A má iniciativa da ampliação das possibilidades de anulação de sentença arbitral
O PL que pretende alterar a lei de abritragem só merece ampla e total rejeição.
segunda-feira, 5 de março de 2012
Atualizado em 2 de março de 2012 08:37
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa e Rachel Sztajn
A má iniciativa da ampliação das possibilidades de anulação de sentença arbitral
Mesmo boas leis ficam velhas e precisam ser atualizadas. Algumas delas já nascem com defeitos que necessitam ser corrigidos. É isto que, pretensamente, propõe o autor do PL 2.937/2011, ilustre deputado Domingos Sávio em relação à Lei de Arbitragem (9.307/1996) que há de ter visto fantasmas onde não existem. Como pretendemos demonstrar, as sugestões são despropositadas e o resultado, se levada adiante a proposta, será precisamente o oposto, ou seja, criar sérios problemas para a arbitragem no Brasil e, portanto, aumentar a insegurança dos que optarem por esse meio de solução de controvérsias.
Ao editar a lei em tela, o legislador teve o cuidado de limitar, com sabedoria, as causas que poderiam causar a anulação da sentença arbitral, versadas em oito hipóteses no art. 32. O exame deste dispositivo indica a existência de fatores externos e internos à decisão, a saber:
a) Fatores externos: (i) nulidade do compromisso arbitral; (ii) sentença proferida por pessoa que não podia ser árbitro; (iii) sentença proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; e (iv) sentença proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; (iv) terem sido desrespeitados os princípios do art. 21; e (v) decisão prolatada fora do prazo.
b) Fatores internos: (i) ausência dos requisitos do art. 26; e (ii) não haver a sentença decidido todo o litígio.
Três dos fatores externos relacionam-se com o caráter contratual da arbitragem. Se o compromisso arbitral é nulo segundo as normas presentes no Código Civil, ele não pode produzir efeitos, princípio este de longa tradição em nosso direito. Por outro lado, o recurso à arbitragem é resultado de uma convenção (ou seja, um pacto) entre as partes, que deve ser precisamente delimitada em relação ao seu objeto, pois esta é uma exigência decorrente da permissão excepcional que o legislador outorgou às partes para que a solução do conflito entre elas seja dirimida fora do Judiciário. Além disto, o art. 21 determina a obediência ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção arbitral o que significa, mais uma vez, obediência ao que foi ajustado. Como diziam os antigos, pacta sunt servanda.
Do ponto de vista subjetivo a licença concedida pelo legislador para o recurso à arbitragem encontra limites nas pessoas autorizadas a atuarem como árbitros, exteriorizados de forma negativa no art. 14, onde estão presentes situações que, presumidamente, demonstram a inexistência da imparcialidade é absolutamente necessária para o sucesso do procedimento. Acrescente-se que uma sentença arbitral está irremediavelmente comprometida, como é óbvio, quando proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva, evidentemente dada em desfavor da parte que era titular do legítimo direito, não respeitado por uma de tais circunstâncias.
A obediência ao prazo da lei, da cláusula compromissória, do compromisso arbitral ou do regulamento do órgão institucional escolhido pelas partes para a administração do feito é fundamental para o atendimento dos seus interesses de terem à frente um horizonte temporal relativamente determinado e este, como se sabe, é um dos grandes méritos do instituto, quando confrontado com a completa incerteza do tempo que pode levar uma demanda no Judiciário.
No tocante aos fatores internos, os requisitos formais e materiais previstos no art. 26 objetivam comprovar que o arbitro tomou plena ciência da questão a ele submetida (objetivada pelos termos do seu relatório) e analisou as questões de fato e de direito presentes no processo, fatores a partir dos quais ele orientou a sua decisão, devidamente fundamentada. E se o julgamento teve como base a equidade, este critério deve estar expressamente referido na sentença.
Desta forma, verifica-se que as hipóteses de nulidade da sentença arbitral estão organicamente bem estabelecidas na lei e têm por finalidade última dar segurança e certeza às partes de que ao utilizar esta modalidade de solução de conflitos não serão prejudicadas, muito pelo contrário, ganham extraordinariamente em eficiência, com significativa redução dos custos de transação, aqui representados pelos prazos procedimentais mais curtos.
Ora, a proposta do Deputado Domingos Sávio, tal como formulada, terá o efeito de destroçar o instituto, passando a trazer elevadíssimo grau de insegurança e de incerteza não somente para as partes, mas também para os próprios árbitros, mercê dos defeitos que apresenta. Vejamos as causas apresentadas no projeto de lei para a anulação da sentença arbitral
A primeira delas diz respeito à nulidade da decisão arbitral pelo fato de estar fundada em erro de fato, resultante de atos ou documentos da causa.
O que isto quer dizer? Não conseguimos atinar muito bem. Teria o árbitro apreciado de forma inadequada um ato praticado durante a arbitragem ou interpretado erroneamente o significado de um documento acostado ao processo? E onde o contraditório, que permite às partes se manifestarem sobre os documentos acostados aos procedimentos? Estará em melhor situação o juiz que deverá julgar o caso no seu desdobramento? Veja-se que as partes confiaram na arbitragem porque a formação dos tribunais arbitrais objetiva na designação dos árbitros, que são escolhidos pelas partes, submeterem a causa a quem, pela sua vivência profissional, deve conhecer melhor do que o juiz a área específica em que se dá o litígio. Pela própria natureza de sua atividade, o juiz é um generalista, enquanto o árbitro bem escolhido será um especialista.
Terá sido o erro de fato decorrente de ato eivado de simulação ou de falsidade ou os documentos do processo poderiam ser falsos ou falsificados? Sendo assim, não incumbiria à parte prejudicada arguir durante o curso da arbitragem os elementos em sua defesa e, em tal sentido, pedir que fossem adotadas as providências cabíveis? Lembro-me de haver apreendido que o direito não ajuda aos que dormem (no latinório, dormientibus non sucurrit jus). Se assim é, por que esta seria uma causa de anulação da sentença arbitral?
Por outro lado, o que é uma falsa premissa? Premissa é pressuposto que pode, ao longo da arbitragem, ser elidido pelos argumentos e demais provas produzidas. Como avaliar se essa falsa premissa ocorreu no caso concreto? Supondo-se que o árbitro, pela leitura dos autos entendeu que determinada pessoa exerceu de fato a gestão de uma sociedade (premissa), que este elemento formou sua convicção, e assim estabeleceu seu livre convencimento, havendo justificado sua decisão. E se o árbitro tiver cometido m erro em sua avaliação? O mesmo pode acontecer com o juiz. Faria ele melhor? A diferença está apenas no fato de que na arbitragem as partes aceitaram correr o risco de uma decisão monocrática, por todos os motivos que justificam esta escolha. Desta maneira, mostra-se neste ponto completamente inadequado o fundamento apresentado no projeto de lei sob exame.
A questão da não realização de perícia dita indispensável, requerida por qualquer das partes já tem proteção legal porque, se efetivamente cabível e negada, isto implicaria no cerceamento do direito da parte prejudicada, devendo o árbitro julgar a respeito do seu deferimento. A propósito, pelo receio de se ferir o devido processo legal, e considerando que o erro no processo arbitral não tem conserto, porque se trata de instância única, têm os tribunais arbitrais sido mais condescendentes do que o Judiciário no atendimento a pedidos de provas que eventualmente julguem desnecessárias e até mesmo abusivas. Trata-se de uma forma de aplicação da medicina preventiva caso este em que o tribunal arbitral antecipa a defesa contra um lance futuro que pode vir a não ocorrer.
Isto ocorre porque a arbitragem pode ser tomada como um jogo multipartes tendo como protagonistas naturais as partes (representadas por seus advogados) e o tribunal arbitral (unitário ou múltiplo). O juiz entrará no jogo na dependência do surgimento de certas condições. Mas dentro deste cenário o tribunal arbitral mesmo que intuitivamente aplica regras preventivas ou defensivas, como medida de precaução contra ataques posteriores à sua decisão. Esta circunstância explica também, por sua vez, o cuidado na elaboração de longos relatórios nas decisões arbitrais, demonstrando os árbitros, por meio desta iniciativa, que todos os elementos do processo foram considerados, e que nada foi deixado de lado.
O comportamento acima mencionado se, de um lado traz mais segurança às partes porque se fecha uma porta de alegação de nulidade da sentença arbitral, por outro aumenta os custos e a demora da decisão, além de permitir que a parte eventualmente imbuída de má fé abuse do risco moral (moral hazard).
Mas os problemas do projeto de lei sob comentário não ficam somente por aí (o que já seria demais), vão além, dando à iniciativa da parte que busca a anulação da sentença o benefício da suspensão liminar dos efeitos da decisão arbitral, caso assim entenda cabível o juiz.
E para terminar com chave de ouro (falso), o artigo 25 da Lei de Arbitragem ganharia nova redação com a introdução de outras possibilidades de suspensão do processo arbitral e sua remessa ao Poder Judiciário, concernentes à presença de (i) questão de ordem pública; (ii) prescrição; (iii), decadência; e (iv) áreas protegidas pelo meio ambiente ou tombadas pelo Patrimônio Histórico.
No primeiro caso o árbitro geralmente se dará por incompetente (se tal questão for ligada ao âmago da causa), pois a arbitragem, como se sabe, pode cuidar somente de direitos patrimoniais disponíveis, vindo a extinguir o processo por sentença.
Se a questão de ordem publica revelar-se autônoma quando tomada em consideração aos outros pedidos presentes no feito, a sentença arbitral evidentemente se escusará de decidi-la e o interessado terá o direito de buscar o Judiciário para pleitear a seu respeito.
Quanto à prescrição e à decadência, a parte interessada deverá alegá-las em sua defesa para que o ponto seja apreciado pelo árbitro, tal como o faria o juiz.
Se, por acaso, existirem áreas de proteção ambiental ou tombadas pelo Patrimônio Histórico, que possam ser afetadas pela sentença, caberá à parte interessada fazer prova a respeito, do que decorrerá a incompetência do árbitro para solucionar a questão. De qualquer maneira, ainda que a sentença seja prolatada em caso como este, ela será ineficaz, cabendo a quem de direito tomar as medidas adequadas.
Todos estes fatores demonstram o descabimento das propostas existentes no projeto de lei em causa, pois, de um lado já têm solução dentro do próprio processo arbitral e, de outro, não tornam necessária a anulação da decisão proferida porque outros remédios jurídicos já estão ao alcance dos interessados.
Concluindo, verifica-se que o aludido projeto de lei ao mesmo tempo em que, do alto do Monte Olimpo, desfere raios mortais contra o instituto da arbitragem pela falta de sabedoria legislativa, também chove no molhado, causando tremenda inundação neste mesmo campo. Assim, ele somente merece ampla e total rejeição.
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** Rachel Sztajn é advogada com atuação em arbitragem e professora de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP
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