A incoerência jurídica do indiciamento em crime de menor potencialOfensivo
Apesar de não haver regramento processual penal específico para esse tipo de crime, sua aplicação não é arbitrária.
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
Atualizado em 6 de agosto de 2012 14:36
A prática penal muitas vezes brinda o advogado com situações juridicamente bizarras, sistematicamente inconsistentes e dotadas de notável prejuízo aos direitos de seus clientes. O tema a ser tratado nestas breves linhas exemplifica um destes cenários incongruentes, o qual, diga-se de passagem, tem se revelado bastante recorrente perante a rotina policial.
Primeiramente, oportuno lembrar que os crimes de menor potencial ofensivo são aqueles com pena máxima de dois anos, de competência dos Juizados Especiais Criminais, enquadrando-se no rito da Lei 9.099/95, sendo alguns deles de frequente ocorrência em grandes estruturas empresariais1.
O indiciamento, por sua vez, é ato formal e complexo, praticado por delegado de polícia, o qual, após reunir indícios mínimos de autoria e materialidade de um fato típico, antijurídico e culpável, torna oficialmente pública a situação de um indivíduo estar sob investigação criminal.
Apesar de não haver regramento processual penal específico para tal instituto, sua aplicação não é arbitrária, pelo contrário, está condicionada à existência nos autos deum conjunto suficiente de elementos aptos a relacionar a conduta ilícita à figura do futuro indiciado.
Seja em sua forma direta (com a presença do indivíduo no ato), seja em sua forma indireta (sem sua presença), após despacho fundamentado da autoridade policial2, a formalização do
indiciamento presume a reunião de informações sobre o indiciado, preenchendo-se os quesitos do formulário de vida pregressa e, se conveniente, realizando-se exame datiloscópico, sendo que tais dados, bem como os detalhes do suposto delito praticado, passarão a constar na base dos Institutos de Identificação e órgãos similares, estando à disposição para consulta das autoridades públicas por tempo indeterminado.
Se a não observância de tais exigências configura ao indiciado constrangimento ilegal, a análise do instituto perante a sistemática dos crimes de menor potencial ofensivo torna-se ainda mais complexa e problemática. Isto porque a lei 9.099/95, justamente por tratar de crimes de menor lesividade, prevê uma série de medidas alternativas à aplicação da pena. Neste passo, antes do início de um processo criminal referente a uma infração desta natureza, é possível ao réu compor-se civilmente com a vítima ou aceitar proposta de transação penal3, sendo que em quaisquer destas medidas despenalizadoras, antecipadamente julga-se extinta a
punibilidade do réu, com o intuito de evitar os efeitos estigmatizantes de uma demanda criminal, principalmente o registro de antecedentes criminais, efeitos civis4 e de reincidência.
Mas e se antes de se beneficiar de tais medidas, o réu houver sido formalmente indiciado em sede policial? É justamente o núcleo problemático da questão. Em caso de indiciamento, inexiste expressa previsão legal autorizando a retirada deste gravame, ou seja, mesmo se absolvido ou então se optar por um dos institutos anteriormente mencionados, o réu permanecerá com seu nome nos registros citados, independente do lançamento do resultado final do processo.
Considerando que os institutos despenalizadores da lei 9.099/95 têm como intuito dar tratamento mais brando ao praticante de crime de menor potencial ofensivo, assegurando-lhe a inexistência de registro de antecedente criminal, efeitos civis e reincidência, havendo somente possibilidade de registro interno no Poder Judiciário5, sem a possibilidade de consulta por terceiros, revela-se absolutamente incoerente defender o indiciamento para tal espécie de delito, vez que esta providência procedimental intermediária causaria maior prejuízo ao réu se comparada à medida final da demanda.
A Corte paulista inclusive já se manifestou em abono ao raciocínio ora defendido, conforme trecho de ementa de julgado exemplificativo, transcrito a seguir:
"(...) Pretensão de obstar indiciamento formal da paciente, porquanto incompatível com a natureza consensual da lei 9.099/95. Admissibilidade
(...) Procedimento consensual que dispensa o indiciamelto, ato formal e complexo decorrente da forte suspeita de autoria que recais sobre o indivíduo investigado. Ato registrário que não se coaduna com a hipótese em análise
(...) Ordem concedida para obstar o formal indiciamento. Liminar referendada". (TJ/SP, HC 0247825-73.2011.8.26.0000, 16ª Câm. Criminal, Des. Rel. Almeida Toledo, j. em 29/11/11, v.u)
Em igual sentido, o STJ afirmou que "pela ótica da lei 9.099/95, art. 69, uma das características do procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo, submetido à competência dos Juizados Especiais, é a desnecessidade do inquérito policial, significando dizer que o indiciamento do autor do fato não resulta em medida mais coerente" (STJ, HC 25.557- SP, 5ª T.Min. Rel. José A. da Fonseca, j. em 28/10/2003, v.u.). Deste modo, nestes casos, como reconhece Mauro de Ávila Martins Filho, delegado de Polícia Federal, a autoridade policial deve "abster-se de indiciar o autor fato"6.
Diante de todo o exposto, por respeito à congruência sistemática do ordenamento jurídico, bem como em prestígio à correta hermenêutica entre os institutos cotejados, restou provado que o indiciamento em crimes de menor potencial ofensivo é medida absolutamente descabida, cabendo ao advogado tomar as medidas necessárias para coibir esta inaceitável, porém recorrente providência.
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1Neste grupo enquadram-se a maioria dos crimes contra o consumidor (lei 8.078/90), crime de desobediência (art. 330 do CP), crimes contra propriedade imaterial (lei 9.279/96), dentre outros.
2 Cfr. Art. 5° da Portaria DGP 18/98
3Cfr. Art. 72 e ss. da lei 9.099/95
4Cfr. Art. 77, § 6° da lei 9.099/95.
5Para consulta com o fim exclusivo de assegurar que o benefício não seja utilizado novamente no prazo de cinco anos (artigo 74, §4º da lei 9.099/95).
6MARTINS FILHO, Mauro Ávila. Envolvidos em Infração Menor não Devem ser Indiciados. Revista Consulto Jurídico, n° 27, abril/2007.
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*Fabio Lobosco é advogado do escritório Trigueiro Fontes Advogados.
O presente trabalho não representa necessariamente a opinião do escritório, servindo apenas de base para debate entre os estudiosos da matéria. Todos os direitos reservados.
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