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Caso Rafinha Bastos - não é tão simples assim...

A procuradora do Estado de SP elenca aspectos que deixaram de ser considerados no caso da condenação do comediante Rafinha Bastos.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Atualizado às 10:18

Mirna Cianci

Caso Rafinha Bastos - não é tão simples assim...

A um lance superficial, a palavra dita ofensiva do jornalista e a consequente condenação aparentam eloquente justiça que, todavia, numa análise mais detida, não sobrevive a questionamentos jurídicos que ficaram ao desabrigo.

Em primeiro lugar, quanto ao nascituro, ainda que colocados a salvo seus direitos, não se pode admitir que, ausente a sensibilidade à dor, possa ser ele credor de reparação. Deverá ser efetivamente aquilatada a repercussão efetiva na personalidade da vítima e sua aptidão para assimilar tais efeitos de modo perceptivo.

Pelo mesmo motivo, têm sido afastados os pleitos indenizatórios onde se constata que o fato constitui mero aborrecimento, incapaz de depreciação ao sentimento humano, ou seja, por sua inaptidão em afetar o espectro moral do ofendido.

Em abalizado estudo, Maria Fancisca Carneiro releva esse caráter, ao assumir, dentre os "elementos que se deve ter em conta para fixar a monta da reparação", a receptividade particular da vítima, a respeito da qual define tratar-se de "condição fisiológica específica do indivíduo, ou mesmo à estruturação psicológica da personalidade, que faz com que o sujeito seja mais ou menos vulnerável, mais ou menos susceptível, mais ou menos resistente a esta ou àquela outra forma de dor".1

Essa feição particular da vítima merece especial atenção, porque, o que a um determinado indivíduo pode causar verdadeiro sofrimento, a outro, a mesma e idêntica situação, pode ser recebida sem nenhuma dor.

Nesse sentido, temos a questão analisada em função da postulante, que se considerou ofendida em sua honra, por conta da ofensa. Wanessa Camargo e sua família frequentam e sempre frequentaram assiduamente a mídia, expondo sem nenhum pudor sua vida particular em episódios notórios que ainda cabem na memória, alguns que valem ser relembrados:

Veja - Você contou a eles sobre a sua primeira vez?

Wanessa - Minha mãe questionou minha virgindade quando eu tinha 15 anos e pedi para ir ao ginecologista. E olhe que eu era mesmo virgem. Desde então, nunca mais tocou no assunto. Com meu pai, jamais conversei a respeito de sexo. Ele vai ficar louco da vida quando souber que perdi minha virgindade, porque sempre me viu como a menininha do papai. E o pior é que ele vai saber através de VEJA... Mas, enfim, sou uma mulher, tenho meus desejos e minhas vontades. (https://veja.abril.com.br/260203/entrevista.html). Em seguida a esse episódio, o pai de Wanessa, Zezé di Camargo, foi a programas de televisão e deu inúmeras entrevistas sobre o conteúdo da entrevista da filha, sem a mínima preocupação com a exploração comercial de sua intimidade.

Em outra oportunidade, sendo entrevistada, mencionou Wanessa, quando comparada a Sandy, personagem que atua com discrição em sua vida particular "Nada contra a Sandy, mas ela e a virgindade dela que se joguem de uma ponte bem alta" (Wanessa Camargo sobre Sandy).

O pai de Wanessa recentemente protagonizou notório episódio de briga com seu irmão e parceiro musical, explorando de modo evidentemente exagerado, na mídia, um problema que, para as pessoas comuns, costuma ser resolvido entre quatro paredes e entre familiares.

Esse comportamento em nada se iguala à atitude de um indivíduo que faça por preservar a intimidade, mantendo suas questões pessoais protegidas do conhecimento público, razão que leva a crer que a recepção de uma ofensa pública possa ser por este absorvida de modo absolutamente diferenciado.

Acrescente-se que, por ocasião do evento, a cantora compareceu a vários programas populares, para dar entrevista sobre o assunto que, fosse doloroso, deveria ser por ela evitado, e não tomado ainda maior proporção por ela própria acarretada, como de fato acabou por acontecer.

Desses episódios que marcam a conduta da cantora e família, forçoso concluir que a agora esposa e mãe de família nunca se preocupou em preservar sua imagem, sua intimidade, etc.. Assim demonstrado, pairam as dúvidas:

 Do episódio, ainda que fosse considerado reprovável, não teria rendido à cantora a desejável (e sempre provocada) exposição na mídia (rentável exposição), ainda mais na condição de vítima de ocasião??

 Teria ela, friamente analisada sua conduta pregressa, sofrido com essa exposição na mídia ou dela obtido vantagem, em especial pela dimensão que proporcionou ao evento, comparecendo em programas populares e concedendo inúmeras entrevistas a respeito do fato?

 Em resumo: teria havido dano??

A maioria dos civilistas sempre sustentou que o ato ilícito só interessa ao direito sob a ótica do dano, portanto, da reparação. Desde o ordenamento anterior (art. 159 do antigo Código Civil), verificava-se esse indispensável liame, no que concerne à responsabilidade civil, entre ilícito e dano.

Nesta linha, de acordo com o conteúdo do mencionado dispositivo, a reparação do dano deveria ocorrer quando, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, houvesse violação a direito ou prejuízo a outrem. Note-se que devido ao emprego da conjunção ou, a reparação do dano dependia da ocorrência de uma das alternativas, importa dizer, violação a direito ou prejuízo a outrem. Logo, para efeito de responsabilidade civil, as categorias do ilícito e do dano foram equiparadas, partindo-se da premissa que a tutela de reparação do dano é a única forma de tutela contra o ilícito.

De fato, o ilícito civil sempre foi um ilícito de dano. Essa tradição acabou refletida no texto do art. 186, do Código Civil vigente, que estabelece: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

No campo da reparação moral, a súmula 385/STJ bem retrata essa condição, ao delinear que, ainda que negativado ilicitamente, o individuo que tenha outras anotações em seu nome (estas lícitas), não terá direito à reparação, justamente porque ausente o dano, já que o abalo de crédito (leia-se dano) resulta de sua reiterada inadimplência e não do isolado ato, ainda que equivocado (leia-se ilícito).

Assim, ainda que presente o ilícito, haveria que ter sido de fato aquilatada a existência do dano moral, aqui considerada a repercussão do fato na personalidade da vítima, capaz de lhe impingir sofrimento real.

Essa consequencia resulta ainda mais enfraquecida se verificado que os autores buscaram, mediante ação judicial, não a reparação in natura, mas a compensação pecuniária. Ora, sendo sincero o pleito, por evidente que traria muito maior satisfação a pública retratação do ofensor (pelos mesmos meios em que perpetrada) e não a retribuição financeira.

Pontes De Miranda2 textualmente afirma que "tem de vir em primeiro lugar a reparação em natura. E, apenas se não há outro meio de ressarcimento que o da avaliação em pecúnia, dele se tem de lançar mão". O Autor menciona como repristinação a devolução natural das coisas ao estado anterior. E, essa tem sido considerada a forma mais perfeita de recomposição do dano3, que desafia as opiniões a respeito da impossibilidade de avaliação do dano moral. José de Aguiar Dias4, ao estudar as formas de liquidação do dano moral, menciona a possibilidade de "reparação natural ou específica" alertando para o fato de que esta "corresponde melhor ao fim de restaurar" somente admitindo a indenização pecuniária quando absolutamente inviável a reparação natural.

Bem anota Paulo de Tarso Vieira Sanseverino que "embora seja bastante difícil fazer desaparecer completamente os efeitos danosos do ato ilícito, quando viável, a reparação natural é o modo que melhor restabelece o estado em que se encontrava a vítima antes da ocorrência desse ato"5.

Evidente que aos autores o valor equivalente a 30 salários mínimos não reduz nem aumenta eventual efeito moral que possa ter o evento causado à abastada família. O que se verifica, na pretensão e na condenação, será a indisfarçavel intenção de punição do ofensor e não de reparação às vítimas.

E o caráter punitivo do dano moral, outrora defendido pela doutrina e frequentemente utilizado pelo Judiciário como critério de valoração da reparação moral, atualmente revela-se teoria ultrapassada. O Superior Tribunal de Justiça com maior frequência amenizou e melhor enquadrou esse caráter indenizatório, decidindo reiteradamente que "(....) a aplicação irrestrita das "punitive damages" encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002."6

Nesse mesmo julgado, a Corte expressamente considerou que "(...) a rigor, a indenização por dano moral trata-se mais de uma compensação do que propriamente de ressarcimento (como no dano material), até porque o bem moral não é suscetível de ser avaliado, em sua precisa extensão, em termos pecuniários", assumindo com isso o aqui defendido caráter compensatório e não punitivo da aferição da reparação moral, antes destacando uma "certa perplexidade" com que convive aquele C.Tribunal "no concernente à fixação ou avaliação pecuniária, à míngua de indicadores concretos".

Acrescente-se que inexiste em nosso ordenamento legislativo qualquer previsão capaz de dar suporte a essa punição, e, como regra de interpretação, deve ser restritiva a atuação exegética. Com efeito, a inclusão do art. 16 do Código de Defesa do Consumidor foi vetada pelo Presidente da República e, o acréscimo de parágrafo ao artigo 944 do Código Civil/2002 veio a ser rejeitado pelo Congresso Nacional.

Portanto, sem adentrar a reprovabilidade da conduta ou mesmo a sua repercussão na esfera ideal dos ofendidos, não há como aplaudir, pura e simplesmente, senão em razão de leiga indignação, a condenação do humorista, a não ser que respondidas - e bem respondidas (leia-se instrução processual) as dúvidas aqui lançadas, acerca da efetiva ocorrência de dano e da real intenção dos demandantes, ao propor a ação e dar reiterada publicidade ao evento.

Não é tão simples assim !!

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1Avaliação do Dano Moral e Discurso Jurídico, Porto Alegre: Fabris Editor, 1998, p. 65

2Responsabilidade Civil, ,p.76

3Na lição de Sérgio Severo, apud Clayton Reis, ob.cit.,p.117

4Ob.cit.,pg.724

5Apud Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, ob.cit., p. 35

6REsp 210.101/PR, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 20/11/2008, DJe 09/12/2008. No mesmo sentido: REsp 401.358/PB, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 05/03/2009, DJe 16/03/2009; AgRg no Ag 850.273/BA, Rel. Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), QUARTA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 24/08/2010

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* Mirna Cianci é procuradora do Estado de São Paulo


 

 

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