A "adoção às avessas"
Uma decisão da JF reconheceu, diante da legislação tributária, a dependência econômico-financeira de uma pessoa sem laços de consanguidade com a autora da ação. Trata-se de uma idosa que prestou serviços como doméstica a três gerações de uma mesma família.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
Atualizado em 16 de fevereiro de 2012 10:34
José Missali Neto
A "adoção às avessas"
Decisão recente (janeiro/2012) de primeira instância da Justiça Federal acolheu pedido da autora, na ação inédita neste Juízo, que é movida em face da UNIÃO (Fazenda Nacional), requereu-se o reconhecimento da "dependência econômico-financeira" de pessoa sem laços de consanguinidade que, ao longo dos últimos 70 (setenta) anos prestou serviços como doméstica a três gerações de uma mesma família.
Hoje a idosa, com pequenos lapsos de memória (isquemia), mas lúcida, permanece abrigada em um "lar para idosos" mantido por instituição presbiteriana filantrópica, uma vez que a autora, a quem prestava serviços não teve condições de cuidá-la, em razão da neoplasia que acometeu o seu cônjuge. Embora afastada do convívio familiar, a autora custeia suas despesas: plano médico, medicamentos, produtos de higiene pessoal, vestimentas etc. (que importam em gasto mensal de R$ 2.000), haja vista o parco benefício recebido do INSS. Típico caso de adoção às avessas.
Em contestação, a União Federal aduziu a impossibilidade de interpretação ampliativa das normas de isenção tributária, devendo ser interpretadas de forma restrita e literal, conforme disposto no art. 111 do Código Tributário Nacional. Asseverou a ausência de fundamento legal do pedido, em razão da ausência de laço de consanguinidade e efetiva dependência econômica, afastando a aplicação do art. 35, inc. VI, da lei 9.250/95. Alegou não ser possível aplicar analogia para concessão de isonomia tributária. Impossível a conciliação, requereu o julgamento antecipado da lide, por se tratar de matéria exclusivamente de direito.
O pedido de tutela antecipada foi indeferido em 08/06/2011, deferindo-se o pedido de prioridade de tramitação.
Em audiência, foi colhido o depoimento pessoal da autora.
Em alegações finais, a parte autora reiterou os pedidos expostos na inicial e a parte ré ratificou a contestação.
O Ministério Público Federal opinou pela procedência do pedido.
Assim, relatou, fundamentou e decidiu o I. Magistrado de primeira instância:
A controvérsia se fixa em dois pontos: a dependência econômica de "Maria..." em relação à parte autora, bem como a possibilidade do seu enquadramento para fins de dedução de imposto de renda - IRPF.
A dependência financeira esta verificada na impossibilidade da dependente custear suas próprias despesas, em razão dos parcos rendimentos de aposentadoria, sendo que atualmente reside no "Abrigo de Velhos..." da sociedade presbiteriana de assistência social, custeado pela parte autora.
Do conjunto probatório apresentado, especialmente os trazidos com a inicial (termo de ciência - fls. 16-7 e boletos bancários - fls. 18/20), demonstra claramente esta dependência econômica que liga a autora à idosa. Ainda, em depoimento pessoal, a autora é clara e objetiva ao relatar a necessidade da Sra. Maria em viver no referido abrigo, o que se iniciou em fevereiro de 2010, devido às condições da família dela, impassível de convívio adequado com a dependente, assim como da impossibilidade de convivência com a própria autora. Nesses termos, as despesas com a manutenção das condições de vida atuais são de aproximadamente R$ 2.000, sendo esses gastos básicos essenciais: tais como plano de saúde e medicamentos.
Deste modo, é inequívoco que o benefício previdenciário da dependente é insuficiente para manutenção do seu padrão de vida, estando justificado o auxílio conferido pela autora.
Resta verificar da possibilidade jurídica destas despesas para dedução de fins fiscais.
A legislação tributária assim prevê:
Art. 35. Para efeito do disposto nos arts. 4º, inciso III, e 8º, inciso II, alínea c, poderão ser considerados como dependentes:
I - o cônjuge;
II - o companheiro ou a companheira, desde que haja vida em comum por mais de cinco anos, ou por período menor se da união resultou filho;
III - a filha, o filho, a enteada ou o enteado, até 21 anos, ou de qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
IV - o menor pobre, até 21 anos, que o contribuinte crie e eduque e do qual detenha a guarda judicial;
V - o irmão, o neto ou o bisneto, sem arrimo dos pais, até 21 anos, desde que o contribuinte detenha a guarda judicial, ou de qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
VI - os pais, os avós ou os bisavós, desde que não aufiram rendimentos, tributáveis ou não, superiores ao limite de isenção mensal;
VII - o absolutamente incapaz, do qual o contribuinte seja tutor ou curador.
§ 1º Os dependentes a que se referem os incisos III e V deste artigo poderão ser assim considerados quando maiores até 24 anos de idade, se ainda estiverem cursando estabelecimento de ensino superior ou escola técnica de segundo grau.
§ 2º Os dependentes comuns poderão, opcionalmente, ser considerados por qualquer um dos cônjuges.
§ 3º No caso de filhos de pais separados, poderão ser considerados dependentes os que ficarem sob a guarda do contribuinte, em cumprimento de decisão judicial ou acordo homologado judicialmente.
§ 4º É vedada a dedução concomitante do montante referente a um mesmo dependente, na determinação da base de cálculo do imposto, por mais de um contribuinte.
Não há a previsão que se enquadre para o caso de dependência de maior sem vínculo de parentesco ou tutela/curatela reconhecida legalmente.
No entanto, o Estatuto do Idoso, no seu art. 36, assim dispõe:
Art. 36 - O acolhimento do idoso em situação de risco social, por adulto ou núcleo familiar, caracteriza a dependência econômica, para os efeitos legais.
Deste modo, calha analisar a possibilidade de utilização da dependência econômica do idoso para efeitos legais em âmbito tributário, independente de regulamentação específica do imposto de renda.
Acerca do tema, os ensinamentos de Wladimir Novais Martinez (in "Comentários ao Estatuto do Idoso, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2005, p. 93"):
"O art. 36 apresenta idéia nova, a extensão do conceito de dependência econômica. Quer dizer, se um idoso é recebido por pessoa ou família, entender-se-á que ele é dependente juridicamente desses entes acolhedores para os fins da legislação, particularmente no tocante ao Imposto de Renda (Decreto n. 3.000/99).
Não ficou clara a derrogação do art. 15 do PBPS, quando define quem são os dependentes do segurado, a impressão que fica é a de que o legislador pensava apenas na área fiscal. Se assim não for, falecendo esse adulto do qual dependia, ele concorrerá com os dependentes arrolados nos incisos II/III do art. 15 do PBPS". [Grifei]
Inicialmente, as disposições tributárias devem se analisadas de acordo com o que estabele o art. 111 do CTN:
"Art. 111 - Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I - suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II - outorga de isenção;
III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias".
A interpretação literal das disposições tributárias, no caso em análise, não afasta a possibilidade de aplicação do conceito de dependência econômica do idoso, no caso justificado pela vinculação afetiva constituída ao longo de anos de convivência, venha a depender economicamente da família que o acolheu, independente de um vínculo de parentesco consanguíneo.
Enfim, a literalidade da interpretação não afasta a necessidade de aplicação do Estatuto do Idoso, em consonância com o art. 234 da Constituição Federal, não caracterizando com isso interpretação extensiva dos dispositivos da lei 9.250/95, mas simples aplicação da lei 10.741/03, aplicado consoante regras preconizadas pelo próprio instituto da isenção da legislação tributária, principalmente nos arts. 8º e 35, ambos da lei 9.250/95, no quais se estabelece a forma e os limites de dedução do imposto de renda para a pessoa física.
Por derradeiro, face à comprovação documental ater-se ao início de 2010 (fevereiro de 2010, de acordo com Termo de Ciência juntado), de rigor a consideração da dependência econômica somente a partir do ano-calendário 2011.
Do dispositivo
<#Ante o exposto, com fundamento no art. 269, I, do Código de Processo Civil, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado por "ROSA..." contra a UNIÃO FEDERAL, para condenar a parte ré a reconhecer a dependência econômica de "Maria..." em relação à parte autora, para fins de apuração e dedução de imposto de renda de pessoa física, a partir do ano-calendário de 2011.
Sem condenação em custas e honorários advocatícios nesta instância. Defiro a gratuidade requerida. Sentença registrada eletronicamente. Publique-se. Intimem-se.#> Cabem os devidos recursos a instâncias superiores.
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* José Missali Neto é advogado do escritório Picchi Figueira Sociedade de Advogados
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