observa-se assim que para que a revisão judicial por fato imprevisto seja possível também deve estar presente a onerosidade excessiva, situação desfavorável a uma das partes da relação contratual (geralmente a parte mais fraca ou vulnerável).

Pois bem, a doutrina entende que o fator onerosidade não necessita de prova de que uma das partes auferiu vantagens, bastando a prova do prejuízo e do desequilíbrio negocial. Nesse sentido, foi aprovada na IV Jornada de Direito Civil o enunciado 365, que prevê:

365 - Art. 478: "A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena"8.

Importante se faz ressaltar que, para que haja quebra do equilíbrio do contrato é imprescindível que a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, e proporcione extrema vantagem para a outra parte, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Significa dizer, as situações identificadas sejam excepcionais, externas ao contrato, que são inusitadas.

Pelo exposto, a alegação de desequilíbrio contratual é um caminho legal criado com o objetivo de evitar que alguns contratos, afetados por fatores imprevisíveis e extraordinários, tornem-se uma fonte de prejuízos para as empresas. Em outras palavras, os acontecimentos extraordinários devem ser de grande alcance, a ponto de determinar uma dificuldade intransponível ao contratante devedor, tornando a obrigação excessivamente onerosa, e redundando, para o credor, um proveito desproporcional àquele estimado no momento da celebração.

M. Reale sustenta que o desequilíbrio é algo que torna o contrato "destituído de sentido" e "absurdo o vínculo negocial", "esvaziando-o de seu conteúdo econômico", com "encargos brutalmente desproporcionais às vantagens alferidas"9.

Pode ser citado, nesse contexto, o seguinte julgado do STJ no REsp 135151 RJ 1997/0039327-5, 4ª turma, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar10:

PROMESSA DE COMPRA E VENDA. FATO SUPERVENIENTE. AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DO CONTRATO. PLANO CRUZADO. CORREÇÃO MONETÁRIA.CELEBRADO O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA, COM PRESTAÇÕES DIFERIDAS, SEM CLAUSULA DE CORREÇÃO MONETÁRIA, DURANTE O TEMPO DE VIGENCIA DO PLANO CRUZADO, QUANDO SE ESPERAVA DEBELADA A INFLAÇÃO, A SUPERVENIENTE DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA JUSTIFICA A REVISÃO DO CONTRATO, CUJA BASE OBJETIVA FICOU SUBSTANCIALMENTE ALTERADA, PARA ATUALIZAR AS PRESTAÇÕES DE MODO A REFLETIR A INFLAÇÃO ACONTECIDA DEPOIS DA CELEBRAÇÃO DO NEGOCIO. PRECEDENTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (grifos nossos)

Dessa forma, sendo constatado o desequilíbrio econômico na relação contratual, sua revisão é indispensável para restauração do estado de equidade, assim como para a preservação da utilidade coletiva, ou seja, a função social do contrato.

É função do direito criar regras que garantam a ampla liberdade econômica e, paralelamente propicie meios de garantir às partes envolvidas trocas econômicas que atinjam a satisfação pretendida com a circulação da riqueza11. Isso porque, surgem hipóteses no decorrer da relação contratual em que distorções no funcionamento dos mercados exigem a atuação do Estado-juiz a fim de restabelecer uma condição mínima de igualdade entre os contratantes.

Pelo exposto, conclui-se que, havendo comprovada onerosidade excessiva que acarrete o desequilíbrio do contrato, a procedência do pedido com base no art. 478 do CC/02 é medida que se impõe, sob pena de se afrontar o princípio da função social do contrato e os demais princípios balizadores das condutas das partes na busca da proteção dos interesses envolvidos nas relações contratuais, sobretudo o princípio da eticidade que tem como pressupostos a boa-fé objetiva, a justa causa e o equilíbrio das relações jurídicas.

Esse, inclusive, é posicionamento que se solidifica no TJ/MS, consoante voto da desembargadora Julizar Barbosa Trindade da 2ª turma, no AGR 11299, publicado no DJ em AGR 11299:

E M E N T A - AGRAVO REGIMENTAL EM APELAÇÃO CÍVEL -RESCISÃO DE CONTRATO -COMPRA E VENDA DE SOJA -ESTIAGEM PROLONGADA - ONEROSIDADE EXCESSIVA -ART. 478 DO CC -RAZÕES RECURSAIS QUE INSISTEM NA TESE APRESENTADA NA APELAÇÃO -RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

A teoria da imprevisão admite a revisão ou rescisão contratual em certas circunstâncias especiais, quando ocorrer um acontecimento imprevisível anormal; uma alteração profunda de equilíbrio das prestações decorrentes do fato novo e levando uma das partes à insolvência, ou fazendo-a arcar com um prejuízo sobremaneira gravoso; enriquecimento injusto e lucro desmedido para o outro contratante; e a ausência de mora ou culpa por parte daquele que pede revisão ou resolução.

Certo é que a teoria da imprevisão, em regra, não se aplica aos contratos de risco, notadamente se a parte inadimplente é conhecedora dos riscos que assume, tal qual o caso de a dívida dever ser paga em sacas de soja por agricultor e ocorre estiagem no ano de pagamento que atinge a produção. No entanto, impõe-se a aplicação dessa teoria mesmo em casos como o da espécie se do exame das circunstâncias fáticas verifica-se que o inadimplemento deu-se em virtude de fator climático extremamente grave e anormal, tanto que exigiu a intervenção municipal mediante decreto de estado de emergência no local, com o reconhecimento de que as perdas nas lavouras atingiram patamares de 50%, 70% e até 90% da produção.

Agravo Regimental em apelação cível AGR 11299 MS 2007.011299-7/0001.00. Segunda turma Cível do TT/MS. Data do Julgamento: c. Relator: Des. Julizar Barbosa Trindade.

Com efeito, o imprevisível só poderá ser identificado com circuntâncias concretas e, de acordo com os nossos tribunais, com rigor.

A possibilidade de alegação em juízo de desequilíbrio econômico do contrato e sua revisão judicial é um tema de grande importância na realidade dos negócios jurídicos, tendo em vista que as questões suscitadas no Poder Judiciários envolvem justamente a possibilidade de rever um contrato ou até mesmo extingui-lo, devendo ser analisado cuidadosamente nos termos da legislação em vigor.

___________

1 FERREIRA, Daniel e GUÉRIOS, Patrícia Borges. "Função social" e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, privados e administrativos. Disponível em: <https://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9548&revista_caderno=4>. Acesso em 06 de fevereiro de 2013.

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 7.

3 PÓVOAS, Maria Helena. A força obrigatória dos contratos e a teoria da imprevisão. Revista Jurídica da UNIC. v. 5, n. 1, p. 95 - 104, jan/jun. 2003.

4 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 1991. p. 101.

5 TARTUCE, Flávio. Direito Civil para Concursos Públicos. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. v. 3.

6____________. Direito Civil para Concursos Públicos. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. v. 3.


7 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2005, p. 139.

8 TARTUCE, Flávio. Direito Civil para Concursos Públicos. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. v. 3.

9 CARDOSO. Luiz Philipe Tavares de Azevedo. A Onerosidade Excessiva no Direito Civil Brasileiro. USP 2010. p. 102.

10 Disponível em; <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19915189/recurso-especial-resp-135151-rj-1997-0039327-5-stj>. Acesso em 04 de abril de 2013.

11 ALVES. André Luiz Aidar. A Teoria da Imprevisão e sua aplicação aos contratos de venda futura de commodities agrícolas no Brasil: possibilidade jurídica e efeitos econômicos. Universidade Federal de Goiás. 2010. p. 36. xv, 75 f.

OLIVEIRA, Rodrigo Navarro. A aplicação das teorias revisionistas na revisão judicial de contratos no Brasil: uma análise a partir da disciplina do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre. 2007. PUC do Rio Grande do Sul.

___________

* Flávia de Oliveira Machado é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.


Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca