Indignação!
O autor se revolta contra o "caráter antidemocrático" do projeto de Código Comercial, que para ele é uma verdadeira "aberração jurídica".
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Atualizado em 31 de janeiro de 2012 11:26
Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França
Indignação!
Antes do que a qualquer amigo e colega, devo lealdade ao meu País. Torno, assim, a incomodar os leitores com o projeto de Código Comercial. Como professor de Direito Comercial que sou, faltaria ao meu dever de lealdade - inclusive para com os que acreditam aprender algo de mim -, se não combatesse esse projeto totalmente antidemocrático, esse fato consumado que já se acha no Congresso sem a prévia discussão de um Anteprojeto, essa aberração jurídica que se quer impingir ao Brasil, devido a um compadrio inadmissível em uma república democrática. Uma ação entre amigos. E lixe-se a Nação (para não usar uma expressão norte-americana que traduz muito melhor o que ocorrerá se esse inadmissível projeto vier a ser aprovado).
Lembro, antes, apenas de um ponto importantíssimo. Não se troca de leis - quanto mais de códigos! - como se troca de roupa íntima. O Código Civil que está aí não tem nem dez anos de vigência. A adaptação das sociedades, associações e fundações às disposições do novel Código prorrogou-se até 11 de janeiro de 2007!
O diploma foi feito por um conjunto de juristas de peso. Dir-se-á que isso é um argumento de autoridade. E é mesmo. Mas refere-se a quem tinha e quem tem autoridade (o Ministro Moreira Alves, que sabe alguma coisinha de Direito Civil, continua na ativa). Ninguém aprende bem Direito Comercial sem ler as estupendas teses do Prof. Sylvio Marcondes (Ensaio sobre a Sociedade de Responsabilidade Limitada e Limitação da Responsabilidade de Comerciante Individual) e os seus magistrais estudos publicados em Problemas de Direito Mercantil e Questões de Direito Mercantil. Escreveu pouco, mas bem. Muito bem. Soberbamente bem. Ninguém aprende obrigações direito sem ter lido A Inexecução das Obrigações e suas Consequências, de um sábio chamado Agostinho Alvim; e A obrigação como Processo, de outro sábio chamado Clóvis do Couto e Silva. E por aí vai. E essa gente toda (omito-me de repetir o nome dos demais colaboradores porque já os nomeei em artigo anterior) foi supervisionada por um jurista do porte do Prof. Miguel Reale, que é um dos maiores, senão o maior que o Brasil já teve. Besteira eles não podem ter feito. Nada no Código está ali de graça. Tudo tem a sua razão de ser. Pode-se discordar das soluções encontradas, mas bobagem eles certamente não fizeram.
De qualquer modo, se o regime da sociedade limitada não satisfaz, uma de duas: (i) ou se o altera pontualmente, para não quebrar a coerência do sistema do Código; ou (ii) se constitui uma comissão de especialistas - já que se trata do tipo societário mais utilizado no Brasil - para elaborar um Anteprojeto sério e aprofundado, que seja amplamente discutido pelos órgãos de classe interessados, antes de ser enviado ao Congresso Nacional. E ainda que se pudesse admitir a ideia de um novo Código Comercial - para mim totalmente injustificável, a essa altura, com a devida vênia - o mesmo procedimento - com muito mais razão! - deveria ser observado.
Agora, passo a analisar o monstrengo jurídico que querem nos empurrar goela abaixo.
Começo relembrando que a "Minuta de Código Comercial" (não é "minuta de anteprojeto de lei", viu, Prof. Fábio, como o senhor disse no artigo publicado neste ultrademocrático jornal em 22/12/11, tentando agora fingir humildade; é "Minuta de Código Comercial" mesmo, como consta do seu livro "O futuro do direito comercial" - o destaque não é meu -, Saraiva, 2011) tinha 1.076 artigos; o projeto, aparecido nem bem um ano depois, tem 670. Dá para acreditar na seriedade de um negócio desses? Então existiam 406 artigos supérfluos na "Minuta"?
Passo agora às platitudes. "Em caso de inadimplemento", diz o art. 276, "o empresário credor pode exigir judicialmente o cumprimento da obrigação". Eu pensava que qualquer credor pudesse fazer isso. Não sabia que era uma prerrogativa do empresário. "São princípios do direito contratual empresarial", diz o inciso II do art. 303: "plena vinculação dos contratantes ao contrato". Preciso comentar? Deve ser alguma brincadeira que querem fazer com o nosso povo, devem achar que somos todos idiotas.
Vamos aprofundar um pouquinho. O projeto quer ser moderno. Não gosta de coisas que herdamos do direito romano e que constituem elementos estruturais do contrato de sociedade. Diz, pois, o art. 195, na sua inteira modernidade: "É nula a cláusula que exclua qualquer dos sócios da participação nos lucros da sociedade". Percebem como é moderno? Não é mais nula, pois, a cláusula que exclua qualquer dos sócios da participação nas perdas. Será lícito prever, assim, em uma sociedade limitada, que a quota do sócio (a do sócio controlador, por exemplo, por que não?) não sofra qualquer desvalorização em caso de prejuízo na atividade social. Viram como se protege a minoria, que constitui um dos objetivos do projeto? Aprenderam?
Vamos aprofundar um pouquinho mais. O projeto parece confundir sociedade com pessoa jurídica: "Definida a sociedade empresária como pessoa jurídica, seria um contrassenso cogitar-se de algo como uma 'sociedade despersonificada', incongruência conceitual, lógica e jurídica em que incorre, por exemplo, o Código Civil (arts. 44, II e 986 a 996) [nota nossa: a leviandade da crítica só não é maior do que a pretensão do projeto]. A conta de participação é um contrato de investimento comum. Não tendo personalidade jurídica própria, não pode se classificar como pessoa jurídica. Por esta razão, ela é disciplinada entre os contratos empresariais" ("O futuro do direito comercial" - o destaque não é meu - Saraiva, 2011, p. 13). Viram que interessante? Por essa surpreendente lógica, então, não se entende bem por que razão a "sociedade irregular" (que se acha disciplinada, com "incongruência conceitual, lógica e jurídica", justamente nos supracitados arts. 986 a 990 do Código Civil, sob o correto nome de sociedade em comum, pois nada tem de irregular), que não tem personalidade jurídica, segundo o projeto, foi regulada... entre as sociedades (arts. 132 e segs.)! Devia estar também no arraial dos contratos.
Bastaria a leitura da Exposição de Motivos (do Anteprojeto do atual Código Civil) que, em matéria societária, é de autoria do Prof. Sylvio Marcondes, para bem se compreender a razão da suposta incongruência: "Ora, a sociedade, acordo de vontades apto a constituir direitos subjetivos, é negócio jurídico, a produzir efeitos imediatos, de caráter societário e independentes de que ela adquira, ou não, personalidade jurídica. A personificação, fenômeno posterior, do qual a existência da sociedade é pressuposto, constitui a fonte geratriz de um novo sujeito de direito, capacitado a ser titular do patrimônio especial que, previamente composto pelas partes separadas dos patrimônios individuais dos sócios, se desliga da titularidade destes, para transformar-se em patrimônio autônomo, objeto de nova titularidade" (Problemas de Direito Mercantil, Max Limonad, 1970, p. 145, destaques em negrito meus). A sociedade, portanto, é um pressuposto da personalidade jurídica, assim como o são uma associação ou uma fundação. São coisas inconfundíveis e um projeto minimamente estruturado não baralharia coisas tão elementares, não cometeria tamanho delito contra a lógica.
E mais. Não trataria os integrantes de uma "sociedade irregular" (sic) como marginais, ao dispor que "todos os seus sócios respondem pelas obrigações sociais direta, solidária e ilimitadamente" (destaque meu). Num país em que grassa o analfabetismo, sobretudo jurídico, como estão a demonstrar, por exemplo, os exames da OAB, pretende-se responsabilizar diretamente - e não subsidiariamente, como corretamente o faz o Código Civil atual - todos os sócios de uma sociedade em comum (o projeto também não entendeu a revolução que o Prof. Sylvio Marcondes fez com relação a essa matéria) e não apenas aquele que contratou pela sociedade (art. 990 do Cód. Civil). O pobre coitado que assinou um contrato de sociedade que não foi registrado (o que com toda a certeza muito brasileiro não sabe que é necessário fazer) está sujeito a responder diretamente perante os credores, antes mesmo da excussão do patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum (art. 988).
Vamos aprofundar ainda um pouquinho mais.
O projeto assim define o empresário: "Art. 9º. Empresário é quem, sendo pessoa física ou sociedade, está inscrito como tal no Registro Público de Empresas". Eu sempre pensei que empresário fosse quem exercesse empresa, ou seja, atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Não sabia que era o registro que o definia. Ao menos foi o que aprendi desde cedo, no segundo ano da faculdade, quando estudei teoria geral do Direito Comercial: o registro não é constitutivo da situação de comerciante ou empresário. Lição primária, com a devida vênia.
Mas o curioso é que o projeto dispõe, no seu art. 3º, que "não se considera empresa a atividade de prestação de serviços própria de profissão liberal, assim entendida a regulamentada por lei para cujo exercício é exigida formação superior". E, no art. 13 (não se sabe por que razão não o fez em parágrafo único ao art. 3º, foi colocar lá adiante; deve ser para aumentar o número de artigos dessa grandiosa obra), arrematou: "Não é empresária a pessoa física ou jurídica que explora as atividades relacionadas no art. 3º deste Código, ainda que conte com o concurso de auxiliares ou colaboradores".
Veja-se o que diz o Código Civil a respeito: "Art. 986. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa".
Percebem a grande inovação que o projeto perpetrou? Ele incluiu na conceituação de empresário o literato ou artista (cujas corporações deveriam queimar o projeto em praça pública) que conte com o concurso de auxiliares ou colaboradores. Aqui também não se deu atenção a outro ensinamento do Prof. Sylvio Marcondes, constante da Exposição de Motivos: "Dessa ampla conceituação [de empresário, o Anteprojeto] exclui, entretanto, quem exerce profissão intelectual, mesmo com o concurso de auxiliares ou colaboradores, por entender que, não obstante produzir serviços, como o fazem os chamados profissionais liberais, ou bens, como o fazem os artistas, o esforço criador se implanta na própria mente do autor, de onde resultam, exclusiva e diretamente, o bem ou o serviço, sem interferência exterior de fatores de produção, cuja eventual ocorrência é, dada a natureza do objeto alcançado, meramente acidental" (ob. cit., p. 141, negritos meus)". Ao que Ascarelli, comentando disposição semelhante do Código Civil italiano, acrescentava que isso ocorria também porque há uma diversa valoração social com relação ao trabalho intelectual. Não há produção em massa, há premissas de decoro da profissão, etc (cf. Tullio Ascarelli, A atividade do empresário, Revista de Direito Mercantil n. 132, p. 206-207).
Outra brilhante inovação que o projeto perpetrou está em seu art. 180: "As quotas são penhoráveis por dívida do sócio, salvo se o contrato social as gravar com a cláusula de impenhorabilidade". Não estamos diante de uma porta aberta para a fraude? O autor do projeto argumentou, ironicamente, em debate que manteve comigo no auditório da AASP, que a cláusula de impenhorabilidade é uma coisa "antiga", insinuando, com isso, que é algo que eu deveria conhecer. Na ocasião, não houve oportunidade de estender-me sobre o argumento, tantos os temas em discussão. Faço-o agora. Sinceramente eu não sabia que nós podemos - salvo em hipóteses excepcionais como a do bem de família - estabelecer cláusulas de impenhorabilidade sobre os nossos próprios bens. Eu pensava que tal cláusula só pudesse ser instituída em favor de terceiros, mediante doação ou testamento. Aprendi mais uma lição.
Mas há ainda outra perpetração. A perpetração da usura: "Art. 281. É livre a pactuação dos juros moratórios entre os empresários".
Para finalizar este primeiro artigo (darei continuidade, tenham certeza, isso é apenas uma pequena amostra), resta chamar atenção para a ululante prolixidade deste projeto repleto de sandices e lugares-comuns.
Já demonstrei em meu primeiro artigo neste prestigioso Migalhas (em 13/12/11), a inutilidade dos arts. 144 a 149, 151 a 154, 158, 159 e 161 do projeto, todos constantes da Lei de S/A.
Agora, prossigo: "Art. 383. Pelo contrato de agência, o empresário colaborador (agente ou representante comercial autônomo) se obriga a obter pedidos de compra dos produtos ou serviços oferecidos pelo empresário fornecedor (agenciado ou representado). Art. 384. O contrato de agência (representação comercial), bem como os direitos e obrigações do agente (representante comercial autônomo) e do agenciado (representado), sujeitam-se à disciplina da lei especial".
Ou mais esta, relativa à locação empresarial (que, de forma instigante para a inteligência, não é tratada na parte relativa aos contratos empresariais): "Art. 104. É empresarial a locação de prédio urbano em que o empresário locatário instala seu estabelecimento empresarial, desde que: I - a locação tenha sido celebrada por escrito e com prazo de no mínimo 5 (cinco) anos; e II - não tenha havido alteração do ramo de empresa explorado no local nos 3 (três) últimos anos de vigência do contrato. Parágrafo único. O lapso temporal referido no inciso I considera-se cumprido se alcançado pela soma dos prazos ininterruptos de contratos escritos sucessivos. Art. 105. Na forma da lei especial, o empresário tem direito à renovação do contrato de locação empresarial".
Perceberam o que se passa? Em bom direito isso se chama "encher linguiça". Encher linguiça para que fique com a careta, melhor dizendo, com a carantonha, de um código, compreendem?
Oxalá a Presidente Dilma, que dizem ser pessoa séria e determinada, venha a tomar conhecimento do que estão querendo fazer com o Brasil.
É revoltante, é absolutamente revoltante!!!
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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França não é jurista; é Professor Doutor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e advogado.
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