O caso Rio Branco
O uso de câmeras em salas de aula no Colégio Rio Branco, em SP, extrapolou os limites do interesse localizado.
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
Atualizado em 9 de outubro de 2012 14:24
Permitam-me meter a colher nesse assunto que veio a público na última semana, envolvendo o uso de câmeras em salas de aula no Colégio Rio Branco, em São Paulo, pois o caso extrapolou os limites do interesse localizado, vez que envolve a construção de valores que devem nortear toda a sociedade.
Para bom entendimento, insta deixar claro desde já que sou completamente contrário à iniciativa do colégio, apoiando, integralmente, a insurgência dos alunos e repudiando, por consequência, a punição que lhes fora dada pela diretoria, conforme os argumentos que seguem.
Uma linha de defesa da adoção das câmeras foi a inexistência de lei que proibisse a conduta. Neste aspecto, vale destacar, primeiramente, a incoerência da projeção racional de natureza liberal, na qual se inspiram os defensores da ideia. Propugnam, a todo instante, a não intervenção do Estado nas relações sociais, mas só conseguem pautar seus atos e pensamentos dentro dos padrões delimitados pela lei. Sustentam que o Estado, sobretudo quando se volta à imposição da solidariedade, não deve intervir na atividade social, mas quando lhes interessa só sabem dizer o que é certo ou errado em conformidade com as leis estatais.
Em segundo lugar, cabe esclarecer que o Direito é um conjunto normativo complexo, que não está todo circunscrito nas leis. Dizer que só se deve ser obrigado a praticar um ato em decorrência de lei é o mesmo que dizer que tudo é permitido a não ser que esteja legalmente proibido. Mas, bem sabemos, os valores humanos são construídos pelo convívio social e na busca da compreensão do próprio sentido da condição humana. Assim, há sentimentos morais, determinados pela compreensão filosófica do ser e da sua interligação com o outro, que não são, jamais, dependentes de leis estatais para existirem e para terem eficácia. Não fosse assim os grandes pensadores da história, que contribuíram para a elevação do ser humano, não teriam sido os filósofos e sim os legisladores.
Aliás, o grande mérito dos juristas do século XX, depois de verificarem a ineficácia das leis para lidarem com os dilemas sociais, foi o de terem incorporado ao Direito essa concepção, antes adstrita ao denominado Direito Natural, de que os valores fundamentais do ser humano e da convivência pacífica não estão condicionados a uma lei para se considerarem jurídicos, com força obrigacional.
O primeiro argumento a favor da colocação de câmeras é, portanto, juridicamente impróprio, sendo oportuno consignar que dentre os valores relevantes em jogo estão a confiança, a responsabilidade e o respeito recíproco, que se perdem quando impera a vigilância excessiva.
Foi dito, ainda, que as câmeras cumpririam um papel importante de conferir segurança nas salas de aula. Mas, segurança para quem e em face de quem? A questão não foi bem esclarecida, mas se a segurança foi pensada em favor dos estudantes há de se indagar quem seriam os pretensos agressores? Os outros estudantes? Os professores? De um jeito ou de outro, a estratégia representaria transferir para as câmeras as funções de educar os alunos e de melhor preparar os profissionais.
De fato, não há um aspecto relevante envolvendo a segurança e ainda que houvesse a questão que se coloca é o preço que se pagaria para obtê-la. Estou certo de que o preço é tão alto que chega mesmo a negar a razão de ser da instituição enquanto uma entidade voltada ao ensino, pois este se perfaz essencialmente pela transmissão de valores que possam consagrar a compreensão do respeito alheio. Vigiar e punir é função de um Estado policial com o qual convivemos somente em razão da falência das instituições democráticas e de um modelo de sociedade que, corroborando práticas supressivas da condição humana, se mostra incapaz de concretizar uma autêntica política de justiça social.
Uma sala de aula é o ambiente da construção de valores e, no plano ideal, da produção de certa cumplicidade entre professores e alunos no que tange às deficiências de uns e de outros, pois, afinal, a sala de aula é local de aprendizado e o processo educacional, embora almeje os acertos pela aquisição do conhecimento, parte dos pressupostos dos erros e da ignorância. A sala de aula não é um palco teatral, onde se reproduz uma peça previamente ensaiada. É o espaço no qual as deficiências humanas se revelam e a inteligência é utilizada para superá-las, numa perspectiva progressiva. Pensar em uma intervenção ostensiva externa nesse ambiente, ainda que para fins restritos de uma pretensa segurança, inibe e restringe a livre atuação dos sujeitos envolvidos.
As câmeras provocam, a um só tempo, desconfiança, inibição e repressão, que ferem de morte o processo educacional.
Portanto, em nome da eficácia da ordem jurídica, pautada pelos Direitos Humanos, em respeito aos alunos e aos professores, em homenagem à relevância da instituição de ensino e para que a experiência não se reproduza em outros locais, espera-se uma reversão urgente da situação em comento.
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* Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP
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