Alcoolismo no trabalho
Os efeitos do vício em álcool são velhos conhecidos, mas não compete ao patrão assumir responsabilidades que não lhe cabem: assim opina o jurista.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Atualizado às 07:11
Jurisprudência recente da Justiça do Trabalho absolve empregado alcoólatra, para condenar o empregador que o demitiu pela prática de falta grave, apoiado no art. 482, f, da Consolidação das Leis do Trabalho.
A CLT, neste aspecto inalterada desde 1943, prescreve, no mencionado dispositivo, provocar justa causa para a rescisão do contrato de trabalho, "embriaguez habitual ou em serviço".
Ao comentar o dispositivo ensina Délio Maranhão, nas Instituições: "Trata-se, aqui, a rigor, de duas faltas. Uma importando na violação da obrigação geral de conduta do empregado, refletindo-se no contrato de trabalho (embriaguez habitual); outra, violação da obrigação específica de execução do contrato (embriaguez em serviço)"1. Assinala o saudoso jurista que é permitido ao juiz abrandar a penalidade, quando se trata de trabalhador com ótimos antecedentes, que incidiu na falta uma única vez, por haver "sofrido desgosto íntimo".
Na doutrina de Martins Catharino "A embriaguez habitual é a que resulta de vício e determina a incontinência de conduta. Tomar aperitivos, coquetéis, beber às refeições, ainda que freqüentemente, mas com moderação, não constitui justa causa. Ao contrário da embriaguez contumaz, completa ou acentuada, mesmo nas horas de lazer, fora do local de trabalho, mas que torna o empregado carecedor da confiança e elemento nocivo à ordem empresária. A embriaguez em serviço é uma falta aguda: basta uma vez, para que se a considere justa causa, desde que assuma elevado grau de gravidade, em função das circunstâncias, dos antecedentes pessoais do empregado, dos efeitos perniciosos ao ambiente do trabalho e, principalmente, a execução do contrato de emprego2".
Orlando Gomes e Elson Gottschalk adotam o mesmo entendimento3. Sérgio Pinto Martins, integrante do TRT de São Paulo, se alia aos velhos mestres ao sustentar que "A embriaguez é fundamento para justa causa, pois o empregador tem interesse em preservar a harmonia no ambiente de trabalho. O ébrio pode gerar desarmonia e dar mau exemplo. O empregado embriagado não produz o necessário, podendo causar prejuízos aos bens da empresa, acidentes do trabalho e tornar-se indisciplinado e violento4".
Não apenas a causada pelo álcool é falta grave. O mesmo sucede se o empregado viciar-se em maconha, cocaína, heroína, éter, ópio, crack. Fumar ainda é tolerado, mas não em espaços públicos, ou ambientes fechados, pelos prejuízos acarretados a fumantes passivos, tão expostos aos ricos de adquirirem câncer quanto os viciados em cigarro, cigarrilha, charuto.
O Código Civil inclui, entre os relativamente incapazes, ao lado dos maiores de 16 e menores de 18 anos, excepcionais sem desenvolvimento mental completo, pródigos, os ébrios habituais, viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham discernimento reduzido (art. 4º, inciso II). O Código Penal, por sua vez, desconsidera como excludente de imputabilidade penal crime praticado por emoção ou paixão, e em estado de embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância análoga (art. 28, II). Classifica, ademais, como agravante, quando não constitui ou qualifica o crime, o fato de ter sido cometido "em estado de embriaguez preordenada" (art. 61, II, l).
O Estado não prestigia o vício; procura combatê-lo com a aprovação de leis restritivas ou proibitivas, apesar das resistências dos defensores, no Poder Legislativo, das indústrias do fumo e do álcool. Se o estimular, direta ou indiretamente, contribuirá para a corrupção social, com funestas consequências para quem trabalha, leva vida morigerada, e se esforça visando a dar exemplos edificantes. Tabagistas, alcoólatras, toxicômanos, jogadores compulsivos, são elementos deletérios e indesejáveis pelos males que trazem dentro de si, e como péssimos modelos à juventude. Ralph Linton (1893/1953), antropólogo americano, escreveu, que "em todas as sociedades, o indivíduo médio condiciona-se com sucesso aos padrões aos quais se espera que ele se conforme e executa-os sem nenhuma consciência de coerção exterior. É o incomum que atrai a atenção e por este motivo o gatuno ou assassino ocasionais têm probabilidade de tomar em nosso pensamento maior vulto que as centenas de pessoas honestas que nunca matam nem furtam. Outro elemento que naturalmente contribui para esta desproporção de interesse é que o indivíduo antissocial representa um problema, especialmente na nossa cultura5". O bêbado como o drogado, violenta os padrões pré-estabelecidos pelos homens comuns e passa a ser, como o tabagista, alvo de rejeição da família, no emprego, clube, por ter se transformado em problema indesejável.
É no âmbito familiar, aliás, que os efeitos do alcoolismo são mais sentidos. Demonstram as estatísticas ser ele o principal responsável pela violência dentro de casa. Devastador, também, os resultados que traz ao trânsito urbano ou rodoviário. São constantes, em todo o Brasil, acidentes graves provocados por motoristas embriagados.
Como deve agir a direção de empresa transportadora de pessoas ou cargas ao tomar conhecimento de que um dos motoristas não dispensa, quando em viagem, a cachaça ou a cerveja durante o almoço ou jantar, fuma maconha, cheira cocaína? E se o caso for de piloto de empresa de aviação, ou controlador de voo? Admite-se operário, comerciário, ou bancário, embriagado no local de trabalho? Quem teve experiências reais com a classe trabalhadora não ignora que o bebedor obsessivo se aproveita do intervalo para repouso ou alimentação para se encostar no boteco próximo e tragar a branquinha, birinaite, engasga-gato, qualquer que seja o apelido local da velha aguardente de cana.
Não filosofamos ou divagamos no terreno da fantasia. Os malefícios do álcool são antigos. Nunca, porém, tão visíveis como hoje, quando presenciamos onerosas campanhas publicitárias dirigidas especialmente ao jovem público consumidor.
Os recentes julgados do TST, além de se indisporem com jurisprudência consolidada, ferem texto expresso de lei, contrastam com a política governamental de combate ao uso de bebidas alcoólicas, e repugnam à consciência social. A lei 12.760/2012, que alterou a lei 9.503/97, eliminou toda tolerância em relação a motorista que, após ingerir cerveja, pinga, caipirinha, assume a direção do veículo e assume o risco de se tornar criminoso. Apanhado em flagrante perde a habilitação e sofre pesada multa.
Não procede argumento utilizado em algumas decisões, que citam resolução da Organização Mundial de Saúde, segundo a qual o alcoolismo, ou "síndrome de dependência de álcool", é doença. Afinal, quais as alterações positivas trazidas pela decisão da OMC? Fez-se acompanhar de solução para a antiquíssima questão do alcoolismo? Significa esperança de cura para alcoólatras? Resolve problemas da família, da comunidade, do empregador? Até onde se sabe, não há remédio para o milenar vício, salvo quando o viciado concorda em se recolher a instituição especializada. A reincidência entre tabagistas e alcoólatras é acentuada, e o paciente jamais deve se considerar definitivamente curado. Ao patrão não compete assumir responsabilidades que lhe não cabem. Escasseiam hospitais psiquiátricos públicos, destinadas à recuperação de alcoólatras, maconheiros, craqueiros, tabagistas. Não desejo ser pessimista, mas o Estado brasileiro demonstra haver adotado a lei do cada um por si e Deus por todos.
Um dos acórdãos invoca, para absolver o alcóolatra, o argumento da defesa da dignidade, como algo ínsito à natureza humana. Como registra, entretanto, o filósofo Luc Ferry, é o trabalho que dignifica o homem, e não a natureza, pois o valor moral do homem não depende dos dons naturais que recebeu, mas sim de como soube usá-los com liberdade6.
A CLT não impõe ao empregador a demissão de quem se embriaga habitualmente, ou comparece embebedado ao trabalho. Assegura-lhe, todavia, a prerrogativa de fazê-lo, para se preservar, defender a empresa e os demais empregados de contato nocivo. Se entender que lhe deve dar a oportunidade de se recuperar, pode fazê-lo. O risco é seu. No caso, porém, de recorrer à lei, não compete à Justiça do Trabalho impedi-lo, para instituir inédita e ilegal modalidade de aquisição de estabilidade.
Demitir sempre é difícil, pois significa submeter alguém ao desemprego. Em determinadas circunstâncias, contudo, inexiste outra solução, a não ser o desligamento de quem voluntariamente se converteu em grave problema.
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1Délio Maranhão, Arnaldo Sussekind, Segadas Vianna, "Instituições de Direito do Trabalho", Ed. LTr, SP, 13ª edição revista e ampliada, 1993, vol. I, pág. 553.
2José Martins Catharino, "Contrato de Emprego", Edições Trabalhistas, RJ, 2ª edição, 1965, pág. 351.
3Orlando Gomes e Élson Gottschalk, Editora Forense, RJ, 3ª edição, 1968, pág. 338.
4Sérgio Pinto Martins, "Direito do Trabalho", Ed. Atlas, SP, 27ª edição, pág. 385.
5Ralph Linton, "O Homem - uma introdução ao estudo da antropologia", Livraria Martins Editora, SP, 4ª edição. s/d, pág. 129
6Luc Ferry e Lucien Jerphagnon, "A Tentação do Cristianismo - Da seita à civilização". Ed. Objetiva, RJ, 2011, pág. 84.
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* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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