Em busca de uma antropologia da dignidade da advocacia
Vinham-me trazendo pesadelos estas interrogações, positivas ou não, perturbando-me o suficiente e o necessário, mesmo o necessário e o suficiente do meu tempo em que divago sobre a relação entre o eu, como ser advogado, e o existir, como partícipe do meu tempo, sempre como advogado.
terça-feira, 4 de outubro de 2005
Atualizado em 3 de outubro de 2005 14:49
Em busca de uma antropologia da dignidade da advocacia
A advocacia precisa ser repensada?
Sim.
A advocacia precisa ser reestruturada?
Sim.
A advocacia pode conviver sem democracia e afastada da ética?
Não.
Vinham-me trazendo pesadelos estas interrogações, positivas ou não, perturbando-me o suficiente e o necessário, mesmo o necessário e o suficiente do meu tempo em que divago sobre a relação entre o eu, como ser advogado, e o existir, como partícipe do meu tempo, sempre como advogado.
Fui almoçar, no sábado passado, fim de inverno ensolarado, na Liberdade, e era passada a hora habitual quando, sorvido o último gole de chá verde, decidi ir até o Largo de São Bento, caminhando e caminhando, para, refletindo e refletindo, "criar idéias" sobre as dúvidas que me cercam sobre a profissão. Engraçado: "criar idéias" é uma expressão que ouvira de um japonês com quem trabalhara em uma empresa eletrônica. Na mente nipônica, eqüivaleria a se esforçar para achar alternativas, buscar outras vias para solucionar um problema pendente, através de um esforço mental.
Percorri a rua da Glória, em direção à Sé, quando encontrei, parado, em frente ao Fórum João Mendes, o jovem advogado Cássio Olmos, com quem trabalho, de bermuda, com um picolé nacional, sem corantes ou estabilizantes. Saudamo-nos com um ar de surpresa. Contei-lhe as minhas (pre)ocupações e, num sorriso, até macilento, disse-me compartir com elas, embora não tivesse a vivência suficiente, nem cronológica, muito menos profissional, para aprofundar-se sobre elas.
Antes de atravessarmos a praça de João Mendes, de repente, parei e contei a Cássio que vivenciei o logradouro e, onde se localiza o Fórum João Mendes, existiam casas bem antigas e, em frente delas, os bondes que subiam a rua da Glória e, naquele local, faziam o contorno para retornar ao Cambuci, Ipiranga, Fábrica (Sacomã) e Heliópolis. Durante quatro anos, desembarquei e embarquei naqueles bondes, quando freqüentava o saudoso Ginásio do Carmo (demolido), que fora construído atrás da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e na rua do Carmo. Quanta saudade, porque percorrera o trajeto entre o fim da guerra (1945), passando pela queda de Getúlio Vargas, a votação da Carta Federal, que tem no glorioso Professor Goffredo da Silva Telles o seu último sobrevivente, até quase o fim do mandato do Presidente Dutra, imposto pelos americanos, por temor ao Partido Comunista. Ele mesmo o colocou fora da lei. Esse fato, disse ao atento Cássio, foi, a meu ver, uma das causas do alheamento da maioria dos jovens dos processos políticos, além de contribuir com o esmagamento das esperanças da classe operária e muito mais dos camponeses, criando esse vale abissal na diferença das rendas e no acesso à saúde, cultura, educação e lazer daqueles.
Já na rua do XI de Agosto, detivemo-nos. Contei ao Cássio que o Fórum João Mendes só tivera conclusão quando Jânio da Silva Quadros foi governador: mesmo assim, apenas em parte. Cássio pensou e, sarcasticamente, lembrou que, entre ingressar no ginásio e começarem as atividades, perderam-se três décadas. A quem atribuir esse descaso com o Poder Judiciário? A quem alfinetar pela formação do preconceito contra o Poder Judiciário e o conceito de que decisões no Brasil são compradas e vendidas?
Respondi-lhe sem titubear. A ditadura de Vargas tendia para apoiar o Eixo, mas a visita de Roosevelt ao Nordeste incentivou o governo já decadente a perfilar-se com os "aliados", a mandar tropas à Itália (Força Expedicionária Brasileira), a permitir a entrada maciça de produtos americanos e empresas idem, iniciando a substituição dos gostos e paladares brasileiros pela cocalização, culminado nesses lixos vendidos em franquias como alimentos. Concluí: Vargas foi traído por militares a mando dos americanos, que proporcionaram a eleição de Dutra, guindado-o a marechal por "seus feitos heróicos", e, no seu governo, a economia e as reservas do país foram dilapidadas pelas elites. Ele pagou o preço da sua inconstância, mas o povo a perda das liberdades e das ilusões.
Cássio repreendeu-me pela veemência e pela suposta parcialidade. Teve, de mim, a resposta, buscada em Gonçalves Dias: "Meninos, eu vi". E senti.
Diante da Catedral da Sé, detivemo-nos. Convidei Cássio, que é judeu, a dar um passeio pela nave. Entrando, deparo-me com o cônego Severino Martins, meu amigo, pernambucano do agreste, personalidade sutil. Contei-lhe o propósito do peripatético1, convidando-o a partilhar de uma discussão. Matreiramente, após sua aquiescência, introduziu-nos na Sacristia2, onde nos sentamos em cadeiras com espaldar de madeira, próprias para incitar a reflexão, não o sensorial deleite.
Cássio estava fascinado com a construção. Pacientemente, ouviu um relato do cônego Severino e das razões pelas quais existiu, ao longo de séculos, uma arquitetura religiosa ou uma arquitetura voltada à oração ou uma arquitetura motivadora de reflexão, sempre despojada. O gongorismo3 causou um estrago na relação homem-Deus, ajuntei, sem ser perguntado, sobretudo foi uma opção contra os pobres, pelo exibicionismo e por ostentar mais do que convidar ao diálogo interior.
E o nosso começou. Limitar-me-ei a rememorar as idéias alvoroçadas, menos do que os questionamentos, as perguntas, as conclusões. Essas poderão ser apanhadas, como serão, pelos migalheiros atentos.
Severino conhece quantum satis Direito Canônico, por isso pediu-me que lhe informasse de onde e quando vieram as idéias da OAB, como se rege a advocacia, quais as atividades do profissional, por que é obrigado a ser inscrito na OAB para atuar, qual o procedimento da OAB quando houver infrações estatuárias e éticas, e assim por diante.
Não foram muitos os minutos que apliquei para responder-lhe; a partir daí, nos entranhamos no Código de Ética e no papel que o advogado deve assumir nos momentos de instabilidade política. Rejeito a palavra crise, porque ela só acontece quando há uma relação séria. Na política, cuidarmos de seriedade é esquizofrenia.
Para ser palatável o tema, que é árido, proponho aos migalheiros reelaborar aquele frutuoso diálogo, servindo o escriba como incentivador, pelos anos nas lides.
E assim começamos.
Severino: Para os advogados, há distinção entre ética e moral? Qual o objeto da ética? Como uma se diferencia da outra?
Escriba: Sim, há. Enquanto a primeira cuida do comportamento dos homens socializados, a segunda é um conjunto de regras e condutas consideradas válidas, com matizes diferenciadas entre tempo ou lugar, ou grupo de pessoas ou uma focada ou apontada ou determinada. Esclareço que essa distinção não vale só para os advogados, mas para todos os seres humanos, enquanto tais. E acrescento que a ética é um meio, uma ferramenta de regras de comportamentos e estilos de vida com o fim do homem atingir, realizando, os seus mais altos valores morais. É uma ferramenta comportamental, para o homem conflitar-se, enquanto ser vivente, dentro da sua condição humana, dentro da sua transitoriedade e precariedade. Afinal, lembrando Paulo, "somos todos peregrinos".
Cássio: Por que o Código de Ética utiliza a palavra deontológica4?
Ainda o escriba: Se vocês prestarem atenção, a palavra deontologia tem uma colocação no título do CEA, mas não aparece no texto normativo. É nada mais, nem menos, que um estudo sistemático dos princípios, fundamentos e deveres da moral, como dizem os autores.
E, em nosso Código, quando se cuida da deontologia, temos os princípios da moral que o advogado deve praticar ou abster-se, por coação interna (sanção moral).
O Código passou a ter eficácia quando o Poder Público cometeu5 à OAB o poder, por delegação, de exercer a polícia sobre os seus afiliados e, se necessário, puni-los. Daí, vejo uma idiotice querer subtrair da OAB o poder de disciplinar as condutas - como os doublés de advogados e bandidos querem - e sancionar, por onde, a meu ver, a necessidade de inscrição na OAB e a prova de seleção. Não se esqueça, aliás tenha-se presente e presente, a função hodierna do advogado é defender intransigentemente o Estado Democrático de Direito, a cidadania, a moralidade pública, promover a conciliação, abster-se de práticas contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa, independente e livre, cabendo-lhe afastar-se da comercialização profissional, porque a advocacia é uma profissão desinteressada.
Severino: Se a antropologia6 estuda o comportamento das sociedades, sobretudo as desaparecidas ou as antigas, no campo da advocacia, haveria interesse de pesquisar a relação dela com a ética? Digo ética profissional!
Vis-à-vis, as duas não são inconciliáveis na área da advocacia. Tente dar, num relance, a forma como pensa esse fascinante tema.
Escriba: Excelente a pergunta. Antes, porém, cogite: é possível conciliar ou relacionar ou fazer um paralelo entre a ética e a religião? Não responda, pense.
Severino: Não há in genere religião que não se apóie na moral, ou nela não se escore. Por isso, os textos consagrados pelas religiões constituem fontes precisas de princípios e fundamentos éticos.
Um exemplo, que vem das raízes judaicas, inscrito nas Tábuas mosaicas, é "amar o próximo como a si mesmo". Pelo que me recordo das noções de direito romano, já consagraram que o princípio fundante do direito assenta-se no clássico tripé: honeste vivere, neminem laedere et suum cuique tribuere7.
Escriba: Gravitam na vida profissional do advogado dezenas de palavras, que sempre têm um conteúdo ético e que sempre são impulsionadoras do seu agir, como resultantes das suas estruturas e daquilo que crê. E crê porque entende, compreende, aceita e vive a profissão como espelho de um agir superior. O que ele vende é seu amor desprendido, ainda que mercantilizado circunstancialmente. O advogado, se vocacionado, se vivencia os postulados éticos que deve saber, de coração, quais são, passa, na minha pobre ótica, a ser um (pre)destinado. Aquele que contrafaz8, se autoflagela9.
Vou alongar-me um pouco, encerrando esse agradável diálogo que se estendeu por quase duas horas, porque cada um de nós tem outras atividades agendadas.
Para mim, que sigo um filósofo italiano, Roberto Mancini, imergido em pesquisas de natureza científica seguida de religiosa, cuidando de objetos tão sugestivos quanto atrativos, como o presente, a gratuidade, a globalização e a tutela dos direitos humanos são os valores fundantes de uma nova antropologia. Para ele, há uma antropologia viva, porque cuida do "processo de imersão, liberação e revelação da humanidade na história. É antropologia viva, porque a identidade humana não está ainda completada e não se manifestou completamente; é como um caminho de nascimento (= gestação) em curso". Daí, "com o termo de antropologia refiro-me - diz Mancini -, pois, a uma pesquisa existencial, comunitária, social, intelectual, espiritual" 10.
E segui.
É a quotidianidade do exercício profissional, afastada da interiorização, que tornou a economia uma metafísica, perpassando-nos, por meio de comportamentos semi-automáticos, a causa dos desvios. A sociedade nos reduz e nos anula, "as identidades humanas se fragmentam segundo o movimento do dinheiro" (é a palavra de Mancini).
À antropologia da guerra, construída pelo homo faber e pelo homo oeconomicus, o homem da competitividade, opomos a antropologia da dignidade, supressora da angústia, existencial e depressiva, que domina o homem contemporâneo. A da dignidade leva o homem a pensar no outro, a cuidar do outro, a ajudar o outro. Esse também passa pelo mesmo processo daqueles outros, tendo, todavia, uma angústia positiva.
Reconhecendo os outros como criaturas11, não só cumprimos com os mandamentos religiosos, como lançamos as bases de agirmos gratuitamente. E esta gratuidade vai colocar-se entre um presente, um bem e um ato de amor. Não se tratam de atos convencionais, porque hoje em dia tudo se paga para ter ou para tudo há um preço12.
Essa gratuidade, como fio condutor almejado para o jovem advogado que ainda não se macula, não se há de confundir em trabalhar sem remuneração. Pode e até deve fazê-lo, excepcionalmente. Encontrará felicidade.
Com esse arremate, que foi o deste escriba, embora apressados, despedimo-nos: eu, com a certeza de que saí, pelo menos, confortado, porque expus o que venho sentindo ao longo de cinqüenta anos na profissão; Cássio estava se auto-interrogando e Severino, matreiramente, disse-nos: "Por que procurai entre os mortos aquele que está vivo?". E Cássio, como o Salmista, de pronto, arrematou: "Não fecheis o coração, ouvi, hoje, a voz de Deus" (94,95).
Será que nós, na vida profissional, assim o fazemos?
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1Peripatético: como adjetivo, segundo Caldas Aulete, tem o significado de "que segue a doutrina de Aristóteles, que ensina passeando"; como substantivo, "sectário de Aristóteles". Etimologicamente, como esclarece Paul Foulquié, no seu Diccionario del Lenguaje Filosófico, a palavra advém do vocábulo grego peripatetikos, derivado de paripateim, com sentido de passear, ir e vir. O peripatismo na linguagem usual filosófica tem o significado de seguidor de Aristóteles. In Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. IV. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 3.078. E in Diccionario del Lenguaje Filosófico. Barcelona: Editorial Labor S.A., 1967. p. 766.
2Caldas Aulete esclarece que esse substantivo feminino tem o significado de "casa contínua a Igreja onde se guardam os paramentos e vasos sacerdotais destinados ao culto e onde se revestem os sacerdotes". Esclareço que, em épocas passadas, a Sacristia ficava localizada fora da igreja. Ibidem, vol. V. p. 3.613.
3O gongorismo foi um movimento literário criado pelo escritor espanhol Luis de Gongora, que usava e abusava de construções complicadas, além de utilizar um estilo extremamente rebuscado. Por isso, Caldas Aulete esclarece que o substantivo masculino significa "exageração de ornatos, que se introduziu na literatura espanhola como imitação do estilo de Gongora (poeta espanhol, 1561-1627) e que consiste em trocadilhos, metáforas e pensamentos demasiadamente afetados". Ibidem, vol. III. p. 1.960.
4No Título I, Da Ética do Advogado, depara-se no Capítulo I: "Das Regras Deontológicas Fundamentais". Etimologicamente, a palavra advém de logos, no sentido de ciência ou teoria do que deve ser (originário do grego deon, que gerou dei com significado de mister). É uma palavra criada pelo filósofo Jeremias Bentan como equivalente técnico de moral. Hodiernamente, essa palavra é mais empregada para designar as diversas "morais profissionais", falando-se, sobretudo, de deontologia de uma determinada profissão. Foi criada uma doutrina chamada deontologismo pelos moralistas ingleses, para quem a moralidade consiste em obrar como se deve, sem consideração da sua utilidade ou do bem, como também esclarece Paul Foulquié, na obra já citada (p. 244).
5O verbo transitivo cometer, no seu sentido clássico, tem o significado de confiar, entregar, encarregar e mesmo, também, como se vê nos Lusíadas, propor e oferecer. Escreveu Camões, com elegância: "Comete-lhe o gentio outro partido", nos Lusíadas, Livro VII, versículo 91. In AULETE, Caldas. In Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. II. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 863.
6Antropologia é uma ciência social, no sentido lato, distinguindo-a da antropologia social ou cultural propriamente dita. É "o estudo comparativo e, por natureza, crítico e relativizador, dado que o pesquisador está sempre esticando e adaptando conceitos e teorias para novos casos e realidades e seu estudo profundo acaba por revelar insuficientes", segundo o Professor Roberto da Mata, in Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editoria da Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 58-60.
7"Viver honestamente, não prejudicar aos outros e fazer-lhes o que espera que eles lhe façam" (tradução livre do escriba).
8O verbo transitivo contrafazer, no vernáculo, tem o significado de imitar, arremedar e disfarçar. Por isso, contrafazer alguém é violentar-lhe a vontade. In AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. II. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 928.
9O verbo flagelar-se, na forma passiva, como está no texto, seguindo os clássicos quinhentistas, tem o significado de autopunir-se. Vem do latim flagelar. Muitas vezes, no sentido figurado, com elegância se utiliza a forma transitiva do verbo para significar atormentar, afligir e enfadar, como superiormente ensina Caldas Aulete. In Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. III. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 1.787.
10MANCINI, Roberto. Antropologia della gratuità. In: MARIE, Emmanuelle et al. Vivere tra violenza e tenerezza. Padova: Edizioni Messaggero, 2005. ISBN 88-250-1554-2. p. 65-87.
11O sentido religioso da criatura é o que leva a pensar numa antropologia da dignidade do homem. Mancini, no capítulo que cuida desse tema, aborda, com raríssima sensibilidade, os vários significados da antropologia da dignidade humana, mostrando a relação entre a humanidade e o mundo natural. Estabelece um pensamento codificado na sua profunda reflexão, concluindo "o código (da dignidade humana) prefigura uma antropologia da dignidade da criatura pessoal, social e ontológica dos seres humanos". Ibidem, p. 75.
12Mancini ainda diz: "Concluindo, que com uma vista d'olhos sobre a gratuidade: presente, bem, amor, se são, são para sempre, porque afixam nos que amamos um valor infinito. Por isso, o amor é gratuito e, misericordioso, não renuncia, não abandona, não sacrifica (o outro), não se desespera". Ibidem, p. 87.
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos.
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