Princípios constitucionais e violação à constituição
A Constituição de 1988 inaugurou uma nova ordem, em que se proclama a hegemonia dos princípios - enquanto normas (escritas e não escritas) de textura aberta. Rompeu-se (ao menos na carta) com o reducionismo consagrado no art. 4° da Lei de Introdução. Princípios (já) não são (mais) normas quaternárias (e subalternas) convocadas para dirimir causas apenas e quando (i) não houver norma de preceito (lex), (ii) não houver costume aplicável, ou (iii) não for possível aplicar o método da analogia. Princípios, ao revés, disputam entre si (no paradoxo de uma harmonia conflitiva) a primazia do jurídico. Não são o começo da indagação. Remetem para o começo-do-começo: temperam o rigor da lex; promovem a ultrapassagem para a intensidade da vida; abrem para a originariedade do fenômeno jurídico e conduzem ao mistério da clareira do Direito (ius). São normas-grávidas-de-afetos; condensações de uma experiência lingüística mais radical; fios condutores para o mais alto (a higher law).
sexta-feira, 4 de novembro de 2005
Atualizado em 3 de novembro de 2005 08:55
Princípios constitucionais e violação à constituição
Bruno di Marino*
A Constituição de 1988 inaugurou uma nova ordem, em que se proclama a hegemonia dos princípios - enquanto normas (escritas e não escritas) de textura aberta. Rompeu-se (ao menos na carta) com o reducionismo consagrado no art. 4° da Lei de Introdução. Princípios (já) não são (mais) normas quaternárias (e subalternas) convocadas para dirimir causas apenas e quando (i) não houver norma de preceito (lex), (ii) não houver costume aplicável, ou (iii) não for possível aplicar o método da analogia. Princípios, ao revés, disputam entre si (no paradoxo de uma harmonia conflitiva) a primazia do jurídico. Não são o começo da indagação. Remetem para o começo-do-começo: temperam o rigor da lex; promovem a ultrapassagem para a intensidade da vida; abrem para a originariedade do fenômeno jurídico e conduzem ao mistério da clareira do Direito (ius). São normas-grávidas-de-afetos; condensações de uma experiência lingüística mais radical; fios condutores para o mais alto (a higher law).
Mas as coisas não são bem assim (tudo, aliás, é e não-é). Quase 20 anos de Constituição, e ainda permanecem preconceitos de outrora, heranças de idéias petrificadas. A Carta é principiológica, mas ainda há rincões em que o ingresso dos princípios é cerceado. Um deles é o do recurso extraordinário, em que se exerce o chamado controle difuso de constitucionalidade (poder-dever que incumbe a todo e qualquer juiz). Esbarra-se, aqui, cotidianamente, na tese, que já virou jargão, da violação indireta ao texto constitucional. Por ela, para que seja cabível o acesso à via extraordinária, o juiz não poderá levar em conta legislação infraconstitucional que se interponha entre a norma constitucional tida por violada e a norma violadora. Com isso, a Suprema Corte não tem admitido a interposição de RE por violação de princípio.
Há nisso muito de questionável. Antes de mais, porque a tese não tem fundamento no texto. A Carta da República, em seu art. 102, não fala em violação indireta (e sequer qualifica a violação). Fruto da alquimia pretoriana, tal jargão nasceu da necessidade - humana, demasiado humana - de se podar o número de recursos ao STF. Ademais, a tese é também ilógica. Pois de duas, uma: ou (a) bem se admite a possibilidade de haver norma constitucional inconstitucional, ou, então, (b) bem se admite que, como resultante de qualquer outro juízo (pois julgar é pôr situações em perspectiva), o conceito de inconstitucionalidade é um conceito de relação, que não está em si, mas que precisa ser aferido a partir do que lhe está fora, mais precisamente, do que consta na legislação infraconstitucional.
Como, no entanto, a própria Corte Suprema já decidiu que não se admite norma constitucional inconstitucional, não resta senão reconhecer que o predicado de inconstitucional encerra um conceito relativo. E mais, um conceito-de-chegada: o que importa não é tanto o que desencadeia - a norma violadora -, nem o itinerário - se a norma violadora fere, no meio do caminho, outras normas infraconstitucionais -, mas, sim, o resultado do labor hermenêutico - isto é, se há, de fato, norma constitucional violada. Pois Direito não é apenas atividade volitiva. É, sobretudo, pensamento. E pensar, na fina percepção de HEIDEGGER, é ação transitiva direta, algo que não se detém no objeto a que se dirige, mas que vai além (transitando caminhos, comunicando significados, libertando sentidos e traçando conexões). Pensar é levar-para-o-espaço-aberto, abrir possibilidades. Pensa-se, então, não sobre ou acerca da lex, parando nela. Pensa-se a lei, à luz da realidade mais ampla do ius. Portanto, nenhuma norma é uma ilha, a encerrar um âmbito de incidência blindado. Nenhuma norma é pura, infensa a hibridismos, mutações. Não há um ou isto ou aquilo. Não, pelo menos, num sistema valorativo-principiológico como é o nosso. Daí que determinada lex possa a um só tempo encerrar violação (direta) não só a uma norma infraconstitucional, como, também, a uma norma constitucional.
A tese, contudo, tem prevalecido. Aliás, é dominante. O nefasto é que, em plena sede de controle difuso (a mais democrática de controle da supremacia da Constituição), os princípios jurídicos, que levam ao mais alto, fiquem de fora da mais alta Corte. E se o objetivo é restringir o número de recursos, que se faça. Mas não à custa da inefetividade dos princípios. Implemente-se, então, como se pretendeu agora com a EC n° 45, o critério da discricionariedade na seleção dos recursos, qual se dá nos EUA com o writ of certiorari. Que sejam julgados apenas os recursos que a alta Corte considere relevantes. Com isso - as coisas assim claras (e "mentiras sinceras nos interessam") -, ao menos somos poupados do sentimento de pusilanimidade de que, ainda hoje, por força de um atavismo incurável, temos pudor de nos desviarmos da cartilha de um purismo normativista; poupados, enfim, da frustração de não termos coragem de caminhar para uma postura de pensamento mais solícita. Pois a ciência é inábil para versar e gerir afetos. E Direito não é apenas ciência. É prudência, uma ars inveniendi - a arte de encontrar em meio ao conflito um novo começo para uma nova conjuntura provisória. Sejamos, então, menos cientistas, e mais prudentes. Isso também é apenas humano - demasiado humano.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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