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Matar irmão tetraplégico é homicídio piedoso?

O autor discute as implicações penais do crime de homicídio no caso de um homem que matou seu irmão tetraplégico após este pedir pela própria morte.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Atualizado em 1 de novembro de 2011 12:28

Eudes Quintino de Oliveira Júnior

Matar irmão tetraplégico é homicídio piedoso?

O jornal Folha de São Paulo, edição de 28/10/2011, publicou uma interessante notícia que desperta atenção não só com relação ao fato relatado, como também pelo desdobramento jurídico-penal. O fato ocorreu na cidade de Rio Claro/SP. Dois irmãos, um deles tetraplégico em razão de uma disputa de racha com o outro, a quem imputava a culpa, cogitaram colocar fim à vida do portador da deficiência. Para tanto, após a idealização conjunta, planejada para atender ao pedido do irmão acidentado, forjaram um roubo seguido de morte. O irmão executor simulou o roubo e matou com dois tiros o deficiente. Assim a notícia chegou até a autoridade policial. Posteriormente, ocorreu a confissão do irmão responsável pela morte, oportunidade em que justificou que assim agiu levado pela compaixão.

"Nem me matar eu consigo", bradava o irmão vítima da tetraplegia, clamando pela própria morte com insistentes pedidos ao irmão para matá-lo, até mesmo como obrigação moral, pois o acidente ocorreu por culpa exclusiva dele.

A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com a história. Basta ver que, a título de exemplo, até recentemente, o casamento, que era indissolúvel, passou a permitir o desquite e, logo em seguida, o divórcio. Esse, para sua concretização, exigia dois anos de separação de fato ou um ano judicialmente e, agora, pelo novo regramento, já é conferido sem qualquer estágio temporal. Até poderá futuramente ser pleiteado pela internet. A mesma evolução se deu com relação à homologação da união estável nas relações homoafetivas. Nenhum conceito é estático. Obrigatoriamente, segue o dinamismo necessário para o melhor aperfeiçoamento da vida humana. A própria Constituição Federal, editada há 23 anos, coleciona mais de sessenta Emendas, todas elas resultantes de adequações legislativas favorecendo a convivência social e as necessidades dos cidadãos. Já advertia Maximiliano: "As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social. Como, pois, recusar a interpretá-lo no sentido das concepções sociais que tendem a generalizar-se e a impor-se?"1.

Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras legais e consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer também, em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.

No caso sub studio seria interessante, mesmo que superficialmente, ingressar na teoria da autonomia da vontade da pessoa e perquirir a respeito do consentimento do ofendido. A pessoa, de forma consciente, pode renunciar a um bem juridicamente tutelado, considerado como irradiação da personalidade, a exemplo da vida humana?

O tema é incandescente, mesclado de aspectos culturais, religiosos, legais, morais, éticos e sociais, trazendo cada segmento suas posições inquebrantáveis. Na sua imensidão, permite avançar e atingir o fim da vida humana, com relevo às doenças prolongadas e irreversíveis, que exigem cuidados intensivos em razão do seu estado terminal. Nesta fase, será que o homem, que durante toda sua vida recebeu diversas modalidades de tutela, pode divorciar-se do Estado e decidir de acordo com sua autonomia, fazendo opção pela morte, quando a regra é a vida? Se a autonomia da vontade integra o princípio da dignidade humana, não seria correto o paciente, para aliviar sua dor e sofrimento e evitar o descontrole sobre sua vida e funções biológicas, optasse por uma morte antecipada e suave? Caminharia a humanidade para a utopia descrita por Aldous Huxley, no Admirável Mundo Novo, quando introduziu as clínicas para moribundos?

Daí que, nosso Código Penal, elaborado em 1940, erigiu à categoria de crime de homicídio a conduta daquele que, agindo com sentimentos de piedade e compaixão, pratique ato terminativo que venha livrar a pessoa da dor e sofrimento, mesmo com o consentimento do ofendido. A intenção pode até ser interpretada como ato racional, necessário, porém não exclui o caráter ilícito do crime.

A conduta aproxima-se um pouco do homicídio praticado pela eutanásia, ou suicídio assistido, onde se leva em consideração a moléstia incurável, sem qualquer chance de reversibilidade do paciente. A diferença do caso relatado reside no fato de ser a vítima tetraplégica e não doente terminal. Assim, mesmo com as limitações impostas pela enfermidade, prevalece o direito maior, que é a vida e com amparo constitucional. Qualquer manifestação humana no sentido de abreviar o ciclo vital é considerada criminosa.

"O Código Penal Brasileiro, esclarecem MIRABETE e FABRINI, não reconhece a imputabilidade do homicídio eutanásico, haja ou não o consentimento do ofendido, mas, em consideração ao motivo, de relevante valor moral, permite a minoração da pena".2 Quer dizer, qualquer pessoa que agir imbuída de intenção piedosa e arrebatar um bem considerado indisponível, mesmo com o consentimento de seu titular, age contra legem e comete o crime de homicídio que pode até levar o rótulo de privilegiado, em razão do relevante valor social ou moral.

Pelo relato da notícia e pela intenção que norteou a conduta do irmão executor do ato, a melhor interpretação a ser dada é no sentido de que o roubo simulado apresenta-se como delito-meio diluído no crime de homicídio. Assim, decisão da causa fica por conta do Tribunal do Júri, seu juiz natural, que irá decidir a respeito do consentimento do ofendido em sua própria morte.

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1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 19ªed., 2006, p. 131.

2 Mirabete, Júlio Fabrini; Mirabete Renato N. Fabrini. Manual de direito penal, vol. 2., 26. 2d. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2009, p. 32.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, advogado e reitor da Unorp





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