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Obsolescência programada: breves notas

A cada dia surge diversas demandas judiciais que visam coibir uma prática comercial abusiva: a obsolescência programada.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Atualizado às 08:18

No início do século XX, consolidou-se no Brasil a chamada sociedade de consumo, formação que é caracterizada pelo pleno acesso ao consumo e uma insuficiência de informações para que se possa consumir com eficiência, garantia e segurança1. A percepção desta configuração social é muito nítida no âmbito da comunicação de massa, das mensagens publicitárias, da incitação à aquisição ou contratação de produtos ou serviços.

Para o filósofo e sociólogo Gilles Lipovetsky, vivemos atualmente uma segunda modernidade, desregulamentada, globalizada, marcada pela primazia do aqui-agora e que se alicerça em três premissas: o mercado, a eficiência técnica e o indivíduo. Testemunha-se na sociedade hodierna a aceleração do ritmo das operações econômicas e uma explosão dos volumes de capital que circulam no planeta, além das transformações vertiginosas da tecnologia2.

Observa-se que dentro deste contexto estão surgindo, cada dia com maior frequência, diversas demandas judiciais que visam coibir uma prática comercial abusiva que, infelizmente, é bastante corriqueira: a obsolescência programada ou obsolescência planejada3.

Trata-se de uma estratégia dos fornecedores para estimular a aquisição de novos produtos em um curto período de tempo, objetivando, com isso, alavancar suas vendas e, consequentemente, aumentar seu lucro. Bruno Miragem define esta prática - que é, na verdade, discutida desde a década de 1920 - como a "[...] redução artificial da durabilidade de produtos ou do ciclo de vida de seus componentes, para que seja forçada a recompra prematura"4.

No âmbito do sistema de proteção e defesa do consumidor, entende-se como prática comercial abusiva qualquer conduta desleal, que abuse da boa-fé impondo a superioridade ou a vontade do fornecedor em detrimento não apenas do consumidor, mas de todas as pessoas a ela expostas5.

Deve-se diferenciar, todavia, a estratégia da obsolescência programada da simples disponibilização, no mercado, de novas versões dos produtos ofertados.

Com efeito, o próprio Código de Defesa do Consumidor estabelece que um produto não pode ser considerado defeituoso caso outro de melhor qualidade seja disponibilizado no mercado (art. 12, § 2º, CDC). A respeito, Rizzatto Nunes ensina que a intenção do legislador ao inscrever tal dispositivo foi de salvaguardar os produtos menos avançados tecnologicamente: estes não podem ser considerados viciados apenas por sua inadequação tecnológica6.

O que a legislação consumerista determina é que os produtores mantenham a oferta de componentes e peças de reposição no mercado enquanto não cessar a fabricação ou a importação do produto. E, quando isso ocorrer, a oferta de tais peças deve ainda perdurar por um período razoável de tempo, prazo que deverá ser compatível com o tempo de vida útil normal do equipamento (art. 32, parágrafo único, CDC).

Assim, na hipótese de serem lançadas novas versões ou edições de produtos, os fornecedores deverão oferecer meios para que aqueles já adquiridos pelos consumidores permaneçam funcionando adequadamente até que precisem ser descartados em função de seu desgaste natural.

As técnicas empregadas para burlar esta regra caracterizam a prática da obsolescência programada, pois artificialmente antecipam a perda de utilidade ou funcionalidade do produto em manifesta violação aos direitos dos consumidores, contribuindo com a elevação do seu grau de vulnerabilidade perante o mercado.

O tema foi recentemente analisado pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Recurso Especial 984.106, realizado em 4/10/2012. No acórdão, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, foram citados como exemplos desta prática: "a reduzida vida útil de componentes eletrônicos (como baterias de telefones celulares), com o posterior e estratégico inflacionamento do preço do mencionado componente, para que seja mais vantajoso a recompra do conjunto; a incompatibilidade entre componentes antigos e novos, de modo a obrigar o consumidor a atualizar por completo o produto (por exemplo, softwares); o produtor que lança uma linha nova de produtos, fazendo cessar açodadamente a fabricação de insumos ou peças necessárias à antiga"7.

Tais considerações culminam em outra análise obrigatória: a necessidade de se praticar o consumo consciente. Com efeito, uma das consequências do modelo de sociedade de consumo é a existência de uma grande quantidade de pessoas que, de um modo geral, não se responsabilizam pelo impacto que o consumo dos produtos terá no meio ambiente depois do seu uso e descarte8.

No Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, elevou-se a proteção ambiental ao status de direito fundamental do indivíduo e da coletividade, consagrando-a como um dos objetivos fundamentais dentro do Estado Brasileiro.

Ocorre que o meio ambiente ecologicamente equilibrado pressupõe a manutenção de níveis equiparados de extração e reposição dos recursos naturais. Isto significa que a matéria-prima retirada do meio ambiente somente pode ser devolvida a ele em condições similares às anteriores, a fim de se garantir a sua manutenção também para as futuras gerações9.

A oferta e a aquisição desmedidas de novos produtos, especialmente os tecnológicos que apresentam aprimoramentos mínimos, seguida pelo descarte da versão anterior, contribuem com o esgotamento dos recursos naturais, talvez tanto quanto o exercício ilícito de técnicas de obsolescência programada o faz.

Tais ações, em última análise, obstam o alcance do patamar de sustentabilidade preconizado na Constituição da República de 1988, que objetiva a harmonização das boas condições de vida com o meio ambiente equilibrado, como insinua Federico García Lorca em seu poema: "Verde que te quiero verde. Verde viento. Verdes ramas. El barco sobre la mar y el caballo en la montaña"10.

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1SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 11-12; 32; et. seq.

2LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Tradução: Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004. p. 49, 54, 55, passim.

3Conforme se intitula na obra: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 129.

4MIRAGEM, Bruno. Vício oculto, vida útil do produto e extensão da responsabilidade do fornecedor: comentários à decisão do Resp 984.106/SC, do STJ. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 85, p. 325 et. seq., Jan. 2013.

5EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 216.

6NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 258-259.

7BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 984106. SC. Julg. 4/10/2012. Acesso em: 25 fev. 2013.

8EFING, Antônio Carlos; BERGSTEIN, Laís Gomes. A justa imposição legal de responsabilizar o consumidor na realização da logística reversa visando à sustentabilidade. In: XX Congresso Nacional do CONPEDI, 2011, Vitória/ES. Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. p. 3686.

9Ibid.

10LORCA, Frederico García. Romance sonámbulo. Sec. XX.

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*Laís Gomes Bergstein é advogada do Escritório Professor René Dotti.

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