Fragilidades do Direito na ação penal 470
Seria salutar se o STF já se preparasse para lidar com problemas que podem surgir após o julgamento.
segunda-feira, 20 de agosto de 2012
Atualizado em 17 de agosto de 2012 13:13
Sempre considerei, embora não dizendo isso com frequência - porque a própria menção das falhas poderia se tornar lembrete para sua maior utilização - que o Direito Processual brasileiro é de uma ingenuidade a toda prova. Pelo menos em termos de praticidade e eficácia. Como se atuasse nas nuvens, acompanhado de cantos gregorianos, em latim, decidindo litígios entre anjos. Isso explica a progressiva decepção popular, bem justificada quando os processos demoram absurdamente e não conseguem punir (criminalmente), nem cobrar (civilmente) - em tempo razoável -, pessoas físicas e jurídicas com capacidade financeira para contratar advogados esforçados e competentes nas suas respectivas especialidades.
Deixo expresso que sob o ponto de vista da vigorante ética profissional - mesmo nas nações cultas -- nada pode ser dito contra tais advogados quando, não praticando, eles mesmos, crimes, tratam de tirar o máximo proveito dessas distrações legislativas, vulgo "brechas", em benefício de seus clientes. Todo profissional quer e precisa, em uma sociedade capitalista, ser "bem sucedido", inclusive, e principalmente, em termos econômicos. Provavelmente, daqui a muitas décadas, garantido aos grandes criminalistas um excelente padrão de vida mesmo dizendo, em juízo, apenas a verdade -, corrigindo os excessos da acusação -, teremos uma nova ética profissional, universal, com quase total ausência de impunidade. A comunidade menos sofisticada, atualmente, engole mas não digere bem, moralmente, o fato de notórios criminosos conseguirem escapar do rigor da lei contratando hábeis advogados que conseguem navegar suas defesas evitando todos os arrecifes legais. Conhecendo o caminho das pedras, consegue evita-las.
Hoje, um inflexível amor à verdade, por parte de advogados que são procurados, quase sempre, por pessoas acusadas de crimes, significaria suicídio profissional. Um advogado mal vestido, guiando um calhambeque enferrujado, recebendo clientes em salinhas que pareçam cheias de pulgas será automaticamente rotulado como incompetente e fracassado, Só escapará desse ferrete se tiver alta reputação de gênio excêntrico, mas sem dívidas. O êxito financeiro, é a forma - impiedosa mas real - do público julgar qualquer profissional da advocacia - e também de outras áreas -, o que explica o interesse do mesmo em defender com empenho clientes abonados que o procuram, sejam eles culpados ou inocentes.
Mesmo que o profissional não aprove, no íntimo, os malfeitos de seus clientes -, seguramente não vota neles nas eleições -, não recusará suas defesas, em prejuízo da segurança financeira de sua própria família. Tranquilizará a consciência dizendo que não é pago para fazer justiça, mas para defender um acusado usando as armas que a legislação assim permitir. Dirá, ainda, que não estão sendo pago para consertar o mundo nem corrigir a legislação vigente. Em suma, pensará: - "Não sou juiz, nem legislador, nem salvador de almas, nem justiceiro". Dito isso, dedicará sua energia a procurar as provas que beneficiem o cliente ou, não as encontrando, construindo argumentos capazes de criar dúvida ou cansaço na mente e nos olhos do julgador. A busca da fadiga judicial explica, muitas vezes, nas grandes ações criminais e cíveis, o volume gigantesco de "provas documentais" capazes de desanimar os julgadores mais resolutos bastando uma olhada para as enormes pilhas de autos volumosos.
Dito isso, abordemos, sem novas digressões teóricas, o que está para suceder com o tal "mensalão" que tanto preocupa as pessoas, aos milhares ou milhões, preocupadas com a ética na política brasileira.
Para começar, ressalte-se que tal processo, no caso de condenação, mesmo tramitando no órgão máximo - supostamente para única decisão "final"-, não terminará tão cedo, graças às brechas presentes no Regimento Interno do STF. A justiça brasileira - na vasta maioria honesta - foi estruturada, pelo legislador, para funcionar como um sofisticado laboratório de pesquisa buscando uma esquiva verdade a ser dissecada inúmeras vezes, em diversos "laboratórios" judicantes, esquecendo-se que um excesso de reexames traz, implícito, um grande mal: a infindável demora, que só beneficia a parte que não tem razão.
Diz o art. 333 do Regimento que "Cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma: I - que julgar procedente a ação penal". Para permissão dos embargos infringentes (para os leigos: novo julgamento, quando a decisão não for unânime) basta que haja quatro votos divergentes, o que é bem provável no caso da Ação Penal 470. Com isso, o processo poderá tramitar por muitos meses, bastando, para assim verificar, a leitura dos arts. 330 a 336 do Regimento. Cuidando-se de 138 réus, a "burocracia" regimental - caso não "enquadrada" (retificada), com grande urgência pelo STF - pode ensejar demora de vários meses, muito superior à permanência dos ministros Peluso e Ayres Britto na Corte. Para que tal demora aconteça basta que os vários réus assim queiram, redigindo petições.
Para complicar, dificultando ainda mais a efetividade da justiça, na hipótese de condenação, existem os "embargos de declaração", destinados a esclarecer ou corrigir o que foi decidido "quando houver no acórdão obscuridade, dúvida, contradição ou omissão que devam ser sanadas".
Este artigo do Regimento é, obviamente, um "prato cheio" para retardar o término de qualquer julgamento, porque quem redigiu o Regimento Interno não imaginou (?!) que pudesse ser utilizado de má fé, infindáveis vezes. Mesmo que o acórdão não contenha obscuridade, dúvida, contradição ou omissão, nada impede que o réu diga que há. Já houve um caso, relatado honesta e confidencialmente por um brilhante ex- ministro, em que o STF teve que usar uma ilegalidade para impedir que a parte perdedora tornasse sua causa perpétua apresentando seguidos "embargos de declaração". Negado o primeiro, a parte apresentou o segundo. Este negado, apresentou o terceiro, o quarto, o quinto - não me lembro de quantos foram -, sempre apontando um suposto defeito formal no acórdão apresentado por último. Tirava proveito do fato de o Regimento Interno não estabelecer limites quantitativos. Os Ministros, concluindo que estavam sendo vítimas de um evidente abuso, ordenaram à Secretaria do Tribunal que não mais recebesse novos embargos declaratórios naquela ação. Uma ilegalidade formal, claro, porque petições não podem ser recusadas pela Secretaria mas, no caso, o único meio disponível para evitar a desmoralização do Tribunal.
Em tese, pelo menos em tese, algum réu da Ação Penal 470 poderia fazer o mesmo, procurando novas prescrições. Se a OAB ameaçasse punir, eticamente, um advogado que usasse essa esdrúxula tática rasteira para impedir o trânsito em julgado, o autor dessa tática poderia discordar do órgão de classe inventando tal ou qual nulidade. Um advogado em vias de se aposentar poderia, sem grandes prejuízos, fazer isso, sem receio da má repercussão de sua doentia insistência. Talvez fosse até elogiado, por alguns, pela sua "audácia": "Afinal, essa insistência não poderia estar certa? E errado o Tribunal?".
Provavelmente não haverá tempo para reforma do Regimento Interno, nesse item, antes da redação do acórdão que julgará o famoso caso, mas seria salutar se o STF já se preparasse para lidar com um problema que pode surgir, bastando audácia para tanto. "Brechas", "buracos", de qualquer tipo, devem ser tapados antes que pessoas caiam dentro dele. Principalmente quando a vítima é uma respeitável senhora que costuma ser fotografada sentada, com venda nos olhos, às vezes segurando espada e balança. Talvez seja cega apenas no sentido de imparcialidade.
Finalmente, um detalhe que merece ser acrescentado. Li, em jornal, que o min. Joaquim Barbosa, quando da defesa oral de um dos defensores, fez uma pergunta ao expositor. Eu não tinha por hábito, anteriormente, assistir, pela TV, julgamentos do STF. Mas presumia que não havia essa prática de um Ministro interromper, com bons modos, o expositor, apenas pedindo um esclarecimento. Se fui bem informado, na Suprema Corte Americana, essas interrupções são usuais, o que parece ser uma boa - embora intimidante - prática a ser incrementada no Brasil, desde que usada com moderação e assegurado o direito do orador de, consultado, negar o esclarecimento solicitado. Essas breves interrupções, se permitidas, o seriam tanto quando fala o defensor quanto o acusador.
Qual o objetivo máximo de um julgamento? A busca da verdade, porque só assim será possível aplicar, com segurança, essa "coisa" tão abstrata: o Direito. Acredito que, por vezes, o julgador perde o fio do raciocínio do expositor e com isso boa parte da exposição torna-se inútil. Ressalte-se que o orador pode estar dizendo algo importante que não consta, por escrito, nos autos, porque o argumento - que até pode ser brilhante - só lhe ocorreu no decorrer da sua exposição.
Pesados os prós e os contras, conclui-se que a criação da TV Justiça foi uma boa ideia.
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* Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues é desembargador aposentado do TJ/SP
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