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O imperativo categórico

Um contraponto à opinião do desembargador Rizzato Nunes sobre o corte de abastecimento de água de condônino inadimplente. Melhor cortar a água de uma pessoa que deixou de pagar por qualquer razão, do que correr o risco de que todos deixem de pagar e fiquem, todos, sem água.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Atualizado em 27 de fevereiro de 2012 13:07

Mauro Caramico

O imperativo categórico

O desembargador Rizzatto Nunes, em dois excelentes artigos, sustenta, primeiro, que o condomínio não pode cortar o abastecimento de água de um condômino inadimplente, porque se trata de cobrança constrangedora coibida pelo artigo 42 do CDC, aplicado subsidiariamente; mais que isso, de medida violadora da dignidade humana. No segundo artigo, vai além: busca argumentos que esposem a tese de que o fornecimento de água não pode ser interrompido pelo fornecedor, mesmo em caso de inadimplência do devedor, a menos que se comprove que o devedor tem meios para pagar a conta, isto é, que age de má-fé.

Creio que estamos todos ao lado do articulista no que diz respeito ao objetivo final de suas ponderações: nem ele, nem eu, nem ninguém, quer que se corte a água de pessoas necessitadas e honestas.

Mas o caminho traçado nos dois artigos, se efetivamente implementado, levará ao resultado oposto.

No que diz respeito ao corte do abastecimento do consumidor inadimplente, a jurisprudência, de fato, restringe a possibilidade a situações bastante específicas: só pode ser feita se a inadimplência for "atual" (isto é, não se tratar de débitos antigos) e deve ser precedida de aviso formal. Assim é porque o corte no abastecimento não foi previsto na lei, primariamente, como uma penalidade imposta aos inadimplentes, mas sim como meio de evitar um dano à coletividade. Explico.

O artigo 6º, § 3º, II, da lei das concessões, dispõe que "não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando (...) por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade."

O interesse da coletividade está, evidentemente, na prestação de serviços com "regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas." (§ 2º, do mesmo dispositivo).

Se a inadimplência não resultar na suspensão do fornecimento, há o risco de que muitas pessoas sintam-se tentadas a não pagar a conta, sintam-se inclinadas a gastar o dinheiro que têm em outras coisas. A inadimplência, repetida, terá como primeiro efeito, o aumento da tarifa: quem paga regularmente, pagará mais, para cobrir o déficit deixado pelos inadimplentes. E, mais cedo ou mais tarde, também estes deixarão de pagar - e o sistema entrará em colapso, porque a água, embora nos tenha sido dada a todos, não nos chega nas torneiras, límpida e tratada, sem esforços e sem custos.

É o Tribunal de Justiça de São Paulo que diz que "se uma expressiva parcela dos consumidores, de um momento para outro, deixasse pura e simplesmente de pagar as contas pertinentes ao fornecimento de água, depois de algum tempo a companhia entraria em colapso. Ela não teria suporte financeiro para continuar a fornecer água e tratar esgoto, caracterizando-se aí uma ameaça real ao interesse social." (Apelação nº 0418189-64.2009.8.26.0577, 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Castro Figliola).

Também o Superior Tribunal de Justiça entende que "o corte do fornecimento de água está autorizado por lei sempre que resultar da falta injustificada de pagamento, e desde que não afete a prestação de serviços públicos essenciais, a exemplo de hospitais, postos de saúde, creches, escolas." (AgRg no REsp 1201283/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/09/2010, DJe 30/09/2010). Mais: "Mesmo quando o consumidor é órgão público, o corte do fornecimento de água está autorizado por lei sempre que resultar da falta injustificada de pagamento, e desde que não afete a prestação de serviços públicos essenciais, v.g., hospitais, postos de saúde, creches, escolas; caso em que só os órgãos burocráticos foram afetados pela medida. Agravo regimental provido." (AgRg na SS 1.764/PB, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, julgado em 27/11/2008, DJe 16/03/2009).

A rigor, "o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacífico de que não configura descontinuidade da prestação do serviço público a interrupção do fornecimento de energia elétrica após a prévia comunicação ao consumidor inadimplente. Precedentes." (AgRg nos EDcl no Ag 1155026/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/03/2010, DJe 22/04/2010).

A interpretação que nossas Cotes dão à lei, portanto, tem em vista o interesse coletivo de que se mantenham ativos os serviços básicos.

A par disso, parece-me que não há como, no sistema hoje vigente, imputar-se à companhia de saneamento básico o ônus de comprovar que o consumidor tem meios para pagar mas não o faz - isso demandaria, além de muito tempo e custo, a quebra dos sigilos fiscal e bancário do consumidor (sem isso, seria a "prova diabólica" a que se refere Georges Ripert).

Portanto, em que pesem as razões humanísticas que recomendam que não se corte o fornecimento de água de qualquer pessoa, o sistema legal hoje vigente tem em vista o "consumo em massa" e privilegia o interesse coletivo sobre o individual: melhor cortar a água de uma pessoa que deixou de pagar por qualquer razão, do que correr o risco de que todos deixem de pagar e fiquem, todos, sem água.

Portanto, com as regras que existem no Brasil e conforme elas têm sido interpretadas por nossas Cortes, se moro em uma casa (não em um condomínio) e deixo de pagar minhas contas de água à companhia de saneamento, devo ser avisado do corte e, em seguida, posso ter o fornecimento suspenso.

Por que, então, quem mora em condomínios (em que não haja medição individual) teria tratamento diferente? Não vejo razão.

Ao contrário: creio que os condôminos (e o condomínio, que os representa) têm razões até mais fortes que a fornecedora, para prover o corte do abastecimento de água - desde, claro, que a questão tenha sido debatida e aprovada em assembléia e que o corte seja precedido de aviso.

Não há erro em afirmar que o condomínio, pagando a conta de água de todos os condôminos à fornecedora de água, sub-roga-se no vínculo, podendo exercer, por isso, as mesmas prerrogativas daquela (artigo 349, do Código Civil) - inclusive a de interromper o fornecimento, se presentes as condições legais.

A coletividade, aqui, passa a ser o condomínio: se todos os condôminos deixarem de pagar as despesas comuns, que incluem a conta de água, o corte decerto sobrevirá, para todos. Assim, para o bem da coletividade condominial, a suspensão do fornecimento da água para o condômino inadimplente é medida necessária, inclusive para que o débito não cresça.

Não há, aí, albergue à vendetta dos demais condôminos, nem ofensa à dignidade humana - afinal, deixar de pagar a conta condominial, em certa medida e em muitos casos, é uma escolha.

Assim como há os que deixam de pagar a quota condominial de moradias modestas, porque de fato não têm como arcar com a despesa, há também aqueles que passeiam com automóveis novos pelas garagens condominiais (muitas vezes registrados em nomes de empresas, de filhos, de sogras até) sem pagar o que devem à coletividade de seus vizinhos. Não sei dizer onde está a maioria, se nos devedores infelizes ou nos devedores de má-fé - mas creio que estes não podem ser protegidos em função da deferência que se há de fazer àqueles.

Há de haver, também, dentre os condôminos (e os consumidores de água), aqueles que também têm dificuldades pessoais, mas que se desdobram, que sacrificam gostos pessoais e outras comodidades, e pagam em dia a conta comum. Será justo impor a eles o sacrifício de pagar a conta alheia? Não se lhes causa dano, fazer com que se sacrifiquem, como formigas, enquanto outros cantarolam, como cigarras?

A questão faz lembrar o cada vez mais esquecido imperativo categórico, formulado por Immanuel Kant: agir segundo máximas que possam servir como leis universais.

Assim, se o comportamento do condômino inadimplente, sejam quais forem suas razões, for replicado pelos demais condôminos, todos, obviamente, ficarão sem água.

Não há dúvidas, de outro lado, de que há situações em que a bondade humana deve suplantar a frieza das regras que constituem o Estado de Direito. Mas essa bondade deve ser voluntária, espontânea.

Melhor explicando: se os condôminos vêem que um de seus pares está carente de recursos e efetivamente não pode pagar sua conta condominial, espera-se deles que arquem com a conta alheia e suportem o custo acrescido. Se não o fizerem, estarão falhando com seu dever de caridade - mas, ainda assim, não creio que deva o Estado impor-lhes essa obrigação, ou sancioná-los por não a terem cumprido.

Ao Estado, que não se desincumbe a contento das tarefas que tem, não cabe obrigar o cidadão às práticas caritativas - até porque já não haveria aí nenhuma caridade, mas apenas a mão dura do Estado a carrear, a um e a outro, os custos sociais que deveriam ser - e são - distribuídos por toda a sociedade, através dos impostos.

São históricas, aliás, as tragédias que sobrevêm aos cidadãos quando o Estado impõe a prática do bem (assim entendido o conjunto de valores daqueles que estão no poder): o primeiro sacrifício que se faz é à liberdade e, sem ela, nada mais funciona, nada mais é seguro. Nada mais é bom.

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* Mauro Caramico é advogado do escritório Mauro Caramico Advogados

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