Maria
Uma mulher pobre que busca respostas para as desigualdades de sua desditosa existência.
sexta-feira, 2 de março de 2012
Atualizado em 1 de março de 2012 14:48
Gilberto Ferreira
Maria
Cidadã Maria tinha olhos azuis e pele morena. Seria uma mulher linda se não tivesse nascido pobre e numa favela. Criada sem pai e mãe por uma vizinha, muito cedo descobriu a rudeza da vida. Estuprada pelo marido de sua protetora, abandonou a casa e passou a viver na rua.
Experimentou o frio do inverno rigoroso, o calor do verão tropical, passou fome, prostituiu-se, fumou e experimentou drogas. Sobrevivendo a todo tipo de intempéries, tornou-se adulta. De um amigo de rua, ganhou um carrinho para catar papel.
Por viver dia e noite catando papel, logo se tornou conhecida como a Maria do Carrinho. E como Maria do Carrinho percorreu todos os cantos da cidade, inclusive aquele onde moravam os ricos. Os ricos tinham de tudo: casa boa, filhos bonitos e sadios, carros novos, freqüentavam shopping, iam ao cinema e ao teatro, viajavam pelo mundo. Os pobres também tinham de tudo: um barraco num terreno de invasão ou numa favela, uma televisão velha, filhos feios e doentes, uma carrocinha ou um carrinho de mão para catar papel, iam ao boteco tomar umas pingas e, de vez em quando, viajavam... para a delegacia, embarcados num camburão e algemados. Então, passou a fazer um questionamento. Se Deus era bom e justo, porque permitia tamanha desigualdade?
Foi buscar a resposta na igreja, a casa de Deus: Na primeira lhe deram a seguinte resposta: "se você vier para a igreja, pagar o dízimo e orar, logo sua vida vai mudar, minha irmã". Numa segunda, recebeu uma resposta que também não lhe convenceu: "Aos pobres está reservado o reino dos céus, minha filha". Por fim, numa terceira, lhe disseram: "irmã, estamos nesta vida para nos aperfeiçoar e se estamos a sofrer é porque na vida anterior fomos pessoas más".
Maria percebeu que era inútil continuar indagando, mas não se conformou. Deus não poderia ser tão injusto e tão mau a ponto de proteger uns poucos e levar desgraça e tragédia para tantos outros. Foi aí que teve um sonho. No sonho um velhinho sorrindo lhe disse: "Maria, a pobreza e a desgraça não têm a ver com Deus. Têm a ver com governantes, com poder. Se os poderosos abrissem mão de uma parcela do que ganham e se os governantes resolvessem administrar com sabedoria e distribuir a renda equitativamente, não haveria pobreza absoluta, nem riqueza extrema. Todos viveriam dignamente, de maneira fraterna, igualitária e justa".
Maria acordou assustada e lembrou-se que era dia de eleição. Pegou o título de eleitor, que guardava envolvido em um saco plástico, e saiu faceira cumprir o seu dever de cidadã. Na urna em que votou, porém, os contadores de votos, mais tarde, encontrariam pelo menos um voto em branco.
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* Gilberto Ferreira é professor da PUC e juiz de Direito em Curitiba-PR
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