A proibição de cobrir o rosto em estabelecimentos comerciais
Até que ponto a lei estadual 14.955, de SP, pode interferir em liberdades fundamentais, como a de crença e a de ir e vir.
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Atualizado em 17 de abril de 2013 14:25
Imagine que você tem uma joalheria, e que na porta da sua loja às 20h se apresentam cinco pessoas vestindo capuzes pretos que cobrem quase o rosto inteiro. Você se valeria de uma lei que proíbe essas pessoas de entrar em seu estabelecimento comercial? Suponhamos que sim. Agora imagine que no dia seguinte cinco pessoas com véus que permitem apenas entrever seus olhos parem perante a mesma entrada da sua joalheria, coincidentemente também às 20h. Você se valeria da mesma lei para impedi-las de entrar?
No dia 12 de março o Estado de São Paulo editou uma nova legislação que proíbe o ingresso ou permanência nos estabelecimentos comerciais de pessoas que estejam utilizando "qualquer tipo de cobertura que oculte a face". Até 60 dias após a publicação desta lei os estabelecimentos devem afixar em sua entrada uma placa indicativa da proibição, sob pena de multa de R$ 500,00. A lei estadual 14.955 visa a combater a recente onda de assaltos perpetrados por motociclistas, que entram nas lojas sem retirar o capacete. Mas há o risco de esse disparo legislativo ricochetear em direitos tão fundamentais quanto a propriedade dos comerciantes: as liberdades de crença e de ir e vir.
Não são poucas as normas em prol da segurança que já foram utilizadas de modo a instrumentalizar atos contrários ao espírito do ordenamento jurídico de um Estado. No Reino Unido, por exemplo, uma segurança do aeroporto de Heathrow foi dispensada imotivadamente durante a implantação de medidas antiterroristas, e seu superior lhe disse que esse era "um daqueles casos em que não se pode nem mesmo dar uma dica do porquê" da dispensa. No Quebec, uma moça que havia sido aprovada nos testes preliminares para ser guarda prisional foi inicialmente recusada para o cargo por usar o hijab, um véu que cobre apenas o cabelo, as orelhas e o pescoço. Mas não é preciso ir muito longe: no Brasil já se constatou em diversos casos que o direito patronal de revista é exercido de modo a ferir a dignidade dos trabalhadores revistados, que são paliativamente indenizados por danos morais.
Para impedir distorções como estas, é preciso atentar para que a lei estadual 14.955 não seja proibitiva da locomoção e da prática religiosa das mulheres muçulmanas, que devem ter a liberdade de entrar e permanecer em qualquer estabelecimento comercial, público ou privado. "A muçulmana usa o véu não por uma opção, escolha ou simplesmente por que acha que é bonito, e sim por uma obrigação religiosa, e isso deve ser respeitado, assim como também devem ser respeitadas todas as outras religiões", comentou o Xeique Al-Khazraji, líder religioso do Centro Islâmico no Brasil.
Por um lado, a preocupação com a não identificação dos indivíduos em razão do véu ou da burca teve suas motivações em alguns momentos históricos. Durante a luta argelina para conquistar a independência da França, por exemplo, integrantes de grupos terroristas vestiam burcas para perpetrar atentados e escapar incógnitos. O mesmo ocorreu na recente guerra do Afeganistão. Por outro lado, também não são infundadas as preocupações da comunidade muçulmana, que contemporaneamente assiste a uma onda de críticas europeias ao uso do véu e da burca, pelos mais variados motivos.
Efetivamente, no ano de 2004 uma lei francesa proibiu o uso de símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas, e seus idealizadores lhe atribuíram o status de corolário do laicismo do Estado francês. A lei vedou o uso de quaisquer símbolos ostensivos, como o quipá judaico, as grandes cruzes cristãs e os turbantes sikhs. Entretanto, a polêmica inicial surgiu sabidamente com relação ao véu muçulmano. Além disso, a referência aos objetos proibidos na lei francesa ("símbolos religiosos ostensivos") é marcadamente genérica, como o é a expressão de que se serve a lei estadual paulista (que fala em "qualquer tipo de cobertura que oculte a face"). O Poder Legislativo francês declaradamente se valeu da expressão mais ampla possível, para que abarcasse todos os objetos existentes. Em seguida, em 2010, a França aprovou uma legislação que proibiu o uso das burcas.
Entretanto, é preciso avaliar o contexto em que estas preocupações com a segurança têm razão de ser, e quais os seus limites. Na terra brasilis dos dias de hoje, uma inflação da fobia do véu não se justificaria. De forma conciliadora, o Xeique Al-Khazraji afirma que "Mais importante do que a situação pessoal do indivíduo é a segurança de toda a sociedade, que precisa ser preservada através de leis e regulamentações que devem ser cumpridas por todos, sem nenhum privilégio. Ao mesmo tempo, os legisladores devem ficar atentos para que esta lei [paulista] não possa ser motivo de abuso ou ofensa à liberdade no Brasil".
De fato, a Constituição Federal estabelece que é inviolável a liberdade de crença religiosa, bem como assegura que ninguém será privado de seus direitos em razão de sua crença. Todavia, a Constituição também prevê que a religião não pode ser invocada por um indivíduo para eximir-se de obrigações legais impostas a todos. Claramente há aqui um aparente conflito de normas - as mulheres muçulmanas podem usar o véu no livre exercício de sua religião, ou não podem se eximir de mostrar o rosto quando entram nas lojas, como todos os outros devem mostrar?
Infelizmente não é possível, como se diz, comer o bolo e ficar com o bolo. É preciso ponderar as alternativas e apresentar uma resposta, que invariavelmente beneficiará uma parte em detrimento da outra. A conclusão mais razoável após uma sopesagem das duas opções é que as mulheres que em sua convicção religiosa querem usar o véu devem poder fazê-lo sem prejuízo dos seus direitos de ir e vir, e de sua liberdade religiosa. Dito sem evasivas: é preciso que os estabelecimentos comerciais corram, algumas vezes, certos riscos, a fim de que o direito fundamental de liberdade das mulheres muçulmanas não seja violado via de regra. Ademais, a impossibilidade de entrar em qualquer loja seria uma restrição extremamente gravosa num mundo capitalista, sem mencionar as dificuldades que seriam causadas por não se poder entrar em farmácias, por exemplo.
Neste contexto, impedir a entrada e permanência dessas mulheres em estabelecimentos comerciais poderia ser entendido como um abuso de direito do comerciante. A figura do abuso de direito se caracteriza quando há uma situação em que a lei não é violada em sua literalidade, mas é extrapolada no que toca aos seus fundamentos e fins. Assim é que impedir uma muçulmana com o rosto coberto de entrar em uma loja, embora não seja contrário à letra fria da lei, está na contramão dos valores do ordenamento jurídico brasileiro e da finalidade específica da lei paulista, que é voltada principalmente a motociclistas, e que além de capacetes menciona apenas bonés, capuzes e gorros.
Os países de tradição jurídica anglo-saxônica têm um provérbio segundo o qual "bad facts make bad law". Este ditado expressa que as leis feitas em resposta a comoções do povo e espetaculizações da mídia são geralmente elaboradas com uma pobre técnica legística, tanto por causa da precipitação quanto por causa da carga emocional envolvida. É o caso da lei estadual 14.955, com suas generalizações imprecisas e suas reticências, embora tenha a intenção positiva de prevenir os crimes contra a propriedade.
Enfim, a comunidade muçulmana não deve ser penalizada pela nova legislação estadual paulista. Se a intenção desta lei não é discriminatória, sua práxis também não pode sê-la. Neste cenário, cabe ao Poder Judiciário corrigir as deturpações da lei, evitando que eventuais discriminações pontuais se tornem institucionais. Otimista, o Xeique Al-Khazraji conclui: "Não acredito que [a lei paulista] terá o mesmo efeito [que a lei] da França, pois o povo brasileiro provou que é um povo solidário com as minorias, sejam elas religiosas ou sociais". Insha'Allah!
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* Naíma Perrella Milani é advogada do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados.