A comissão além da verdade
A única razão plausível para a existência da Comissão da Verdade é a possibilidade da descoberta dos restos mortais de entes desaparecidos. Fica aqui a esperança de que a Presidente eleja historiadores, e não justiceiros.
terça-feira, 27 de março de 2012
Atualizado em 26 de março de 2012 11:38
Nos últimos meses, o Brasil inteiro percebe lamentável acirramento nas hostilidades entre expressivo número de militares reformados e representantes civis de organizações diversas, notadamente no âmbito do judiciário.
A Comissão da Verdade, cada vez mais, levanta espíritos guerreiros e provoca paixões que extrapolam todos os caminhos da civilidade. O país parece estar à beira do desatino. Os homens justificam os conflitos que abraçam sempre em nome de palavras da nobreza; liberdade, pátria, justiça, democracia, igualdade, paz, religião, verdade...
Todo esse conjunto de belas aspirações humanas dá respaldo às maiores violências, mortes, abusos, torturas e crueldades. Repita-se, tudo em nome do amor pelas virtudes reveladas na terra.
No Brasil, o processo criado para o encontro das luzes do Bem se agrava pela proximidade da escolha dos membros da Comissão da Verdade. Mas, antes disso, procuradores inflamados e sob a bandeira de uma "Justiça de Transição" buscam alternativas e brechas possíveis, sempre possíveis, na legislação ordinária para punir crimes de ação permanente e, portanto, imprescritíveis. O Ministério Público não se conforma com a lei da anistia, não aceita o perdão. Vale-se das recomendações e dos exemplos dos organismos internacionais, ONU e OEA, que não admitem a supressão das punições em casos de torturas, aniquilação e crimes contra a humanidade.
Por sua vez, os militares esperneiam e lançam reptos deploráveis contra os poderes legitimamente constituídos.
Mas aqui não importa muito desvendar o oponente que leva no bolso do colete os melhores trunfos da excelência moral. É fácil tomar partido. As aberrações dos anos de chumbo são por demais conhecidas. Aliás, tão conhecidas que o propósito da Comissão da Verdade é quase insignificante. Ou, por outra, é apenas admissível porque talvez propicie a descoberta dos cadáveres desaparecidos e, assim, conceda aos familiares determinados a enterrar seus mortos um sentimento mínimo de conforto e alívio. Esse direito não se denega, não se tergiversa, não se ludibria, não admite contestação. Sófocles deixou claro há dois mil e quinhentos anos.
Mas o revanchismo não deve estar aí embutido. Essa etapa já foi superada por decisão do STF. Não importa se a sensação da injustiça perpetrada fale mais alto nos corações dos representantes do Ministério Público. Ainda que lhes repugne o ato de perdão para a ignomínia, a anistia se encontra definitivamente sacramentada.
E nem se queira exigir dos militares torturadores e executores ainda vivos, ou das instituições a que pertencem, pedidos formais de desculpas, se é que desculpas são suficientes para apagar aberrações.
A Igreja Católica levou quinhentos anos para pedir perdão pelas atrocidades perpetradas pela Inquisição, em nome de Deus, contra milhares de criaturas inocentes da prática de qualquer crime. As Cruzadas também, só recentemente, mereceram a prostração da Igreja. A pedofilia continua uma chaga, embora hoje atenuada pelas palavras tardias e arrancadas a fórceps do Sumo Pontífice.
Não, muitos anos virão antes que as Forças Armadas reconheçam o inominável e hediondo arbítrio cometido contra a sociedade e, principalmente, contra os subversivos, guerrilheiros, insurretos, ou outros apelidos que se lhes queira dar, justamente rebelados na oposição à Ditadura, posto que, aos olhos das primeiras, cometido em nome da família, da pátria, para sufocar o avanço do comunismo no Brasil. O panorama internacional da época, o apogeu da Guerra Fria, o macartismo levado a sério, a ameaça do totalitarismo soviético serviram de fator preponderante para também atrair homens dignos de respeito e sinceridade de propósitos no combate do mal presumido que acreditavam se avizinhar. Estavam errados, mas lhes parecia estarem certos e isso bastava. Diziam antes e repetem agora: "não passarão".
Não compreendem porque os acusam. Não atinam porque são censurados em prosa e verso. Admiram-se com a furiosa demonstração de repúdio dos atos, os quais creem ter praticados de boa fé, pelos mais respeitáveis segmentos da sociedade.
Esqueceram, sem esforço, mesmo da pequena razoabilidade dos motivos que os levaram a adotar a ação militar repressora no Brasil mediante a derrubada do legítimo poder constituído. Se o movimento de tropas inicial, na sua ótica, foi meritório e necessário para a defesa do país, os acontecimentos seguintes fizeram minguar todas aquelas supostas boas ações.
Os elementares princípios éticos e humanos foram deixados de lado, agora em nome da segurança nacional, seja lá o que fosse isso. Para combater terroristas, sequestradores, guerrilheiros, os soldados julgaram imperativo usar de todos os meios de luta, decentes ou não, mas praticados por quase todos os exércitos dos cinco continentes. Assim, a tortura institucional fez berço no colo do Brasil. A execução de prisioneiros também mostrou a sua face de horror. A par disso, de forma subjacente, porém indiscutível, mais de vinte anos do período sombroso transcorreram, a pretexto de nada, a não ser pela embriaguez dos chefes militares e seus subordinados pelo poder.
Tudo isso é passado, mas o passado quer se tornar presente. Alguns desejam que a Comissão da Verdade vá além dos seus desígnios com a punição dos autores de tantos crimes. Não lhes basta abrir as janelas do país e reviver o lado abjeto do golpe de estado, como se não fosse esse mais do que sabido e conhecido. Para que? Talvez para, novamente, atear fogo ao conflito que já repousa em cinzas? Talvez para a pacificação de uma ira santa que não consegue descanso? Talvez para maior apuro da memória viva, muito viva, daqueles anos sombrios, nos livros, nos documentários, nas inúmeras reportagens, nos exaustivos testemunhos, nos pensamentos doídos de muitos? Não importa. Nada justifica a ação da desforra. A única razão plausível para a existência da Comissão, já se disse, é a possibilidade da descoberta dos restos mortais de entes familiares desaparecidos.
Enfim, se mais espaço ainda há para resgate da memória, fica aqui a esperança de que a Presidente da República eleja para compor a Comissão da Verdade historiadores e não justiceiros.
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* Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva é advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados
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