Direito à propriedade sob a égide da democracia e da lei requer atenção
Não é possível tratar do direito à propriedade sem abordar a sua função social, bem como elementos que gravitam ao seu redor.
domingo, 12 de maio de 2013
Atualizado em 10 de maio de 2013 16:27
Quando falamos em direito à propriedade, este salta à tela. Não é questão simples, pois envolve interesses sociais, políticos e econômicos em jogo e em colisão. Por esse motivo, não deve ser analisado simplesmente sob a ótica do CC/02. Pelo contrário, requer uma leitura e apreciação não só por esse diploma legal, mas, principalmente, a partir da CF/88, passando por outras disciplinas e legislações, considerando aspectos fáticos e humanos. Não é possível tratar do direito à propriedade sem abordar a sua função social, bem como elementos que gravitam ao seu redor.
O art., 1º, caput, da CF/88, determina que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, em linhas gerais, o que significa ser guiado por uma democracia e regido por leis. Além disso, o art., 5º, II e 37, caput, acrescentam que nele as relações jurídicas se pautam pela legalidade.
Igualmente o art. 1º, III, firma a dignidade da pessoa humana, como pressuposto fundamental para o mínimo existencial na vida em sociedade. Já o art. 6º exemplifica alguns direitos sociais, como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho e, frise-se, a moradia. Porém, cumpre também lembrar que o seu art. 196, prevê a saúde como um direito de todos e dever do Estado e, do mesmo modo, o art. 205 assegura a educação como um direito do povo. A lei orgânica do município de São Paulo, por sua vez, em seu art. 235, prevê que "o Poder Municipal, objetivando a integração social, manterá e regulamentará, na forma da lei, a existência dos clubes desportivos municipais [...]".
Enquanto isso, nosso ordenamento jurídico, admite a incorporação de Tratados e Convenções Internacionais, de modo que a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica) foi por ele assimilada.
Vale lembrar que seu art. 26, prescreve sobre o desenvolvimento progressivo, anotando que os Estados-partes se comprometem a conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, entre outras, na medida dos recursos disponíveis, por meio legislativo ou por outros modos.
Ao mesmo tempo, seu art. 21, dispõe sobre o direito à propriedade privada: "1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social".
Já no que compete a Constituição da República, o art. 5º, XXII, estabelece que é garantido o direito de propriedade. Da mesma forma, em seu inciso XXIII, há a previsão da função social da propriedade, igualmente, prevista no Pacto de San José da Costa Rica, bem como em outros diplomas legais, conforme veremos.
O art. 5º, § 1º, da CF/88, afirma que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Contudo, diante dos acontecimentos do mundo real, podemos nos perguntar se, de fato, isso ocorre. Questão que exploraremos melhor adiante.
Por ora, cabe lembrarmos do art. 170, do mesmo texto constitucional, que trata da ordem econômica, que se fundamenta: a) na valorização do trabalho humano; e b) na livre iniciativa. Além de ter por fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, para o nosso objeto de análise, os princípios dos incisos: II - propriedade privada; III - função social da propriedade.
Da leitura desse excerto constitucional, resta-nos clara a inserção do direito à propriedade privada, bem como o necessário atendimento à sua função social no contexto da ordem econômica.
Então, caminhamos ao art. 182, também da CF/88, que prescreve que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, ocorre por diretrizes gerais fixadas em lei, e tem por objetivo: a) ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade; e b) garantir o bem- estar de seus habitantes.
Neste ponto, vale atentar para o disposto no art. 183, da lei suprema. Está sedimentado como requisitos, quanto ao usucapião urbano, que se deve: a) possuir como sua área urbana; b) de até 250m²; c) por cinco anos; d) ininterruptamente e sem oposição; e) utilizando-a para sua moradia ou de sua família; f) desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Além disso, conforme o art. 183, § 2º, "Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez", bem como em seu § 3º prevê-se que: "Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião". De modo que os imóveis e bens dos entes políticos federativos (União, Estados, DF e Municípios) não se encontram sujeitos ao usucapião especial urbano ou rural.
Como dito, inicialmente, no estudo da questão, é necessária uma análise ampla, de forma que, neste instante, recorreremos à lei 10.257/01, o Estatuto da Cidade, que se faz imprescindível para a compreensão do tema.
Logo em seu art. 1º, parágrafo único, está elencado que o Estatuto da Cidade firma normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana para o bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
O seu art. 2º dispõe sobre o objetivo da política urbana, qual seja: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante diretrizes gerais, dentre as quais cumpre destacar:
"I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;"
Igualmente, com fulcro no art. 3º, III compete à União: "promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico".
A análise de todos os dispositivos mencionados do Estatuto da Cidade permite-nos concluir que visando o bem comum da coletividade, do meio ambiente e da Cidade, para atender a função social da propriedade, o governo deve agir articulada e coordenadamente nas três esferas federativas, com o apoio da sociedade, por instrumentos de gestão democrática, onde a busca pelo consenso deve prevalecer, em detrimento do conflito baseado em argumentos desarrazoados e sem fundamentos plausíveis.
Destaque-se a necessidade de construção de moradias populares, o que pode ser feito por todos os entes federativos em cooperação entre si, bem como com a participação dos grupos sociais que habitarão as moradias.
Tendo visto, assim, algumas disposições sobre a função social da propriedade, por outro lado, vale apenas citar o art. 1.228, do CC/02: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", que não pode ser examinado isoladamente.
Voltando a apreciar a função social da propriedade e questões atinentes, mencionamos agora a lei orgânica do município de São Paulo, em seu art. 148, que traz o objetivo da política urbana do município, qual seja: a) ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, b) propiciar a realização da função social da propriedade; e c) garantir o bem-estar de seus habitantes.
Enquanto isso, a lei 11.228/92, do município de São Paulo, quando trata sobre obras e edificações, quanto aos Direitos e Responsabilidades, dispõe: 2.2 - DO PROPRIETÁRIO: Considera-se proprietário do imóvel a pessoa física ou jurídica, portadora do título de propriedade registrado em Cartório de Registro Imobiliário; 2.3 - DO POSSUIDOR: Considera-se possuidor a pessoa física ou jurídica, bem como seu sucessor a qualquer título, que tenha de fato o exercício pleno ou não do direito de usar o imóvel objeto da obra.
Assim, apesar da definição de proprietário, é preciso estudá-la em conjunto com a CF/88. Da mesma forma, o possuidor, para efetivamente caracterizar-se como tal, é preciso que tenha de fato o direito de usar o imóvel, o que deve ser analisado, principalmente, também à luz da Constituição. Com isso, por exemplo, não se justifica o uso de propriedade pública.
Nossa Constituição Brasileira nos colocou sob a égide de uma democracia, balisada por leis. O governo do povo, como último fim deste regime de governo, talvez possa ser questionado quando falamos em propriedade. O que devemos fazer é buscar conciliar o ideal democrático com a realidade política.
A dignidade humana e os direitos sociais, previstos em nossa Lei Suprema, bem como em Tratados e Convenções Internacionais por nós adotados, talvez possam contrapor-se ao direito à propriedade, em alguns casos, uma vez que a sua função social deve ser observada.
Equacionar esses direitos, como dito inicialmente, não é ofício fácil. Devemos considerá-los de forma abrangente e criteriosa. Devemos igualmente lembrar que a Constituição é o seu norte, porém considerando outras matérias.
Finalmente, devemos lembrar que é fundamental considerar os aspectos fáticos e humanos, nesse quadro em movimento, onde as tintas que o colorem devem ser escolhidas pensando não só no presente, como também no futuro, já que uma população com moradia, saneamento básico, saúde, cultura, lazer e educação contribui para o desenvolvimento do país. Para tanto, investir cooperativamente na construção de habitações populares é um pressuposto para isso, com tanto que o diálogo seja conduzido e o ordenamento jurídico respeitado.
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* Nicholas Merlone é advogado.