Classificação indicativa para poucos
Se a ADIn 2.404 proceder, a TV aberta poderá exibir cenas de sexo, drogas e violência a qualquer hora e dia da semana. A ADIn é contra o artigo do ECA que prevê sanções para emissoras que descumprirem regras de classificação indicativa.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Atualizado em 14 de fevereiro de 2012 12:03
Isabella Henriques
Classificação indicativa para poucos
Cenas de nu frontal masculino. Consumo de drogas injetáveis. Tortura com mutilação. Não foi muito para você? Então pense em algo mais forte, mais pesado. Que tal mais sexo, mais drogas, mais violência? Que tal estupro de crianças e adolescentes, violência familiar e humilhação de minorias? Então pense em tudo isso junto, ao mesmo tempo, passando às três da tarde de uma quarta-feira na tevê aberta. Ou em uma manhã de domingo.
Sexo, drogas e violência liberados na tevê aberta em todos os níveis, a qualquer hora, em qualquer dia da semana. Pois bem. É o que a tevê aberta brasileira poderá mostrar para nossas crianças se prevalecer o voto do Exmo. Ministro Toffoli no julgamento da ADIn nº 2.404, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro - PTB
Isso porque nesse julgamento está em discussão a constitucionalidade da expressão "em horário diverso do autorizado" constante do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal 8.069/90, que delineia as sanções cabíveis para o caso de descumprimento da chamada 'vinculação horária', determinada pelo artigo 220, §3º, I e II da Constituição Federal.
De acordo com o mencionado voto, que, diga-se de passagem, já foi acompanhado pelos Exmos. Ministros Ayers Britto, Cármen Lúcia e Luiz Fux, a regulação por parte do Poder Público acerca dessa questão consubstanciaria censura, ou seja, cerceamento à liberdade de expressão do pensamento.
Mas, como explicar isso a um pai e a uma mãe típicos da realidade brasileira, que não têm acesso a outras formas de diversão ou meios culturais e permitem que seus filhos assistam à tevê - aberta, claro, porque não fazem parte da minoria da população com acesso a canais por assinatura - nas tardes após o retorno da escola, enquanto estão trabalhando fora de casa. É uma pergunta e tanto. Não saberia como fazê-la. Liberdade de expressão de quem? Talvez fosse essa a primeira pergunta que esse pai e mãe fariam se conseguissem expressar sua quase certa indignação.
Para o Exmo. Ministro a resposta parece simples: a indicação da adequação do programa que o deve anteceder bastaria para que os pais, exercendo seu poder familiar, permitissem - ou não - que seus filhos assistissem ao conteúdo da programação. Ainda que durante as 'sessões da tarde', enquanto a imensa maioria dos adultos está trabalhando fora de casa e sem condições de atentar para a indicação da faixa etária da programação - a qual, ademais, não é informada durante os comerciais da programação, nem, tampouco, nos jornais e páginas da Internet onde se encontra a programação diária televisiva...
Parece-me que sob a escusa de se manter intacta a garantia constitucional da liberdade de expressão o campo da radiodifusão brasileira acabaria por se tornar terra de ninguém, na qual nem a Constituição Federal chegaria, nem mesmo em um exame quanto à proporcionalidade de uma restrição em relação à necessidade de proteção de uma parcela da sociedade sabidamente vulnerável, como são crianças e adolescentes.
Aliás, para o voto do Exmo. Ministro Relator, a vida dos filhos, sua educação, formação e valores interessam exclusivamente a seus pais, na medida que qualquer ação vinda do Poder Público poderia redundar em um paternalismo estatal. Então, fico pensando na obrigatoriedade do uso de cadeirinhas nos automóveis para o transporte de crianças e também na violência doméstica. Será mesmo que não interessa ao Estado garantir o disposto no artigo 227 da Constituição Federal, que, aliás, transfere essa responsabilidade pelo bem-estar infanto-juvenil também ao Estado, de forma compartilhada com os pais e com a sociedade? Parece claro que interessa sim.
Permitir que crianças e adolescentes tenham contato com conteúdo audiovisual impróprio a sua faixa etária é certamente uma violência. Violência tamanha que já foi comprovada em inúmeros estudos realizados em todo o mundo e que embasaram não só a política da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, mas diversas outras políticas em países onde a liberdade de expressão e a democracia são consolidadas e, de fato, há muito mais tempo do que no Brasil.
Nem mesmo a garantia constitucional da liberdade de expressão é absoluta. Não existe garantia constitucional absoluta. E na discussão do presente caso há um flagrante confronto com a também constitucional garantia do desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.
Urge que o Poder Judiciário retome com serenidade o caminho da Justiça e não jogue no ralo um dos pouquíssimos avanços havidos recentemente no campo da comunicação brasileira.
A Classificação Indicativa é uma conquista de toda a sociedade brasileira. Pais, mães, filhos, filhas, avôs, avós, netos e netas. É o interesse dessa sociedade que merece ser observado e respeitado nesse julgamento. Sob pena de se ter uma classificação indicativa de faz de conta, que em última análise poderia, vá lá, servir tão somente para os poucos pais e mães que não trabalham fora ou contam com a ajuda de babás para cuidarem de seus filhos e, assim, acompanharem em tempo real tudo o que os pequenos consomem em termos de programação televisiva.
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