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A coisa julgada e a sua relativização

A coisa julgada e sua relativização é o tema abordado pelo advogado migalheiro.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Atualizado em 8 de março de 2013 13:43

"As grandes coisas não se obtém através da força
muscular, a velocidade ou a potencialidade física,
mas através de reflexão, a força de caráter e o juízo
"

Cícero

I - Da abertura

Quem, como o advogado brasiliense Marcus Flávio Horta Caldeira, tem num livro de sua pena o ministro José Carlos Moreira Alves como prefaciador, certamente, é-lhe permitido orgulho pouco usual pelo fato. E, alitero certamente, porque seu escrito, sobre ser polêmico e necessário a todos os envolvidos no mundo jurídico, põe à calva o estado de parte de nossa massa crítica judiciária, que se converteu em legisladora, sem, todavia, a sagacidade e o sentido social e humanista das criticadas decisões gauchas, sobre o "direito alternativo"1.

Pois é "Coisa Julgada e Critica à Sua Relativização"2 sacode o regaço matreiro da nova roupagem que se dá, nas cortes, ao instituto que nos legou o direito romano. E fá-lo com elegância, discernimento e propriedade, quão é imaculada a probidade intelectual do seu autor.

II - Do prefácio

Este escrito pecaria, deixando de, em passar ao largo, o brevíssimo prefácio - menos de duas páginas - do Ministro Moreira Alves. E dele, parco em palavras, ouso reduzi-lo às ideias matrizes:

1. O tema do livro é atual e "bastante controvertido".

2. Aborda o que já dissera Calamandrei, "para a jurisdição atender a seus objetivos, o processo deverá, em determinado momento, prover uma decisão definitiva sobre a demanda, não podendo eternizar-se, sob pena de se tornar inútil"...

3. Abrigando o sistema jurídico pátrio remédios heroicos da revisão da coisa julgada material, a vetusta ação rescisória, a ação de querela nullitatis (que o direito romano nos legou com elegância), a impugnação por erro material ou de cálculo e a discutida impugnação de sentença inconstitucional fundada em entendimento do STF. Neste último, foi embutida a "relativização" da coisa julgada, que, ao sentir do autor da obra em comento, sofre de inconstitucionalidade, porque, - e isso é a ruína dos pilares democráticos da coisa julgada -, a qualquer tempo, mesmo passados os prazos legais, dá-se ao STF a oportunidade vexatória, na democracia, de revisão a qualquer tempo de uma sentença passada em julgado.

4. Ora, pois, conclui o Ministro Moreira Alves, o livro de Marcus Flávio abre as portas, para o atento leitor, tomar posição, diversa ou não dele, e, caso probo - é o que avanço - menoscabá-lo.

Quem toma posição, com fervor, paga um preço, ainda que avance com seus conhecimentos e convicções e seus pés na busca da verdade. Assim, em baila, o livro e seu autor.

III - A estratégia para criar a "relativização"

Suso dissemos que ela "ab ovo" advém e gerada foi do instrumento, com força legislativa, donde ser inconstitucional, de sentença da mesma corte, sob a ótica do STF.

A paternidade da "relativização", com elegância, Marcus Flávio, atribui, reverenciosamente, ao Ministro José Augusto Delgado (aposentado do STJ). E debulha vários artigos por ele escritos e disseminados em revistas especializadas, a partir do ano de 2001.

Patrão de uma dialética caprichosa, faz a alquimia do princípio, "soi disant", coleciona argumentos em prol da moralidade, da legalidade, enquanto o direito é, para o direito ser jurisdicionado. Apoda os seus argumentos de "novas ideias" (p.189), para salvar a honra do Poder Judiciário malferida e, a fortiori, o Ministro José Delgado arremata: "Consoante se observa, é perfeitamente constitucional a alteração do instituto da coisa julgada, ainda que a mudança implique restringir-lhe a aplicação, na criação de novos instrumentos de seu controle, ou até na sua supressão, em algum ou todos os casos" (p.190).

A gênese desta catequese lembra-me a perfeição evangélica, levada a modificar, alterando in totum, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, porque o valor de terrenos incultivados foi, após prova pericial com o Estado intervindo como parte, julgada favorável ao desapossado, num valor desproporcional.

Invocou princípios éticos, morais, e outros, de toda a sorte, a permitir, com talento, a vitória da sua ideia à força e eficácia de persuadir, muito mais do que, como escrevia Mário Gonçalves Viana, ou "quanto à força e eficácia de persuadir, muito mais fortemente apertava e persuadia Heráclito chorando, que Demócrito rindo"3.

Deste leading case onde foi subtraída acelerada omissão da defesa de São Paulo, bem como a "cegueira" de juízes, desembargadores e peritos oficiais, além de evidente prevaricação de alguns defensores públicos, levou-o até perorar, "não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta por natureza" (p.193).

Com os louros conseguidos, sem qualquer juízo ético dos julgados rescindidos, faz-se imprescindível recorrer ao Padre Vieira, que teve a coragem de escrever: "Os ministros hão de ser como as leis; as leis hão de ser de poucas e bens guardadas; e os ministros poucos e escolhidos"4.

O ministro Delgado, avançando na sua teoria, legislou, porque, como escreveu o célebre Emile Faquet, em o "Culto da Incompetência", repetindo Sólon, na magistral sentença, crava que "dei-lhes as melhores leis que podem suportar".

Ao derradeiro, esparramando a teoria, contando-se trinta e uma hipóteses (p.193/194) de precedentes de "sentenças injustas" e "inconstitucionais"; dezenas de ideias sobre a relativização, em temas dos mais variados (p.196/198), para arrematar: "as possibilidades de 'relativização' da coisa julgada material são amplíssimas, não estando sujeitas a prazo em forma definida" (p.199)

Seus seguidores, cada um agregando um elemento novo, Humberto Theodoro Júnior, Juliana Cordeiro de Faria, Cândido Rangel Dinamarco, Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina, Alexandre Freitas Câmara, Sérgio Bermudes, Teori Albino Zavascki, Araken de Assis, Ellen Gracie, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes (p.199/243).

IV - Para que serve a Justiça?

Para o mundo capitalista, em que os valores são considerados enquanto mensuráveis econômica ou financeiramente, a Justiça é a garantia de que o exercício do Poder se faz com plena garantia do Estado. O Estado é fim, não meio, para o ser humano exercitar seus direitos e cumprir com seus deveres. Já Alvin Tofler, nos idos de 1968, mostrava as tendências que o Estado Leviatan Iria engolfar tudo, dando o poder a poucos e estes criariam necessidades, supérfluas para a vida comum e haveria todo um arcabouço para enganar o povo miúdo e os jovens benestantes por meio da luxúria e do gozo desenfreado. Isso aconteceu.

Ora, não poderia deixar de refletir esse procedimento demonicamente na própria estrutura do Estado, em que a tripartição dos poderes apenas existiu, a partir de então, no papel, como verdadeira ficção. Pior ainda: juristas de renome passaram a dar apoio ao Estado e suas maquinações políticas, transfigurando os verdadeiros princípios da democracia.

Quem estudar a história do direito no século XX, com seriedade, sem interesse subalterno, perceberá que o processualismo dominou a concretização do direito na seara judiciária (confiram-se os eventos ocorridos na Alemanha Nazista, na Itália Fascista e da China Maoísta). Eternizam-se os processos, em detrimento da aplicação e distribuição da Justiça, mormente aos pobres e aos oprimidos.

De repente, saindo dos escritórios de advocacia norte-americana, - os mais reputados - a ideia de que é melhor desfigurar o Poder Judiciário dos países emergentes, com a sutileza de que, caluniando, os magistrados com ápodos de corruptos, lenientes, mal preparados etc., fariam vingar que a ideia do Estado Direito ("imprensa livre", legislativo aberto, "eleições", tribunais funcionando, sucessão nos poderes) deveria prevalecer sobre a Democracia no sentido ontológico, vivenciado.

Então, consumada (des) organização da sociedade, através de lobbies poderosos, com dinheiro esparramado no legislativo e nas organizações governamentais, vamos acompanhando a processualização do direito em detrimento do seu fim; a criação de tribunais de arbitragem, fazendo ablação estatal da distribuição da justiça, dando-lhes poder de fazer o que seus interesses ditarem; leniência com os autores dos escândalos financeiros, que são elaborados por escritórios de advocacia (Enrom, Parmalat, etc.) com punições pífias; desrespeito aos direitos humanos (Wikileaks, Guantamano, assassinatos premeditados sem autoria conhecida mas ordenados por altos escalões) e assim por diante, sobressaindo a cruel lavagem de dinheiro espúrio (drogas, corrupção, armas, minerais estratégicos) por meio dos bens protegidos paraísos fiscais. Sobre eles, um dia haverá de acontecer a punição que não surge da terra...

Neste estado de atos, fatos, coisas, acontecimentos, navega o Poder Judiciário, amordaçado pelas construções esotéricas processuais, para escapar do exame do mérito. Ou, o que é letal, essa malfadada "relativização" da coisa julgada, subverte a garantia dos legítimos direitos dos cidadãos.

V - Que pensa e conclui Marcus Flávio Horta Caldeira sobre a "relativização" da coisa julgada ?

Esmiuçada a obra de Marcus Flávio permito-me fazer algumas digressões a lattere sobre o que apreendi da leitura e digeri como cidadão, após meio centenário de foro.

Não podemos anular o delírio que foi provocado com a "reversibilidade", porque a vida é feita como foi feita pelos seus personagens.

Agora, quem conhece a si mesmo, cunhando sabedoria, sabe, como disse Walter Benjamin: "A felicidade consiste em capacitar-se de si mesmo, sem espantar-se".

Para conduzir-se, preciso ser livre.

Primeiramente, sou livre da pressão que me submeto. E pasmem, a liberdade de pensamento ninguém me pode tolher. E mais, esta liberdade eu a exprimo também no fato de dizer o que penso. Frente ao que coloquei, com calma, afirmo ser livre de ser aquilo que sou, pois esta é a verdadeira liberdade, que aumenta com os anos.

Não acredito em quem faz construções metafísicas para escrever a "reversibilidade", quando não creio que estamos numa Democracia, quando assisto dezenas de julgamentos, que escapam do mérito e se submetem a ordenamentos esotéricos, inclusive - e choro e lamento - com a designação de audiências públicas para "justificar" a eficácia do amianto, a pertinência inofensiva dos agrotóxicos, a ausência de efeitos cancerígenos das redes elétricas e quejandos. Esses julgadores nolens volens se preparam à morte, como disse Jung, abrindo campo para mortes coletivas.

Marcus Flávio escreve um Auto de Fé em prol da legalidade, na sua conclusão, (p.319/334), demarcando os campos do bem e os do mal. Defende, com intransigência, princípios e, dele, extraio, neste arremate: "A coisa julgada, além de ser uma garantia constitucional para as partes do processo, para a sociedade e para o próprio Estado, objetiva resguardar a garantia da definitividade prestação jurisdiciona"l.

Não é viável a tese da desconsideração da coisa julgada com base em critério aberto como "justiça", ainda que "grave", "séria", "abusiva", haja vista seu subjetivismo, o que sempre permitiria a impugnação da parte inconformada" (p.332).

A disciplina rigorosa pautou a obra de Marcus Flávio, tanto que, como lembra o apotegma: "Quem luta sem método, luta em vão". Venceu, no labirinto, com o descobrimento da vida, nessa questão no Judiciário. Dessa forma, o livro escrito por Marcus Flávio testemunha a sua ciência, a sua consciência e seu refinado intelecto.

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1O jusfilósofo Goffredo Telles Jr., imorredouro para várias gerações que cursaram as Arcadas em São Paulo, cuidando da disciplina da convivência humana com razão referindo-se ao princípio ético onde no seu mundo as normas adquirem a natureza de mandamentos, diz que são indicativas e volve-se a Jesus Cristo e as copiosas citações sobre o mandamento "Ama teu próximo como a ti mesmo". Escreve Goffredo: "O mandamento de Jesus não é jurídico evidentemente. Não é jurídico porque não é autorizante. Se for violado, o lesado pela violação - o carente de amor - não fica autorizado a exigir o cumprimento dele. ninguém pode exigir o amor que lhe é negado. Mas exprime um conselho. Nele está a recomendação mais preciosa para a segurança do entendimento, no processo da convivência humana. Nele está a inicial inspiração, a recomendação liminar, da qual a Inteligência infere - de conjuntura em conjuntura, de degrau em degrau - todos os imperativos e todas as interpretações válidas das disposições jurídicas". (A Criação do Direito, 2004, p.478, Editora Juarez de Oliveira)

2Thesaurus, Brasília, 2012, 342 p., ISBN 978-85-409-0074-5

3Padre Antonio Vieira, Sermões, comentários de Márcio Gonçalves Viana, EEN, Porto, 1947, p.209

4Padre Vieira, idem, p.85

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*Jayme Vita Roso é advogado e fundador do site Auditoria Jurídica.








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