Affectio societatis ainda hoje?
Com exemplos do uso da expressão affectio societatis, o advogado afirma que o caráter equívoco dela traz mais problemas do que soluções, principalmente por conta da utilização pouco criteriosa.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Atualizado em 14 de dezembro de 2011 15:05
Sérgio Seleme
Affectio societatis ainda hoje?
1. Antes do pioneiro estudo dos Profs. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes FRANÇA e Marcelo Vieira VON ADAMEK ("Affectio societatis": um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de "fim social". In: Temas de direito societário, falimentar e teoria da empresa. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 27/68), era praticamente hegemônica a aceitação, na doutrina brasileira, da idéia de affectio societatis, ainda que com diversas conotações ou com variados efeitos. Em verdade, tanto na literatura quanto na jurisprudência, sempre se utilizou, de modo assistemático e vago, a expressão latina, dando-se-lhe contornos de critério para muitos problemas societários. Entre os mais relevantes, para caracterizar a affectio societatis como elemento constitutivo do contrato de sociedade, inclusive distinguindo-o de outros contratos, como forma de aquilatar os deveres dos sócios e como forma de encerramento da unidade social, nas dissoluções e exclusões de sócios.
2. Por outro lado, em Direito Comparado, a affectio societatis, quando não totalmente alijada - como ocorre principalmente nos países germânicos - tem uma posição lateral nos estudos de Direito societário - o que ocorre na Itália, em Portugal e na Espanha, por exemplo. Apenas no Direito francês é que, por força jurisprudencial, o conceito goza ainda de algum prestígio, apesar de apontadas sempre as suas deficiências e a sua falta de objetividade.
3. Como se pode perceber do percuciente estudo acima referido, tanto a origem quanto o conteúdo do conceito de affectio societatis podem ser profundamente criticados. Na verdade, bem compreendida a idéia-motriz do conceito, em nada ela acaba por se diferenciar do consentimento, que é elemento natural a qualquer contrato. No Direito societário, inclusive, a formação e a expressão da vontade no contrato de sociedade já estão superiormente explicados por outras teorias, como a do contrato plurilateral, sendo totalmente dispensável a idéia de uma espécie de consentimento especial, consubstanciado na affectio societatis.
O conceito, portanto, pelo seu caráter equívoco, traz mais problemas do que soluções, principalmente na sua utilização pouco criteriosa. Veja-se como exemplo os seguintes julgados:
"(...) II. Conquanto referida, na fundamentação da sentença, reportagem publicada em revista semanal de grande circulação, cujo teor não consta dos autos, não padece de nulidade a decisão, por ofensa ao art. 131 do Código de Ritos, se a mesma servi-se daquela apenas para corroborar a prova restante, colhida no curso da ação, onde ficou demonstrado desaparecimento da 'affectio societatis', pela pública e irremediável desavença entre os sócios da empresa, a não permitir a permanência da minoria afastada. (...)" (STJ - REsp 302.271-RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 06/11/2001, transcrição de tópico da ementa, negritos ausentes do original). Comentário: Apesar de o v. acórdão não tratar especificamente da matéria societária, dá idéia da vagueza com que se considera o instituto da affectio societatis, ou seja, como sinônimo de desavença entre os sócios.
"(...) Em casos que tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não me parece possa essa circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, 'b', da Lei nº 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos. (...)" (STJ - EmbDiv em REsp 111.294-PR, 2ª Seção, Rel. Min. Castro Filho, julgado em 28/06/2006, transcrição de trecho do acórdão, negritos ausentes no original). Comentário: Tratava-se de dissolução parcial de sociedade anônima e a affectio societatis é identificada vagamente com certos deveres sociais e com os elementos constitutivos da companhia. O precedente criou foi depois citado em vários julgados, como se pode verificar do AgReg no Recurso Especial 1.079.763-SP, julgado pela C. 4ª Turma do STJ em 25/08/2010.
É perceptível que há outras e boas razões para fundamentar a possibilidade de exclusão de sócio e de dissolução de sociedade anônima fechada, quando há descumprimento de deveres sociais ou inviabilidade de cumprimento de determinadas finalidades, do que o apelo ao conceito fluído e inconsistente de affectio societatis.
4. É preciso referir, por outro lado, recente decisão do STJ, que confirmou julgamento do TJ/PR, negando a suficiência da quebra de affectio societatis para a exclusão de sócio de sociedade limitada. O aresto do E. Tribunal Superior faz expressa referência ao texto que deu base a esta breve notícia, acima referido. Diz a ementa:
CIVIL E COMERCIAL. RECURSO ESPECIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. EXCLUSÃO DE SÓCIO. QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS. INSUFICIÊNCIA.
(...) 5. Para exclusão judicial de sócio, não basta a alegação de quebra da affectio societatis, mas a demonstração de justa causa, ou seja, dos motivos que ocasionaram essa quebra.
STJ -REsp 1.129.222-PR, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/06/2011.
Independentemente da possível discussão teórica sobre a affectio societatis ter sua quebra baseada em eventual "justa causa", o v. acórdão merece destaque por questionar a importância deste elemento para a solução de graves problemas societários, como a exclusão de sócio.
5. É inegável, por outro lado, que há um elemento que compõe as sociedades, representativo do liame entre os sócios, que não se reduz ao elemento volitivo ou voluntário de associar-se e permanecer associado. Há algo além, nas sociedades, que tem relevância jurídica e que precisa ser esclarecido para a exata compreensão do funcionamento social. Na Suíça, é tratado como Gemeinsamer Zweck (em tradução literal, "fim comum"). No texto acima citado, os autores o denominam "fim social", procurando superar o obscurantismo e a falta de objetividade da idéia de affectio societatis. Mas isso já é tema para outra conversa!
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* Sérgio Seleme é advogado da banca Seleme, Lara & Coelho Advogados Associados e professor de Direito Civil da PUC/PR
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