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O adeus ao meu eterno amigo Saulo Ramos

Saulo Ramos encarnou, em sua pessoa humana, o exemplo e o testemunho do homem bom e generoso - um dos mais completos que conheci em minha vida.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Atualizado às 07:36

No último dia 28 de abril do corrente ano, a Humanidade ficou mais pobre com a morte de meu inesquecível Amigo Saulo Ramos. Amizade querida que se prolongou por 47 anos, quase meio século. No ano de 1964 tive a ventura de recebê-lo no escritório do nosso Amigo e Mestre professor Vicente Ráo, no velho prédio da rua 7 de Abril, 34, 10º andar, em São Paulo. Passamos a ser Amigos de alma e coração e aprendemos a vivenciar a amizade como um dos dons mais preciosos de Deus. Para eterno orgulho santo de minha vida, Saulo Ramos descreve no seu, eternamente seu e nosso "Código da Vida": "No escritório do Ráo, naquele começo, tive o apoio de um advogado fantástico: Ovídio Rocha Barros Sandoval, o discípulo predileto do velho professor. Ficamos amigos incondicionais" (pg. 111).

Éramos jovens, mas nossa amizade caminhou pelo tempo e continuará presente além da vida.

Nosso querido Mestre dizia que "envelhecer é perder amigos". Triste e dolorosa realidade. Saulo partiu para vivenciar novos horizontes e dar continuidade, na presença de Deus, à sua beleza de alma. Ele não morreu, porque nunca morrerá na recordação daqueles que tanto o amaram em vida.

Saulo veio a este mundo de Deus na terra de Brodowski, berço amado de outro gênio - o pintor Cândido Portinari.

Daquela terra partiu "o menino do interior, pescador de bagre e com alguma capacidade de sonhar" para ser poeta e se transformar em um dos maiores Advogados do Brasil de todos os tempos, sendo por primeiro, um verdadeiro homem que honrou a nossa Humanidade. Nunca deixou de ser simples de alma e coração. Seu querido Pai foi sábio ao lhe dizer: "Meu filho, Você pode ter todo sucesso, ocupar cargos importantes, mas nunca deixará de ser um caipira de Brodowski". Ao lado de sua simplicidade tinha em identidade comigo, horror à vaidade. Costumava dizer: o vaidoso é um homem inseguro que procura esconder na vaidade algum desvio de personalidade ou de caráter.

SAULO RAMOS encarnou, em sua pessoa humana, o exemplo e o testemunho do homem bom e generoso - um dos mais completos que conheci em minha vida - e que estava a todo instante a recordar que o homem é uma pessoa a merecer o amor, a generosidade e a dedicação de sua bondade, inteligência, sabedoria, cultura e a beleza de sua alma de poeta fantástico a fazer de seus versos verdadeiras lições de vida e arte.

Era a única pessoa que conhecia a ter um diploma de amigo. Em 2009 quando completei 70 anos, ele me outorgou, também, um diploma de amigo para encantar meu coração.

No escritório da rua 7 de Abril, no ano de 1964, despontava uma das maiores vocações de Advogado de nosso imenso Brasil, capaz de aliar à técnica jurídica e ao conhecimento do Direito, uma inteligência fantástica, com a incrível qualidade de saber expor seu pensamento em escritos de saborosa prosa.

O sucesso na Advocacia não se fez esperar. Memoráveis causas passaram pelas suas mãos de exímio advogado, dando a todas elas o testemunho do seu trabalho, cultura, inteligência e acendrado amor à Verdade e à Justiça

Pode-se de dizer, hoje em dia, sem medo de erro, que SAULO RAMOS faz parte da galeria dos maiores Advogados brasileiros.

O nosso velho, saudoso e querido Mestre professor Ráo costumava dizer: "para o Saulo ser diabolicamente inteligente só falta por enxofre pela boca".

Seu prestígio foi de tal ordem, que toda a Magistratura brasileira, em todos os foros e tribunais deste País, inclusive nos Tribunais Superiores de Brasília, lhe rendeu a mais justificada homenagem.

Em todos os momentos difíceis da Magistratura, especialmente na História recente, quando passou a ser alvo da mais injusta campanha difamatória, Saulo Ramos se destacou como o defensor intransigente de seus ideais. Armava-se cavaleiro e descia à liça para fazer o bom combate de quem, em sua vida, se posicionou em defesa da Justiça.

Em sua vida profissional realizou, de forma viva, as palavras, de rara felicidade, do notável EDUARDO COUTURE: "a advocacia é uma luta de paixões. Se em cada batalha forem enchendo tua alma de rancor, chegará um dia em que a vida será impossível para ti. Terminado o combate, esquece, logo, tua vitória como tua derrota."

No exercício da verdadeira advocacia, deixou lições imorredouras aos seus colegas. De início seguiu a lição deixada pelo professor Ráo: "Primeiro leia a lei de regência e verifique você mesmo o que a norma lhe diz. Reflita e tire suas próprias conclusões. Doutrina e Jurisprudência ajudam, mas são subsídios que se agregam depois" (Código da Vida, p. 256). Em demonstração de que o advogado, diante do cliente, deve lhe proporcionar atenção especial, ensinava: "Na advocacia o sofá sempre começa a ser divã. É preciso ouvir tudo para depois separar as emoções daquilo que possa merecer análise jurídica" (Código da Vida, p. 18). O advogado deve guardar a seguinte verdade: "todo acusado merece, de início, o benefício da dúvida" (idem, p. 22). O advogado não pode ter medo e deve saber que "todo medroso é burro" (p. 56). No exercício da advocacia "devemos sempre nos preparar para o fracasso. Isto torna mais gratificante o sucesso" (p.86). "Em advocacia é preciso pensar, planejar e ter muita calma". (p. 337). Para ele "a mentira dolosa é uma falsificação da alma" (p. 228).

Inúmeras causas passaram por suas mãos.

Uma das mais emblemáticas e carregadas de lições extraordinárias da boa e fantástica advocacia de um verdadeiro mestre é a de Olavo Braz, relatada em seu livro Código da Vida em todas as suas facetas interessantíssimas. Livro que atingiu a marca histórica de mais de duzentos e vinte mil exemplares.

Na época da Ditadura Militar, "defender os acusados de subversão, ou de serem comunistas, era penoso", além de perigoso. Saulo não teve medo. Foi advogado de vários dos chamados "subversivos". Qualquer pessoa que, por um ideal político ou filosófico, não se conformasse com a ordem ditatorial existente, recebia dos órgãos de segurança do regime o rótulo de "subversivo" ou de "comunista" e o Ministério Público o denunciava perante a Auditoria de Guerra, órgão judiciário militar de primeira instância. Portanto, o sistema entendia que "a defesa estava advogando contra o regime, e os advogados, em geral, corriam o risco de serem coniventes com os atos de seus clientes". Tristíssima confusão com o exercício legítimo da advocacia em defesa de um réu acusado do crime de "subversão". Na vigência desse clima absurdo, perigoso, fez a defesa do saudoso e eminente professor Florestan Fernandes, um dos maiores mestres da Sociologia no Brasil que era réu em processo também movido contra outro professor ilustre de Sociologia - Fernando Henrique Cardoso. Em julho de 1966 Saulo Ramos ingressou com Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça Militar em favor do professor Florestan e a ordem foi concedida pelo Tribunal Militar para excluir o professor Florestan da ação penal. Posteriormente, o professor Fernando Henrique Cardoso, também foi excluído da ação penal, pela jurisprudência já firmada. Naquela época,"o comunista e o socialista eram criminosos, O advogado era bruxo. A escuridão era total".

Nesse escuro período, aconteceu um caso que reputo de rara genialidade e por mim, também vivido, no velho prédio da rua 7 de Abril. Luiz Carlos Prestes era líder comunista famoso e tinha a idéia fixa da revolução comunista no Brasil à semelhança daquela que ocorreu na Rússia em 1917. Em razão disso viveu muitos anos na União Soviética, ma sempre retornava ao Brasil com fixação doentia na idéia revolucionária. Em uma dessas vindas, os órgãos de segurança apreenderam as chamadas "cadernetas Prestes" contendo anotações feitas pelo líder comunista e contendo nomes de diversas pessoas, que foram denunciadas à Auditoria de Guerra pelo crime de subversão. As cadernetas eram a única prova da subversão.

Saulo Ramos foi advogado de vários dos denunciados com base nas anotações das cadernetas Prestes. As cadernetas continham frases que demonstravam desorganização mental do seu autor e poderiam, muito bem, levar a defesa a um exame pericial na pessoa daquele senhor ou tomar o seu depoimento pessoal, mas não era possível realizar um ou outro - Prestes estava fugido na União Soviética. Saulo Ramos, então, apresentou um requerimento na Auditoria de Guerra, em que postulava que as anotações contidas nas cadernetas passassem pelo crivo da análise científica e saber se necessidade havia de exame direto na pessoa de Luiz Carlos Prestes para aquilatar se na sua idade não poderia padecer de uma espécie de esquizofrenia paranóide, "em cujo quadro clínico predomina a tendência de um sistema delirante mais ou menos estruturado, geralmente num misto de grandeza e perseguição" (Código da Vida, p. 187).

Seu intuito de genial advogado era no sentido de que julgado necessário o exame direto na pessoa de Prestes, pela análise científica de seus escritos, enquanto não fosse examinado pessoalmente, permaneceria a dúvida e ninguém poderia ser condenado com base em suas cadernetas. Tacada de mestre.

Os casos famosos em que atuou contam-se às centenas, em mais de 50 anos de intensa advocacia de um mestre inigualável.

Sua personalidade multiforme o levou a ser um jornalista e articulista fantástico. Escreveu crônicas e artigos notáveis, com o sabor de sua inteligência, de sua cultura humanística, aliadas a um fino humor e ironia próprias de quem sabe escrever bem para o deleite de seus leitores. Ninguém deixa de se deliciar e aprender com suas crônicas e artigos. Vários deles são antológicos, até mesmo na previsão de acontecimentos futuros e certos de nossa realidade e da realidade do mundo.

Em coroamento de sua vida de amor ao Direito, foi levado ao honroso cargo de Consultor-Geral da República e de Ministro da Justiça no Governo do Presidente José Sarney. Na Consultoria e no Ministério ofertou uma contribuição extraordinária em todos os ramos da vida pública. Seus pareceres, na Consultoria-Geral, não apenas retratavam o perfil do Jurista, como expressavam a visão de inteligência e de dedicação à causa pública de um Homem carregado de Amor pelos destinos de nosso Brasil. Postura reiterada no Ministério.

Quando de sua passagem pela Consultoria-Geral, viveu o Brasil a época da Assembléia Constituinte. Assim sendo, foi chamado a viver aquele momento decisivo, em especial diante da redemocratização de nosso País. Antes já havia ofertado a sua contribuição, quando participou da denominada Comissão Afonso Arinos, que havia ofertado um Projeto de Constituição para o Brasil.

Na Consultoria-Geral desenvolveu papel fundamental para incutir nos parlamentares uma realidade, que fingiam desconhecer - especialmente seus líderes mais eminentes - qual seja de que o Congresso, naquela oportunidade, se constituía em um poder constituinte derivado e não originário, como pretendiam. Logo, um poder constituinte derivado estava limitado a reconhecer que houve o plebiscito em 1963 que optou pelo Presidencialismo e não pelo Parlamentarismo, como forma de governo. Não poderia, assim, implantar-se na nova Constituição o Parlamentarismo como forma de governo, como queriam aqueles parlamentares liderados, especialmente, pelo senador Fernando Henrique Cardoso.

Impediu, assim, que o Parlamentarismo fosse instituído e um desastre seria sua implantação por contrariar a tradição política brasileira da era republicana e diante da realidade fragílima dos partidos políticos que temos.

Criou no texto constitucional a Advocacia-Geral da União e a partir daí passou a União a ter advogados para defendê-la, entre tantas outras conquistas e sugestões nascidas de sua fantástica inteligência de homem público.

Entendo que a Constituição seria bem melhor se várias das sugestões de Saulo Ramos fossem aceitas, inclusive no que diz respeito à Medida Provisória que foi estruturada no texto constitucional para ter vigência adequada no regime parlamentarista de governo e não no presidencialismo. Daí a situação difícil que a Medida Provisória criou em nossa sistemática constitucional, especialmente quanto ao processo legislativo.

Como Ministro da Justiça, entre inúmeras iniciativas de governo, coube a ele criar a impenhorabilidade do bem de família concretizada na lei n. 8009/90, tendo a antecedê-la Medida Provisória por ele redigida.

Brindou Ribeirão Preto com a letra de seu hino oficial. A partir de um poema seu, a saudosa maestrina Diva Tarlá musicou a sua letra. Caminho inverso àquele trilhado em outros hinos oficiais - primeiro vem a música e depois a letra.

Nos últimos 26 anos conseguiu realizar em plenitude o sonho acalentado de ter uma família. Para tanto, encontrou a Eunice, sua querida Santinha, que lhe trouxe um imenso Amor e a alegria de agregar ao seu coração de pai, além do Fernando, a doce Márcia que, no último dia 25 de abril, ofertou ao Saulo o nascimento de seu neto Antônio. Em seu poema "A Primeira Vez", dedicado a Eunice, encontra-se uma das manifestações poéticas mais bonitas, que li um dia, Na sinceridade dos versos está a elegia à mulher amada, fina flor a adornar a sua existência. Como são bonitos os versos: "nasceu a orquídea no velho tronco, floriu a hera no muro antigo" e em sentimento profundo diz ser "a mais primeira do que as outras e, pela primeira vez, tenho a certeza, que não tive antes: a de ser esta a última primeira vez". Que beleza! Em outro poema a ela dedicado, termina por dizer: "Em todos os momentos, para lá dos tempos, eu te amarei".

Quem sabe, meu querido Amigo, esteja a descobrir a profundeza dos versos que estão em seu antológico "Recado ao Caseiro":

"É possível que eu esteja tentando decifrar
a rápida matemática do beija-flor,
e perguntando porque a noite
apaga o colorido do seu vôo.
É possível que esteja descobrindo
quantos anos cabem numa hora,
quantos séculos têm uma semana,
quantos milênios têm o inverno".



Pelo que foi, por sua vida de Amor sem limites, pela beleza de sua alma, Você estava maduro para o Céu!

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1 "Para o Saulo ser diabolicamente inteligente só falta por enxofre pela boca".

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Rocha Barros Sandoval & Ronaldo Marzagão Sociedade de Advogados

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