Problemas extrajurídicos do Estado de Direito e a edição da lei justa
É preciso haver uma conscientização dos aparelhos estatais e da sociedade para que o Direito veja sua versão programática alcançada.
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Atualizado às 09:39
Ao classificar como injusta uma lei,
corre-se o risco de cometer um pleonasmo, aquele mesmo vício de linguagem de
"descer para baixo" ou "sair para fora". O objetivo deste artigo diminuto não é
estabelecer uma definição de justiça, uma vez que através dos milênios houve
uma série de tentativas sem um consenso. Todavia, a despeito disto, é possível
apontar de acordo com o caso a noção entre o que é justo e injusto, certo e
errado, na maioria das vezes. O presente texto visa a provocar a consciência
dos juristas acerca do nosso sistema e do nosso papel na sociedade.
O ponto de partida que se pretende fixar
é a constatação de que quando um determinado grupo ascende ao poder, ele irá se
rodear de todas as defesas possíveis para não ter esta qualidade retirada.
Pode-se afirmar isto, porque, após a Revolução Francesa, o princípio da
legalidade foi introduzido para a proteção da burguesia, nova classe dominante,
face aos abusos do monarca absolutista, trazendo teorias para legitimação do
novo sistema que protegiam contra ataques de grupos não pertencentes a estas
classes dominantes, bem como garantir a exigência de seus direitos frente a
qualquer autoridade.
Outro exemplo bem definido - também
muito divulgado - é o caso dos regimes nazifascistas totalmente fundamentos nas
suas respectivas constituições e sistemas legais, quando se concluiu que a lei
não deve ser cumprida pelo status a
ela concedido, sendo obrigatório observar a norma a qual ela se refere, bem
como seu fundamento moral correspondente.
Com isto, advém a queda do extremismo do
positivismo e a ascensão da efetividade dos direitos e princípios fundamentais,
ocorrendo uma mudança na forma pela qual se fundamenta a legitimação da
ocupação do poder. Restou evidente que a força atribuída pela coercibilidade da
lei, por si, não traz a legitimação; era preciso convencer de que a política
adotada é melhor para gerar a relação simbiótica e harmônica entre o Direito e
a sociedade.
O professor Michele Taruffo ensina que
processo é resultado da cultura de determinada sociedade. De acordo com a
ideologia existente em determinada época na sociedade, a busca pelo atingimento
dos objetivos entendidos como importantes irá criar mecanismos de sua
realização. Desta forma, a ideologia, os fundamentos morais de determinada
sociedade, ganham grau de juridicidade e criam um sistema em torno do qual será
composto todo o ordenamento jurídico.
O nosso ordenamento contemporâneo é
montado hodiernamente seguindo esta mesma corrente de legitimação pelo
convencimento, tendo como núcleo o princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo
uma série de princípios norteadores que balizam a atuação do Estado e da
sociedade para a consecução deste fim.
Porém, a pergunta real a ser feita é:
até que ponto, tratando-se do caso brasileiro especificamente, a finalidade do
ordenamento é de garantir a todo indivíduo o desenvolvimento completo de sua
personalidade?
Uma sociedade na qual o caso mensalão é
apenas um dentre tantos outros envolvendo corrupção gritante, não pode ser
exposto este tipo de assertiva sob pena de resultar numa tentativa de iludir o
cidadão.
Impõe-se apontar para o fato de que há,
no mínimo, passividade dos outros poderes, pois a Constituição estabelece meios
de controle concomitantes entre os poderes estatais na aplicação do check and balances da separação de
poderes. Os meios de controle devem sair do papel e serem levados ao mundo
concreto de forma a não tornar a constituição mero instrumento de legitimação
de convencimento, mas um diploma de normas atuantes e efetivas, chegando a cada
um de seus destinatários da sociedade.
A determinação meramente formal de uma
finalidade, sem dispor dos meios para a sua concretização é esvaziar o seu
conteúdo e utilizá-la como simples discurso de legitimação. É nesta esteira que
se concedem alguns benefícios à maioria da população, gerando certo grau de
contentamento. Daí, temos os exemplos do CDC,
da CLT e a EC 72/13
(PEC das Domésticas).
Estes diplomas reconhecem a desigualdade
social existente no país, mas concedem instrumentos tão somente imediatistas de
resolução, sem atingir a raiz dos problemas. O CDC estabelece indenização
contra o empresário que descumprir alguma das garantias ali especificadas, mas
não combate, por exemplo, o fato de que muitas vezes é mais econômico para o
prestador de serviço não cumprir o estabelecido em lei e responder uma ação do
que realizar a adequação de sua atividade, como ocorre com os bancos e as
operadoras de telefonia.
Nisto temos a passividade dos Poderes
Executivo e Judiciário, no sentido de não fixar vultosas multas e indenizações
para este tipo de práticas. Nos Estados Unidos, o Judiciário aplicava severas
indenizações às sociedades empresárias que causavam danos aos consumidores,
fazendo com que as grandes companhias montassem seu próprio núcleo de resolução
de conflito de maneira a evitar maiores problemas para ambas as partes.
Entretanto, voltando ao nosso país, é
preciso que o indivíduo vá ao Poder Judiciário para tentar obter um direito,
que em tese, está resguardado por lei. Há a utilização da jurisdição para o
retardamento e óbice à realização do que é devido ao particular, que precisa
remanejar tempo e atenção que deveriam ser para o trabalho, para procurar o
Judiciário, refletindo tais efeitos maléficos em diversos aspectos de sua vida
ou simplesmente renunciar, porque os prejuízos podem ser ainda maiores.
O poder controlador concede com uma mão,
sabendo de todas as dificuldades extrajurídicas e o mecanismo se esvazia do
mesmo jeito, desvirtuando a função jurisdicional, mesmo quando ela é bem
intencionada.
Porém, como cobrar uma atuação que não
seja pró-empresário, quando é esta classe que custeia as campanhas eleitorais e
os detentores destes mandatos criam e aplicam estas leis e escolhem os membros
que preenchem os grandes cargos dentro do Judiciário?
Estas premissas aqui expostas fazem
pensar em como o Direito é utilizado como instrumento de opressão sob o manto
democrático, demonstrando como o problema da obtenção da dignidade da pessoa
humana está fora do mundo jurídico, assim como alguns de seus reflexos como o
acesso à justiça e a superlotação do Judiciário, direito à educação, saúde e
erradicação da fome.
É preciso haver uma conscientização dos aparelhos estatais e da sociedade para que o Direito veja sua versão programática alcançada e haja um reflexo mútuo entre uma população preparada e Estado competente a fim de que a nossa Constituição deixe de ser um papel e passe a ser uma norma de caráter concreto.
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* Irapuã Santana do Nascimento da Silva é mestrando em Direito Processual na UERJ.