A ausência de notificação prévia em ação de improbidade administrativa gera nulidade relativa
1. A Lei n° 8.429/92, que dispõe sobre as sanções decorrentes dos atos de improbidade administrativa, sofreu significativas alterações pela Medida Provisória n° 2.225-45, de 2001, em especial no que se refere ao rito das ações judiciais de improbidade administrativa.
terça-feira, 11 de outubro de 2005
Atualizado em 27 de setembro de 2005 09:47
A ausência de notificação prévia em ação de improbidade administrativa gera nulidade relativa
Frederico Munia Machado*
1. A Lei n° 8.429/92, que dispõe sobre as sanções decorrentes dos atos de improbidade administrativa, sofreu significativas alterações pela Medida Provisória n° 2.225-45, de 2001, em especial no que se refere ao rito das ações judiciais de improbidade administrativa.
2. Dentre as referidas modificações, destaca-se a regra incluída pelo parágrafo 7º, do art. 17, do referido diploma legal:
"Art. 17. (...)
(...)
§ 7o Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias."
3. A notificação e a manifestação a que se refere o novo dispositivo, comumente denominadas notificação e defesa prévias, foram claramente idealizadas a partir do procedimento previsto para as ações envolvendo crimes contra a Administração Pública praticados por agentes públicos. Nesse sentido, assim estabelece o art. 514, caput, do CPP:
"Art. 514. Nos crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do acusado, para responder por escrito, dentro do prazo de 15 (quinze) dias."
4. Têm-se muito discutido as conseqüências jurídicas da não realização da notificação prévia prevista na Lei n° 8.429/92. Muitos têm afirmado que, em razão dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, a inobservância desta disposição legal implica sempre nulidade absoluta, qual poderá ser reconhecida, inclusive, após o trânsito em julgado da decisão, via ação rescisória (TRF/1ª Região - AR 2002.01.00.041032-8/MG, Rel. Des. Fed. Tourinho Neto, Rel. Acor. Des. Fed. Olindo Menezes, Segunda Seção, DJ de 05/04/2005, p.45).
5. Não obstante esse posicionamento estar adquirindo força na jurisprudência pátria, entendemos não ser essa a interpretação mais correta. Parece-nos que, tal como ocorre com a notificação e defesa prévias previstas na legislação processual penal, a eventual inobservância do procedimento fixado no art. 17, parágrafo 7º, da Lei n° 8.429/92 nem sempre acarretará a nulidade total dos atos processuais realizados. É exatamente isso que tentaremos demonstrar adiante.
6. O objetivo básico da inclusão da notificação e defesa prévias, tanto na ação penal por crimes funcionais, quanto na ação cível por atos de improbidade administrativa, é, em última análise, evitar a propositura de demandas temerárias.
7. As ações temerárias são especialmente prejudiciais quando ajuizadas em desfavor de agentes públicos por prática de ato contra o Estado. Tais ações não apenas implicam descrédito na confiabilidade e honestidade do agente público, como também colocam em dúvida a transparência da própria Administração Pública, prejudicando o correto funcionamento da atividade administrativa.
8. Assim, por medida de cautela, o legislador incluiu também para as ações de improbidade um procedimento preliminar de contraditório sumário, similar ao previsto no art. 514 do CPP, objetivando verificar a viabilidade da pretensão do autor, bem como constatar possível litigância de má-fé.
9. Note-se que a finalidade imediata desse procedimento preliminar é facilitar a verificação do preenchimento das condições da ação e da plausibilidade da imputação antes da instalação da relação processual propriamente dita. Esse ato consubstancia mero juízo prévio de delibação, servindo somente para constatar se a ação não é manifestamente improcedente ou se não se encontra desprovida dos requisitos mínimos para sua instauração. A análise detida das argumentações e da prova ocorrerá apenas quando da formação do juízo definitivo de convencimento do magistrado acerca das imputações aduzidas.
10. Certamente, porém, que, ainda que receba a ação, poderá o magistrado constatar a ausência de alguma das condições da ação quando proferir a sentença. Além disso, o requerido poderá alegar a inexistência das condições da ação ou a ausência de plausibilidade da imputação em qualquer fase processual. Em suma, a qualquer tempo, poderá o requerido aduzir, bem como o juiz reconhecer, a existência de fato que impeça o desenvolvimento regular do processo.
11. No âmbito do processo penal, ao tratar dos efeitos decorrentes da não observância da regra do art. 513 do CPP, o Prof. Julio Fabbrini Mirabete conclui que "não se compreende que, após uma sentença condenatória só pronunciada, em tese, quando há prova do crime e da autoria, se anule o processo ab initio apenas por não ter sido concedida a possibilidade do acusado tentar comprovar, antes do recebimento da inicial, a inexistência de elementos para o oferecimento da denúncia ou queixa." (Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 5ª edição, pp. 654-655)
12. Por esse motivo, firmou-se o entendimento, na esfera penal, segundo o qual a nulidade somente restará configurada se demonstrada a ocorrência de prejuízo ao réu causado pela inobservância do procedimento preliminar de notificação prévia. Nesse sentido, é farta a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STJ - RHC 13333/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 11.02.2003, DJ 10.03.2003 p. 248).
13. Em decisão recente, o STF reafirmou esse posicionamento, conforme o texto transcrito abaixo, retirado do Informativo n° 381:
"Lei 10.409/2002: Inobservância do Rito e Prejuízo
A ausência de demonstração de prejuízo, por parte da defesa, decorrente da inobservância do rito previsto no art. 38 da Lei 10.409/2002, impede a declaração de nulidade do processo. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 12, caput, c/c art. 18, IV da Lei 6.368/76, em que se pretendia a nulidade do processo, desde o recebimento da denúncia, em razão do não atendimento do referido procedimento legal [Lei 10.409/2002: "Art. 38. Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias..."]. Entendeu-se que a possibilidade, prevista na lei, de apresentação de defesa antes do recebimento da denúncia, permite a invocação de questões pertinentes aos arts. 41 e 43 do CPP, com o objetivo de convencer o julgador a rejeitar a inicial acusatória e que, na espécie, toda a matéria que se pretendia alegar na defesa preliminar fora efetivamente deduzida em outros momentos processuais (defesa prévia e alegações finais), não tendo a mesma o condão de demonstrar a nulidade da ação. Ademais, considerou-se que a denúncia teria preenchido os requisitos exigidos pelo art. 41 do CPP, não havendo que se falar nem em ausência de justa causa, nem em prejuízo que poderia advir de eventual desclassificação do delito, já que réu defende-se dos fatos e não da capitulação constante da denúncia." HC 85155/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 22.3.2005." (grifamos)
14. Diante disso, parece-nos que, com mais razão ainda, o efeito decorrente da inobservância da regra contida no art. 17, parágrafo 7º, da Lei n° 8.429/92, nem sempre acarretará nulidade do processo. Ora, se no processo penal, no qual, como é sabido, os princípios da ampla defesa e do contraditório são elevados ao grau máximo de efetividade, reconhece-se que a nulidade decorrente da ausência da notificação prévia é relativa, não haveria outra conclusão para os casos envolvendo as sanções por atos de improbidade administrativa, que possuem natureza civil.
15. Essa interpretação encontra guarida inclusive no CPC, que prevê no seu art. 244 que, "quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade". No caso tratado, a lei não fixou a nulidade para a inobservância do procedimento e sempre a finalidade da defesa prévia será alcançada diante da possibilidade de argüição posterior da matéria.
16. Note-se que essa interpretação não implica qualquer violação aos direitos à ampla defesa e ao contraditório. Em primeiro lugar, a lei processual disponibiliza outros instrumentos pelos quais as alegações que supostamente constariam da defesa prévia poderão ser realizadas, como, por exemplo, a contestação e as alegações finais. Além disso, ainda que não existissem tais meios, as razões que devem ser trazidas pela defesa prévia (existência de condições da ação e pressupostos processuais) são matérias de ordem pública que, via de regra, podem ser conhecidas de ofício pelo magistrado e argüidas a qualquer tempo e forma pela parte.
17. Ademais, os princípios da ampla defesa e do contraditório, em que pese a sua importância, não podem ser interpretados e aplicados de forma absoluta e incondicionada. A ordem jurídico-constitucional brasileira prevê diversos princípios que, como se sabe, poderão aparentemente colidir entre si em determinadas situações. Nesses casos, cabe ao magistrado ponderar os valores veiculados por tais enunciados de modo a conformá-los no caso concreto.
18. Na hipótese discutida, há que se homenagear outros princípios igualmente relevantes, como os princípios da moralidade administrativa, da celeridade processual e da instrumentalidade das formas, sem, todavia, negar validade aos direitos à ampla defesa e ao contraditório
19. Diante do exposto, parece-nos que a melhor solução para os casos em que o procedimento estabelecido no art. 17, parágrafo 7º, da Lei n° 8.429/92, não é observado é semelhante àquela prevista para as ações penais envolvendo crimes funcionais. Assim, o vício deverá ser alegado na primeira oportunidade para falar nos autos, via de regra, a contestação, sob pena de preclusão. Além disso, deverá o requerido demonstrar a ocorrência de prejuízo da sua defesa para que se reconheça a nulidade do processo.
20. Por fim, esclareça-se, para evitar interpretações equivocadas, que a tese exposta acima não pretende incitar ou apoiar a desobediência da Lei n° 8.429/92. Como bem assinalado por Sérgio Monteiro Medeiros, que compartilha desse nosso posicionamento, "não se está, com isto, defendendo a não aplicação da Lei, mas alertando para o aproveitamento de processos nos quais o rigor da forma não tenha sido observado, atentando-se para o princípio da instrumentalidade das formas, a fim de se evitar a declaração de nulidades quando não houver prejuízo" (Lei de Improbidade Administrativa - Comentários e Anotações Jurisprudenciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 203).
21. De fato, o que se defende é a efetiva aplicação da justiça, deixando de lado discussões infrutíferas sobre questões formais que tão somente tão lastro à impunidade e à perpetuação da corrupção administrativa. Há que se ter em mente, enfim, que a notificação prévia prevista para as ações de improbidade administrativa serve para garantir a boa aplicação do direito, e não para obstar a prestação jurisdicional
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*Advogado e assessor na Procuradoria Regional da República da 1ª Região
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