Se eu disser o que escrevi sobre a China não é verdade, estarei dizendo a verdade?
A partir de uma bibliografia específica e retomando episódios históricos, o advogado analisa a presença da China no cenário geopolítico atual.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Atualizado em 13 de outubro de 2011 14:09
Jayme Vita Roso
Se eu disser o que escrevi sobre a China não é verdade, estarei dizendo a verdade?
"Se os sábios não agissem como é conveniente, o povo não teria modelo sobre o qual se pautar" - Provérbio chinês
I. Antecedentes
1- Em 1978 a Editora J. Lanzmann & Seghers (Paris) publicou a obra "A Disputa sobre o Sal e sobre o Ferro". O fato narrado ocorreu no ano 81 a.C. na China. Trata-se de um livro que foi escrito nesse ano e que compôs uma série de reuniões entre o Soberano e os cidadãos da época, considerado como dos esplendores da dinastia Han. O imperador era conhecido como Wu. O país já contava na época com 50 milhões de habitantes.
A finalidade da obra, resumida nos diálogos e diários, era um balanço do governo desse imperador, unindo, pelo diálogo, uma consciência nítida das relações no seio daquela sociedade, o econômico, o social e o político. Sem dúvida, sinal de uma extraordinária precocidade do pensamento chinês no que se refere ao governo dos homens e admiração das coisas. A obra impressa tem 271 páginas e, antecipada por um prefácio escrito por Georges Walters de 34 páginas, mostra o que era o país nesta época, com território muito inferior ao atual.
Toda ela foi resultado das peças e artefatos recolhidos por arqueólogos franceses e chineses nas décadas de 50 e 60, que reproduziam os diálogos entre o Imperador Wu e seus súditos.
2- Quem teve a felicidade de ter lido este livro, hoje em dia, não tem a menor dúvida que os êxitos conseguidos pelo país não vieram por acaso. Basta dizer que nele se discutiu que a moral muda "como muda a moeda"; a importância de um balanço das contas públicas equilibrado; o mau médico; o bom economista; a quantidade de impostos; as carências da população; os ministros em intimidades suspeitas e os conselheiros virtuosos; a indispensabilidade de uma gestão rigorosa das coisas públicas; e de um conselho de sábios; o oceano e os pequenos riachos da corrupção; o realismo e a paz; a necessidade de um código penal adequado, para que exista lei inexorável, insinuando que a lei não corrige o homem; a importante consciência coletiva; e, como Confúcio os inspirou, "como Confúcio foi Confúcio". Repetindo: a dinastia Han foi do ano 206 a.C. a 208 d.C.
O título da obra tenta equilibrar a importância do sal e do ferro como matérias primas (eram estatizadas).
3- Após Mao Tsé-tung, em 1949, assumir o governo da China, imediatamente, começaram transformações profundas no país e novamente os franceses se destacaram entre os que melhor interpretaram a dialética e o projeto revolucionário, tendo este em vista perpetuá-lo para transformar o homem e a sociedade.
4- Partindo da famosa frase de Napoleão I pronunciada, ao que consta, nos alvores do século XIX, que se tornou célebre "Quando a China acordar o mundo vai tremer", o intelectual e político francês Alain Peyrefitte escreveu um alentado livro com essa mesma expressão como título e o publicou no início de 1974 (Editora Fayard). Talentoso, conhecedor profundo de diversos países comunistas e do próprio sistema, foi deputado e ministro do governo de De Gaulle aos 36 anos de idade. Líder inconteste, iniciou diversas reformas administrativas no seu país e perfeitamente capaz de abordar as grandes transformações que a sociedade chinesa passara 15 anos antes da ascensão ao poder de Mao.
Entendeu o autor a simbiose Mao e Confúcio e que resultou em duas geniais interpretações: a primeira é que o pensamento de Mao buscou transformar o homem, a natureza e a sociedade, sendo um pensamento revolucionário; a segunda, confrontando a Revolução Soviética com a sua, concluiu que ela se efetuou uma única vez por um grande movimento e depois parou. A Revolução Chinesa conquistou o poder por degraus sem nunca produzir uma completa ruptura com o passado, pois o que conta é que o nível de consciência política se elevou sem cessar.
Essa revolução, trabalhada com esmero, produziu nos cidadãos a consciência de que o essencial é bem pensar como também é necessário, quando se produz um bem qualquer da mesma forma como se cultiva o arroz e se cuida dos doentes. Peyrefitte sugeriu que Mao foi cultuado durante sua vida como um sábio, um herói e um santo.
5- Passados alguns anos, depois que esta obra atingiu cerca de 50 edições, em 1996, Peyrefitte, já na era de Deng Xiaoping, escreve "A China Acordou" (Le Grand Livre du Mois). Sem nenhum artifício, realisticamente, apontou a modernização e a ocidentalização da China e antecipou a sua projeção neste século como a primeira potência mundial. Em 404 páginas, revisou a história do país desde 1973; mostrou a erupção daquilo que chamou de "moscas provocativas"; a importância do reconhecimento de Deng e a metamorfose que o país começou a passar a partir do ano de 1996. Como a obra anterior, são ricos seus pensamentos, com debates apaixonados e úteis. Tem qualidade, síntese e observação impecável. Tanto isso é certo, que ficou no subconsciente coletivo intelectual francês, que os seus trabalhos foram comentados e apreciados pela intelligentsia do país, merecendo elogios unânimes pelo rigor e profundidade deles. Chegou a ser equiparado como um moderno Tocqueville.
II. O imperialismo econômico da China: sua visão hegemônica
1- Sempre tendo em conta a secular experiência francesa, pesquisamos dentre os seus autores mais significativos, as obras que publicaram em passado recente e as que tem vindo à luz em nosso dias.
Não apartamos de analisar opiniões de respeitáveis sinólogos sobre todos assuntos pertinentes à China contemporânea. Dentre elas, damos ênfase às que já se tornaram repetitivas. São: constitui a China atual o fim do Eldorado para as empresas ocidentais? O conhecido perigo amarelo passa da fascinação algébrica a uma desconfiança razoável? A China, primeira potência mundial, é para o futuro próximo? São os chineses arrogantes frente aos ocidentais pelo que sucedeu no passado? É o sistema chinês muito hierarquizado, incapaz de absorver as inovações da modernidade? Contestada a política ambiental chinesa, poderia o país integrar-se ao desenvolvimento sustentável no jogo internacional cooperativo? Foi a China beneficiada por condições vantajosas na OMC?
Ponderadas essas questões, objetivas e subjetivas, mas pragmáticas, cheguei à conclusão que a China, está adotando o que a natureza ensina pelo correr dos séculos: como liquidar os inimigos, através da estratégia da teia de aranha.
Encontrei essa resposta numa obra muita bem escrita por dois economistas franceses Antoine Brunet e Jean-Paul Guichard. Publicaram o livro "La Visée Hégémonique de la Chine" (A Visão Hegemônica da China). Livro muito bem acolhido pelo público interessado em macroeconomia mundial e geopolítica. É inquietante.
Evitando o natural fastídio de dissertações em lugares impróprios, por concordar, seja porque me pareceram mais fundamentadas teoricamente, seja porque a prática tem mostrado que a realidade se tornou uma verdade axiomática, listo algumas conclusões que servem de meditação para os interessados:
a) a arrogância chinesa, demonstrada nos contatos diplomáticos ou comerciais internacionais tem se mostrado flagrante, sobretudo porque é sustentada por fortes acentos nacionalistas. O seu modelo jocosamente chamado "iliberal", lastreado numa ditadura sustentada por um capitalismo selvagem, tendo seduzido outros países. Até os pândegos e irresponsáveis tem procurado amparar-se num ficto "consenso de Pequim". Sem ser otimista, não acreditamos que a China se tornou muito grande para cair (parafraseando o filme recentemente exibido sobre os bancos americanos "To Big to Fail"). É inquestionável que a ditadura de um partido único provoca e perturba qualquer ocidental imbuído de ideias do conhecido "Estado de Direito".
b) A mencionada obra de Brunet e Guichard cuida do capitalismo totalitário para definir o sistema chinês como sustentado por um grande poder técnico-militar e que vem, cinicamente, canibalizando as economias ocidentais. A arma utilizada, segundo estes autores, é o "mercantilismo", repetindo a estratégia que foi adotada no passado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos para gerar excedentes comerciais, mas que serve, para Pequim, em nossos dias, assegurar para si a condução do comércio internacional.
Os autores mostram que o sistema totalitário, porque gerido e orquestrado pelo Partido Comunista local, leva em conta um nacionalismo cada mais agressivo e inquietante. O outro lado da face é que a submissão das empresas estrangeiras e a capacidade de Pequim de mobilizar "inocentes úteis", famigerados lobbys que envolvem experts, economistas, jornalistas e advogados. Tem se mostrado bastante eficazes e eficientes. No Brasil, deve ser a mesma grande preocupação, porque apoiados por vários lobistas e pareceres jurídicos questionáveis, a compra de terras em localidades estratégicas é preocupante aos verdadeiros patriotas.
Também Brunet e Guichard culpam a China pela crise financeira de 2008. Mas, vamos decodificar essa assertiva: enquanto nos Estados Unidos se criavam ficções jurídicas apoiadas em modelos financeiros matemáticos bem engendrados e suportados por uma publicidade criminosa, conscientes dessa situação de fato, os chineses continuavam comprando os bônus do tesouro americano. Esse bônus de longo prazo, apenas com os modestos juros, foram o suficiente para manter o aperto no pescoço de todos os países ocidentais, em especial dos americanos. E não se pode esquecer que o protecionismo que eles gozam na OMC, deve ter-lhes custado muito caro em suborno para ser outorgado.
2- Com a regra cínica das finanças internacionais bem compreendida, interpretada e aplicada, os chineses sabem que não são obrigados a emprestar para os países ocidentais, comprando os seus bônus do tesouro. São tão inteligentes e argutos que já absorveram que é melhor saber e praticar do que não fazer. Explico. Pergunto: "quão soberano é o risco de crédito soberano?" Eles já tem a resposta há muito tempo, por isso suas reservas ultrapassam 4 trilhões de dólares.
E, minha conclusão, com os juros ínfimos que são pagos, mas compensados com os volumes extraordinários, partiram para a conquista política e territorial da África, já completada e começaram a estender a teia na Europa. Com o corrupto governo grego, para adquirir seus bônus, obtiveram em troca a cessão do porto do Pireu; com a França, a base da Ilha de Châteaurx. E assim caminham tranquilamente, engolindo países e continentes, mantendo suas reservas com os parcos rendimentos dos títulos americanos.
3-Não é necessário mostrar ou tentar demonstrar que esses dois ingressos no continente europeu terão reflexos políticos incontáveis. O preço que se vai pagar ainda está para ser desvelado. Será que as palavras proféticas de Napoleão, que teriam sido proferidas em 1817, abalaram algumas consciências, porque, anestesiados, os países e as finanças ocidentais com a estulta condução política americana, vão continuar ajudando a China a ser uma ficção de mercado livre para arrombar as portas já fragilizadas do comércio mundial sem necessidade de desvalorizar a sua moeda e, engrossando, a sua nova política interna de obrigar que os casais tenham um único filho, pois qualquer outro gerado será propriedade do Estado? O segundo filho será considerado ilegal e levado para orfanatos estatais onde sofrerão ou se "beneficiarão" não só das regras existentes do vetusto Caderno de Mao (1968) como também, serão eles cidadãos párias assim como os coreanos foram no Japão no século passado. Onde estão os direitos humanos na China? Por que o cinismo de ignorar o que ocorre com eles na China?
Parece que os ocidentais construíram para si seu próprio Titanic. Como será possível e para onde ir, quem for possível abandonar o navio no seu naufrágio?
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*Jayme Vita Roso é advogado e fundador do site Auditoria Jurídica
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