Cinzas, cinzas
Mais um carnaval fora de época, felizmente, está no fim. Depois da saturação, vêm as cinzas.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Atualizado às 07:55
As cores predominando o verde consolidam terminativamente a paisagem.
O sol daqui a pouco se derramar mais alguma luz dará uma nitidez plena a isso tudo que a vista alcança, mas na essência não alterará muito em nada.
Há imundície em quase tudo.
O amanhecer assim como se o sol embora acordado ainda relutasse em sair da cama insubstituível como ele só para os seus afazeres emparelha sublimes a nascente com o poente.
Há galos cantando intermitentemente por quase todos os cantos do quintal entre o mangueiral e há também jumentos do outro lado que relincham de hora em hora.
As folhas nos galhos das árvores estão como paralelepípedos pesados e parados. Não há vento a movê-las em dança alguma.
Alguns passarinhos bicando uma goiaba ali ou uma carambola acolá dão alguma vida ao cenário ate aqui meio de natureza sonífera.
São os gansos que, em decolagens e voos que terminam no açude, rompem o silêncio. Mas dá para ouvir o cantar distante e insistente de um pássaro conhecido como fogo-apagou.
Mensageiro de paz, esse fogo-apagou. Ainda que as queimadas se estendam por áreas inimagináveis quase alcançando as cercanias da cidade como denuncia o satélite do Google não se deve perder de ouvidos a sua mensagem carregada de otimismo - fogo apagou! Fogo apagou!
À frente após três degraus a porta verde se mantém fechada. Dois pavimentos estampando outras cores e lá dentro só livros, muitos livros, milhares de livros.
Tenho maior respeito e carinho pelos meus livros. Não os quererei inservíveis nas exposições das calçadas ou anônimos nas esperas dos sebos. Quero que tenham a destinação útil a mesma que eles tiveram quanto a mim. Ainda vou ter tempo para cuidar disso.
Uma pesquisa entre países denuncia que dentre as crianças que frequentam as escolas as do Brasil são as que menos leem livros. As suas famílias não têm poder aquisitivo e a cada dia mais decai entre os jovens o hábito da leitura. Quem não lê, se fala alguma coisa, não sabe o que diz.
Um País se faz com homens e com livros assim falou Monteiro Lobato. Queres escrever? Te danas a ler. A leitura é o trapézio da imaginação. Se não sabes pensar, não saberás criar. Toda criação resulta de um disciplinado bem pensar.
A gente vê hoje muita gente bem formada tropeçando em caroços de milho da ortografia. Mentes quando muito prontas a responderem ao mínimo que impõem os exercícios da sobrevivência.
As portas verdes que levam aos livros vão continuar fechadas por mais algumas horas até que se diluam esses prenúncios de chuvas que acinzentam a manhã.
Nada por aqui agora é absoluto nem mesmo o silêncio. Há verde em quase tudo. E parestesia nas folhas, nas gramas, nas portas e janelas. Não escorre o vento.
Compensa o sorriso pacificador da mulher amada, o beijo alentado da mulher amada, a certeza de mais um dia em paz com a mulher amada.
O sol ainda dorme. Afinal ninguém é de ferro. Esse carnaval, mais um carnaval fora de época, felizmente, está no fim. Depois da saturação vêm as cinzas.
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*Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA
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