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O papel da Filosofia do Direito em tempos de crise

Eduardo C. B. Bittar

A Filosofia do Direito tem uma longa história de luta por sua afirmação, que remonta aos esforços seissentistas dos jusnaturalistas como Grotius, Pufendorf e Suarez, na Europa, e, mais especificamente no Brasil, desde os ensinamentos novecentistas colhidos da primeira aula de Direito proferida em solo nacional pelo Conselheiro Brotero sobre o direito divino do povo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Atualizado em 5 de agosto de 2005 15:12

O papel da Filosofia do Direito em tempos de crise


Eduardo C. B. Bittar*

A Filosofia do Direito tem uma longa história de luta por sua afirmação, que remonta aos esforços seissentistas dos jusnaturalistas como Grotius, Pufendorf e Suarez, na Europa, e, mais especificamente no Brasil, desde os ensinamentos novecentistas colhidos da primeira aula de Direito proferida em solo nacional pelo Conselheiro Brotero sobre o direito divino do povo. Mas, quando se tem de ressaltar a relevância da prática filosófica, enquanto exercício do pensar, do julgar e do avaliar, deve-se retomar uma lição de filosofia da história de Hegel, a quem se atribui a sistematização da Filosofia do Direito, para considerar que não há pensamento fora do tempo histórico: "A filosofia é a apreensão de seu tempo pelo pensamento. Portanto, é tão insensato imaginar que alguma filosofia possa transcender seu mundo presente, como que um indivíduo possa desprender-se de seu tempo e saltar por cima dele". Se assim é, avaliar a relação entre nossos tempos e o papel da Filosofia do Direito é uma tarefa inescapável da própria auto-compreensão do pensamento por si próprio.

Quando se trata de avaliar a presença da Filosofia do Direito no plano da crítica dos tempos que correm sob os nossos olhos, marcados pela falência do modus moderno de vida e crença, bem como pela simultânea emergência de uma crise permanente de matrizes estruturais da sociedade, da política, da economia, da soberania, da moral, da religião e dos padrões de ação individual, pode-se considerar a relevância de batizar estes tempos sob o rótulo da pós-modernidade. A conveniência da expressão está em seu próprio amorfismo conceitual, pois a sensação carreada pelo seu conceito coincide com a percepção dos tempos em que vivemos. Quando se ancora sob na expressão pós-modernidade a identidade de um tempo, é porque de fato se percebe que sua ambigüidade traduz a exata idéia do que se passa nestas circunstâncias.

Vive-se em tempos favoráveis à anestesia do pensamento, da reflexão, em função dos diversos convites à dispersão, à apatia, à indiferença, ao individualismo fruidor, à viciação comum nos mecanismos de comunicação, nas táticas de sedução pelo consumo, na tara coletiva pela posse de bens de afirmação sócio-econômica, na automatização e homogeneização dos padrões de ação profissional, etc. Mas, no lugar de se pensar na renúncia do filosofar, ante os pesares práticos, ante as experiências históricas mais recentes, ante as mudanças operadas dentro da própria concepção dos saberes, deve-se mesmo perceber neste processo de re-arranjo de sentido para as coisas (incluindo fatos, valores e saberes), uma reviravolta em processamento, no sentido de um evolver das concepções em rumo.

Ora, a marcha que segue adiante deve ser estagnada para que se possa, por meio da parada reflexiva, aquilatar os prejuízos e ganhos do processo, o que só faz com que se engrandeçam as tarefas do pensar filosófico, em especial da Filosofia do Direito que cuida de um objeto de investigação tão caro à estruturação do convívio social e tão fundamental para a delimitação do sentido de justiça, valor este que, segundo Bobbio, possui o equivalente peso de significação para a sociedade, como a idéia de liberdade tem para o indivíduo (Bobbio, Igualdade e liberdade, 1997, p. 75).

O que se percebe, portanto, é que, num contexto de transformações, de emergência do pragmatismo, de dominância das consciências pelo imediatismo, de subserviência das mentalidades em relação aos imperativos de consumo, de decréscimo do poder-de-dizer-a-verdade pelas ciências, de intensificação da presença das leis do mercado na construção das políticas públicas, que deve se re-afirmar o destaque da atividade do pensar filosófico, como uma prática de saber profundamente comprometida com as aflições humanas. Como exercício humanístico é que se reascende, como desdobramento de uma prática ético-teórica, a mentalidade do porquê do agir filosofante. Num certo sentido, pensar, num mundo com estas características, é já agir na contra-marcha da simples aceitação dos fatos.

Isto importa em dizer que pensar a tarefa da Filosofia do Direito é pensar, neste momento, sobretudo o seu papel social no meio em que se encontra, vale dizer, pensar a sua inserção na 'realidade fenomenal', como modo e método de, se imiscuindo na realidade social, possa na fluidez heraclitiana dos fatos, perceber a possibilidade de ação que possui, ao atuar criticamente sobre uma realidade marcada pela injustiça social, pela oneração de certas classes nos custos sociais, pela corrupção e pela perda do sentido do que é comum.

Se clima e atmosfera conspiram contra o aparecimento deste compromisso, pouco importa, porque, mais uma vez (de Sócrates a Nietzsche, de Platão a Foucault), trata-se de resistir a simplesmente viver condicionado pelos fatos, para, como ensina Celso Lafer (Lafer, A legitimidade na correlação direito e poder, Miguel Reale: estudos em homenagem a seus 90 anos, Porto Alegre, ps. 95/ 105), insculpir um modo de vida em que se vive o próprio pensar, para inventar (e inventariar) pelo pensamento, novos horizontes de possibilidades e ações contra-fáticas.

Se são muitos os desafios destes tempos, no entanto, as metas da disciplina não são de difícil identificação, pois se pode reproduzir a lição de lucidez de Arthur Kaufmann, que, em sua aula de despedida da Universidade de Munique, retrata todo o sentido da tarefa jusfilosófica desafiada pelos tempos pós-modernos:

"De este modo queda expuesta, en resumen, la filosofía del derecho de la posmodernidad ¾puesto que en suma se presenta en la posmodernidad¾, ¿ qué exigir de ella? La filosofía del derecho de la época posmoderna debe estar determinada por la preocupación por el derecho y esto siginifica preocupación por hombre; aún más: la preocupación por la vida en general en todas sus formas."

"El deseo manifiesto de mi conferencia de despedida sobre el tema Filosofía del derecho posmoderno, fue la reanimación de una filosofía del derecho de contenido que se preocupe de los verdaderos problemas, de las cuestiones decisivas y hoy conciernen realmente a los hombres y a la humanidad: paz, alimento suficiente para todos, vida segura, problemas de la energía nuclear, la biotecnología, la genética humana... ¿no son estos acaso problemas de la filosofía del derecho, de la doctrina sobre la justicia? ¿No se requiere en todas partes por lo que se denomina justicia social y bienestar común? ¿Y a quién corresponde su cuidado? En primer lugar por cierto, los filósofos del derecho" (Arthur Kaufmann, La filosofia del derecho em la posmodernidad, 1998, ps. 72 e 73).

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*Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Titular de Filosofia do Direito e Coordenador de Propedêutica da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado. Professor e Pesquisador do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO





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