Julgamento e recurso do processo de Carla Cepollina
Há um inconformismo na posição do parquet, pois, se for feita uma análise criteriosa a respeito do recurso cabível, com certeza não seria o de apelação.
terça-feira, 13 de novembro de 2012
Atualizado às 08:00
Carla Cepollina foi pronunciada e submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri por ter praticado crime de homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima, sob alegação de ter matado o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, seu namorado, no ano de 2006, com um tiro no abdome, após suposta discussão.
O Tribunal Popular, composto por seis homens e uma mulher, depois de três dias de julgamento, absolveu a acusada por entender que não foram apresentadas provas convincentes a respeito da autoria. No tocante a esse quesito o presidente do Tribunal do Júri verificou que quatro dos jurados votaram pela absolvição e, como os seguintes foram prejudicados, declarou encerrada a votação nos termos do parágrafo único do artigo 490 do Código de Processo Penal, com o lançamento da sentença absolutória.
O representante do Ministério Público declarou que irá interpor recurso por entender que a decisão absolutória foi contrária às provas dos autos, além de cerceamento da acusação e nulidade processual.
Interessa ao presente estudo somente o primeiro inconformismo do diligente órgão do parquet. Diz o artigo 593, inciso 3, letra d, que caberá apelação no prazo de cinco dias das decisões do Tribunal do Júri quando "a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos". Na realidade, se for feita uma análise criteriosa a respeito do recurso cabível, com certeza não seria o de apelação. Isto porque tal recurso, em sua própria natureza e essência, compreende o reexame da matéria pelo tribunal ad quem, que apreciará o mérito e decidirá pela reforma ou confirmação do decisum do juízo monocrático. É a aplicação da regra tantum devolutum quantum appelatum.
Nas decisões do tribunal colegiado heterogêneo, no entanto, não prevalece tal regra no caso de interposição de recurso de apelação. O julgador ad quem não fará qualquer abordagem com relação ao mérito da causa, embora, nas hipóteses de ter o juiz presidente proferido sentença contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados (593, III, b) ou se houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança (593, III, c), deverá realizar o correto ajuste da sentença, sanando o error in judicando. Trata-se de providência corretiva.
Nos casos de nulidade posterior à denúncia (593, III, a) e decisão manifestamente contrária às provas dos autos (593, III, d), da mesma forma, o Tribunal ad quem não fará qualquer apreciação com relação ao mérito e se limitará a declarar a nulidade da decisão, com a realização de novo julgamento.
Deve-se observar com muita cautela que a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, c, abrigou o princípio da soberania dos veredictos. Silva, em definição ajustada, declara que veredicto "é a declaração pela qual os juízes de fato (jurados), respondendo os quesitos formulados pelo juiz, promotor e pelo advogado de defesa, reconhecem ou não a culpabilidade do acusado. Em seu veredicto, os jurados apreciarão simplesmente as questões de fato, não se envolvendo em sutilezas ou indagações jurídicas".1
Indaga-se, diante do mandamento constitucional, se o júri, em razão de sua soberania e de sua incontestável convicção íntima, pois julga a causa de acordo com sua consciência e os ditames da Justiça, decide pela absolvição do acusado, pode o Tribunal Superior anular a decisão por entender que foi contrariamente à prova dos autos?
Tourinho Filho, com a sabedoria que lhe é peculiar, bate-se pelo reconhecimento da soberania do júri e proclama de forma incisiva: "A nós nos parece que, de jure constituendo, quando o júri proferir decisão absolutória, não deverá caber apelação com fulcro na alínea d, porque suas decisões são soberanas. Mas se a decisão for condenatória, sim."2
Manzano, por outro lado, acompanhado pela maioria, entende não haver nenhuma incompatibilidade entre o recurso e o preceito constitucional. "Firmou-se, contudo, salienta com razão, o entendimento de que é legítima e não fere a Carta Magna a norma do artigo 593, III, d, não devendo ser confundido o sentido da cláusula constitucional inerente à soberania do Júri com a noção de absoluta irrecorribilidade das decisões proferidas pelo Conselho de Sentença".3
A expressão "manifestamente contrária à prova dos autos", merece algumas considerações interpretativas. No entender do legislador é possível sim dar provimento ao recurso quando a decisão dos jurados, colocada em confronto com o material probatório coligido, é antagonicamente conflitante. A boa regra da hermenêutica indica a aplicação da interpretação lógica, aquela em que se busca adaptar a lei aos fatos ocorrentes, ou como quer Ihering, procurar o pensamento da lei, passando por cima das palavras.
Assim, não é qualquer incoerência entre a prova e a decisão que possibilitará a realização de novo julgamento. É sabido que, perante o juízo monocrático, onde duas ou mais versões são apresentadas, se o julgador optar por uma delas não quer dizer que seu pronunciamento estará eivado, vez que desprezou outras versões. Há, no entanto, em razão do princípio da motivação das decisões, necessidade de apontar na sentença os motivos convincentes e determinantes da conclusão judicial.
Sem qualquer necessidade de fundamentação, o colegiado do Tribunal Popular recebe a causa e emite sua decisão, de acordo com as informações levadas pelas leituras das peças e pelas ponderações da acusação e defesa. Eventual condenação ou absolvição é fruto de seu convencimento, de sua persuasão racional e não pode traduzir uma contrariedade abissal com as provas elencadas no processo. Na realidade, o legislador se referiu à decisão totalmente incongruente, aquela que não suporta qualquer avaliação primária, pois já desaba em sua própria estrutura.
De forma exemplar, Mossin esclarece que há necessidade de confronto visível entre as provas e a decisão dos jurados. "A decisão deve estar, adverte ele, integralmente divorciada das provas carreadas aos autos. As provas não autorizam o veredictum dos juízes de fato. Há uma inconciliação entre a verdade real que restou espelhada nos autos e a convicção exteriorizada pelos jurados".4
No caso sub studio o Tribunal ad quem deverá cuidadosamente examinar se há discrepância entre a decisão dos jurados e o material probatório encartado no processo. Como se trata de negação de autoria cabe perquirir a respeito das provas que apontaram a acusada como a responsável pela prática do homicídio.
Não se pode olvidar que a sentença de pronúncia já tangenciou tal matéria. Mas é bom observar que na decisão de pronúncia, como bem esclarece Oliveira, "o que o juiz afirma, com efeito, é a existência de provas no sentido da materialidade e da autoria. Em relação à materialidade, a prova há de ser segura quanto ao fato. Já em relação à autoria, bastará a presença de elementos indicativos, devendo o juiz, tanto quanto possível, abster-se de revelar um convencimento absoluto quanto a ela. É preciso considerar que a decisão de pronúncia somente deve revelar um juízo de probabilidade e não de certeza".5
O legislador exige a presença de indícios suficientes de autoria ou participação (art. 413 CPP), para prolatar a sentença de pronúncia. A fragilidade da autoria, vez que se trabalha no campo dos indícios, pode levar os jurados a concluírem que a acusada não foi a responsável pela prática do crime. Isto não se traduz em decisão manifestamente contrária à prova dos autos. É uma avaliação subjetiva e criteriosa elaborada pelo jurado na legitimidade que lhe conferiu o legislador.
Se o Tribunal Superior entender de forma contrária, deverá exibir nos autos as provas conclusivas a respeito da autoria, ou pelo menos, as indicativas, que possibilitem a realização de novo julgamento. E, quando de sua realização, virá formada a decisão judicial que, obliquamente, vinculará os jurados, obrigando-os a acatá-la, em desprestígio da alegada soberania.
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1 Silva, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2004.
2 Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 4 - 34 ed. rev. E de acordo com a Lei n° 12.403/2011 - São Paulo: Saraiva, 2012, p. 153.
3 Manzano, Luís Fernando de Moraes. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2012, p. 726.
4 Mossin, Heráclito Antonio. Recursos em matéria criminal: doutrina, jurisprudência, modelos de petição. São Paulo: Atlas, 1997, p. 106.
5 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2012, p. 723.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp
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