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Moral Insalubre

Mario André dos Santos Chaves de Oliveira

Sem abordar a questão do cigarro em si, o advogado questiona a lei antifumo, desenrola o assunto para os campos da moral e da ideologia, e levanta a discussão: até que ponto a lei pode estabelecer limites para um indivíduo capaz e informado decidir os destinos de sua vida?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Atualizado em 16 de dezembro de 2011 11:53

Mario André dos Santos Chaves de Oliveira

 

Moral insalubre

Há pouco tempo, assisti a um programa de entrevistas na televisão onde um médico era entrevistado sobre a MP 540 (que resultou na recém-editada lei 12.546/2011 - clique aqui) , que extingue os fumódromos no país. Ao ser indagado pelo entrevistador se tal medida não acabaria com o direito dos fumantes de fumar, o entrevistado respondeu que os fumantes não tinham direito de fumar, o que os fumantes tinham era direito à saúde.

Esta afirmativa gerou uma série de reflexões sobre os caminhos - extremamente perigosos - que está tomando essa discussão, que leva, por sua vez, a um questionamento que se faz cada vez mais importante: afinal o que existe é um direito ou um dever à saúde?

Cabível a questão acima, porque, tal como enunciada a resposta em comento, a saúde passa a ser não mais um direito que todos temos (e não só os fumantes), nos termos da Constituição da República (clique aqui), e sim um dever. Para o entrevistado talvez esta distinção não pareça importante, até em face de sua formação, mas a comunidade de operadores do Direito não pode se furtar em realizar tal análise, eis que o que está em jogo é uma série de direitos fundamentais, como o da liberdade e o da dignidade humana. Não temos o direito de omitir-nos frente a questões de tamanha relevância.

E aqui, quero deixar claro que não é o cigarro o objeto desta discussão, mais sim os limites que existem para um indivíduo capaz e informado decidir os destinos de sua vida. Afinal, os hábitos não saudáveis vão muito além do hábito de fumar, como o consumo de alimentos não saudáveis e bebidas alcoólicas, o uso de motocicletas, prática de esportes radicais, prática de lutas de contato, sedentarismo, acesso excessivo à internet, dedicação profissional excessiva (workaholism), vida sexual desregrada... Enfim, uma série de hábitos e práticas que trazem prazer a quem os pratica, embora sejam considerados nocivos à saúde. Afinal, ter um estilo de vida não saudável é (ou deve ser) ilegal?

Uma parcela dos profissionais que trabalham na área de saúde pública e vigilância sanitária aparentemente não possui dúvidas em responder de forma positiva a este questionamento. Afinal, tais áreas se desenvolveram, muitas vezes, mediante práticas impostas contra a vontade dos administrados, e muitos de seus operadores não estão acostumados com a prática democrática em seu exercício profissional. Em 1879, o cirurgião do exército norte-americano John S. Billings manifestou sua opinião sobre o tema; "Todos admitem que o Estado deve realizar uma proteção especial daqueles que são incapazes de julgar seus melhores interesses, ou de tomarem conta de si mesmos, como os loucos, os débeis ou criança; e nós vimos que em matéria sanitária o público em geral é incapaz desta forma." 1

Comparando esta opinião com aquela que despertou as presentes reflexões, vemos que esta ideologia, longe de estar ultrapassada, parece permear cada vez mais setores da saúde pública, e agora espraia-se para o setor regulatório, ameaçando direitos que nos são muito caros, mas que talvez só atentemos a tanto quando os perdermos.

Nesta discussão uma questão técnica - a saúde - está embricada de forma intensa e indevida com uma questão moral (ou moralista) do dever do homem ser virtuoso. Mais ainda, deságua em uma questão política, de permitir que um "Comitê de Sábios", tal como proposto na República de Platão, possa decidir assuntos íntimos que, por não afetarem outras pessoas, essencialmente só dizem respeito a cada indivíduo.

Até que ponto a lei deve forçar o homem a ser virtuoso em assuntos que não afetem a coletividade? Aliás, a virtude imposta tem algum valor moral? As respostas destas perguntas são complexas demais para serem inteiramente respondidas neste breve artigo, mas, até intuitivamente, podemos perceber que uma posição extremada de supressão da liberdade é equivocada. O importante é compreender que a discussão que se trava não é uma discussão técnica sobre o que são práticas saudáveis, mais sim sobre os limites de uma política moralista.

E se os hábitos que esta política defende são os prudentes e saudáveis, o mesmo não pode ser dito da moral que atua nos bastidores dela, autoritária ao ponto da insalubridade. Neste sentido, H.L. Menken, em 1922, já afirmava que "Higiene é a corrupção da saúde pela moralidade. É impossível encontrar um sanitarista que não macule sua teoria do saudável com a teoria da virtude. Toda a arte da Higiene, de fato, se resolve em uma exaltação ética. Isto a traz, no fim, a um conflito com a medicina propriamente dita. O verdadeiro objetivo da medicina não é fazer o homem virtuoso; é salvaguardá-lo e resgatá-lo das consequências de seus vícios. O médico não prega a penitência, ele oferece a absolvição." 2

Então o que temos que verificar é se esta posição ideológica, do dever à saúde proibir um estilo de vida não saudável, é radical, e, portanto, indesejável ou não e, acima de tudo, que moral ela professa. Quanto ao primeiro ponto, parece-me evidente que a posição é sim radical, bem como antidemocrática e tirânica. Pois democracia não é sempre fazer a vontade da maioria, mas também preservar as minorias, especialmente poupando-as da invasão do coração de seus direitos fundamentais, como os de autodeterminação e dignidade.

E quanto ao segundo ponto, a posição moral de tal ideologia é utilitarista, ultrapassada e fria. Segue uma lógica desapaixonada, capaz de reduzir o ato de viver a meros números. Qual a utilidade em permitir hábitos não saudáveis, se estes, a longo prazo, trazem consequências negativas? Por que manter lícitos hábitos que a maioria da população desgosta? Para que respeitar a vontade de minorias? A moral que imbui esta ideologia simplesmente não vê qualquer sentido na manutenção da licitude de tais hábitos, o que apenas demonstra a enormidade de sua cegueira.

Poderia contestar-se a posição sob exame tomando-se por base uma corrente filosófica denominada de libertarianismo que prega que um homem deve pertencer a si mesmo, e não a outrem, e especialmente não ao Estado. Embora tal corrente também não deva ser acolhida em seus extremos, aqui poderia ser aplicada perfeitamente. Contanto que não prejudique os demais membros da sociedade, deve o indivíduo poder decidir seu destino. Pois se o Estado pudesse determinar o que o indivíduo pode ou não fazer com seu próprio corpo, o indivíduo então não pertenceria a si mesmo, mas ao Estado. E se o Estado o possuísse, ele não é mais que um escravo, e o Estado seu dono, o que é uma posição moral inaceitável.

Mas, em verdade, o melhor campo moral para situar-se é dentro da filosofia kantiana, e, indubitavelmente, a ideologia em tela é totalmente censurável sob tal prisma, por violar o imperativo categórico de não objetificação das pessoas. Pois se o Estado ignora as preferências do indivíduo, e o direito das pessoas de buscar sua felicidade como a elas pareça próprio (desde que sem prejudicar terceiros), impondo as preferências que uma maioria entende corretas, nega a condição dos indivíduos de seres racionais e, assim, sua dignidade. E não é isto que defendia explicitamente Billings? Será que pode sinceramente negar-se que seja precisamente esta objetificação que está no fulcro das proibições aventadas? A colidência da ideologia que suporta tais proibições com o imperativo categórico de Kant é evidente!

E por fim desembocamos na questão política. Que sociedade é esta em que um "Comitê de Sábios" pode determinar o que me tornará mais feliz? Uma objeção prima facie deve imediatamente ser levantada: um regime que invada de tal forma a intimidade das pessoas é totalitário. Não nos iludamos, o caminho para a privação das liberdades é dado em pequenos passos, que aos poucos aniquilam as liberdades individuais. Se quisermos saber se as proibições ora criticadas nos levam por esta perigosa senda ou não, basta observarmos um slogan do governo nazista:

"Teu Corpo pertence à nação!

Teu corpo pertence ao Führer!

Você tem a obrigação de ser saudável!

Alimento não é uma coisa privada!"3

Será que é nesse destino que queremos chegar? A "estatização" do corpo dos indivíduos é característica abominável dos regimes totalitários, e se este caminho não nos interessa, por que se aventurar nas suas bordas? Tal conduta é irresponsável do ponto político, muito mais do que os hábitos que se discute proibir, pois há os que pretendam trilhar este caminho até o fim.

E como se a tirania desta posição não tirasse toda sua legitimidade, ouso dizer que substancialmente a mesma também não é correta. Por que contar a vida em dias, meses ou anos é necessariamente melhor do que em relacionamentos, dores e alegrias? Ao reduzir tudo a uma escala sem alma acaba-se paradoxalmente sustentando que mil anos no inferno são melhores que um dia no paraíso.

A lógica que alimenta a posição combatida é exatamente a mesma que em breve exigirá que todos adotem uma dieta de privação calórica (ao redor de 1.200 por dia) por aumentar em mais de 20 anos a expectativa de vida média da população, a que proibirá o consumo de sal, açúcar e gordura, pelas doenças associadas a mesma, tornará ilegal o uso de motocicletas e os esportes radicais pelo perigo de danos causados ao corpo, e que irá, lentamente, eliminando um a um os prazeres da vida, para estendê-la, matando-nos lentamente para que possamos viver mais. Só que isto não é viver, isto é apenas durar.

Havia chamado aí em cima esta lógica de desapaixonada, mas agora me corrijo. Ela é apaixonada sim, em um caso perdido e profundo de narcisismo. Esta lógica caiu de paixão por si mesmo, e ai do homem que a adotar! Como disse Haldane, "O homem prudente tem pouco a temer do homem cuja razão é serva de suas paixões, mas deve ter cuidado com aquele cuja razão se tornou a maior mais terrível de suas paixões. Estes são os destruidores de impérios desgastados e civilizações, céticos, desintegradores, deicidas". 4

Há os que acham que a grande pergunta desta vida deve ser respondida com números, e não com algo mais profundo. Eu acho esta posição dantesca, mas a respeito. E só exijo o mesmo respeito de volta. Por mim, eles podem levar os séculos que quiserem passeando com Virgílio, desde que me deixem passar o dia em paz com Beatriz.

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Referências

1 Apud Sullum, Jacob, in For Your Own Good: The Anti-Smoking Crusade and the Tyranny of Public Health, 1st paparback edition. Simon & Schuster, 1999. p. 273, em tradução livre.

2 Menken, H.L., in Prejudices, The Complete Series, Library of America, 2010, em tradução livre.

3 Conforme Rosenfield, Denis Lerrer, in Liberdade de escolha. Rio de Janeiro. Casa da Palavra. 2009, p. 67

4 HALDANE, John Burdon Sanderson, in Daedalus, Or, Science and the Future, E. P Dutton and & Company, Boston, 1924 (em tradução livre)

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* Mario André dos Santos Chaves de Oliveira é sócio do escritório Mario Oscar Oliveira & Advogados Associados

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