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Transporte coletivo e reparação de danos extrapatrimoniais

Renata Júnia Pereira Carvalho

O mundo do transporte público é a concretização da complexidade urbana, na qual eventos cotidianos aborrecem dentro de um padrão de razoabilidade.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Atualizado em 22 de setembro de 2011 12:06

Renata Júnia Pereira Carvalho

Transporte coletivo e reparação de danos extrapatrimoniais

Estimulados pelo modismo do "dano moral", usuários do transporte público têm cada vez mais lotado as salas de atermação dos Juizados Especiais espalhados pelo país.

A recente popularização no Brasil da lesão na esfera psíquica tem levado a que milhões de brasileiros busquem ressarcimento por prejuízos de cunho extrapatrimonial, fomentados pela facilidade de acesso ao Judiciário conferida pela lei 9.099/95 (clique aqui), embasados no artigo 37, § 6º da Constituição da República (clique aqui) e em legislações infraconstitucionais, em especial o Código de Defesa do Consumidor (clique aqui) e disposições previstas nos artigos 730 a 756 do Código Civil (clique aqui).

Nesse caminho, qualquer desconforto sofrido por passageiros termina em litígio judicial e com um só pedido: indenização por "danos morais".

De fato, a responsabilidade civil de natureza objetiva elencada no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, é imputada às empresas de transporte, concessionárias do serviço público.

Isso quer dizer que todos os danos causados ao usuário do serviço público de transportes devem ser indenizados, independentemente de seu caráter culposo ou doloso, lícito ou ilícito, sendo bastante a demonstração do nexo causal entre a conduta do prestador do serviço e o dano causado ao passageiro, além, por óbvio, da prova da lesão.

O artigo 734 do Código Civil dispõe que o transportador responde pelos danos causados às pessoas e bagagens transportadas, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

Do Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, emana que "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços".

Nota-se, pois, que, de acordo com os dispositivos supramencionados, faz-se necessária, além da conduta, o DANO, para que se possa pretender reparação de prejuízos sofridos.

Não se pode desconsiderar a menção à palavra "dano" ali presentes, de forma a consagrar que a responsabilidade civil condiciona-se à comprovação de que a conduta praticada ocasionou uma lesão ao transportado.

Todavia, o que corriqueiramente se percebe é um dilúvio de ações manejadas por usuários do serviço público, que por algum aborrecimento ou incidente vivenciado, buscam a tutela do Poder Judiciário em busca de enriquecimento ou mesmo ingenuamente, influenciados pela ideia corrente de que o Judiciário é panaceia para as mazelas cotidianas, como se a vida não fosse feita de acasos e pequenos dissabores.

Há que se levar em consideração que vivemos em uma sociedade complexa e multifacetada, e precisamos aprender a tolerar, posto que somos todos atores com desejos e perspectivas diferentes.

O mundo do transporte público é a concretização da complexidade urbana e interurbana. Pessoas, carros, trens e aviões indo e vindo no trânsito das pequenas e das grandes cidades, nas rodovias e aerovias deste país e do mundo propiciam diariamente milhares de pequenos eventos cotidianos, que podem ir de um simples encontro casual a acontecimentos que nos aborrecem dentro de um padrão de razoabilidade, implícitos no próprio contexto de prestação do serviço público de transporte de passageiros.

Quando o legislador pátrio inseriu no ordenamento a possibilidade de reparação pecuniária por prejuízos na esfera psicológica, o fez pretendendo dar instrumentos ao cidadão de compensar o sofrimento psíquico efetivamente experimentado, com uma proporcional contraprestação em dinheiro.

Além disso, a intenção do constituinte originário ao inserir na Carta da República a faculdade de demandar pelo dano moral suportado, por óbvio, objetivou criar condições ao indivíduo de diligência média, e não dar armas ao cidadão artificioso ou extremamente sensível de se locupletar às expensas de outrem ou de mover a caríssima máquina estatal em busca de aventuras desmotivadas.

Após alguns anos turbulentos, o Judiciário tem começado a assentar seu entendimento, e há um início de consenso na aplicação, com propriedade, da legislação vigente. Os juízes têm considerado que não são quaisquer acontecimentos do cotidiano que autorizam a responsabilização de fornecedores de serviços públicos, entendendo cada vez mais pela improcedência de ações ajuizadas por usuários do transporte público em virtude da própria inexistência do dano, elemento sem o qual não pode haver reparação, ainda que tenha existido alguma conduta antijurídica por parte da empresa concessionária do serviço.

Fato é que meros aborrecimentos que, obviamente, não ultrapassam os fatos habituais e triviais da vida, não dão ensejo à indenização moral. O dissabor cotidiano é inerente à condição humana e não deveria sequer ser remetido à apreciação do poder Judiciário. A juridicização excessiva é fenômeno contemporâneo que deve ser combatido, e para tal é preciso que os próprios tribunais se protejam - e assim também protejam a sociedade - julgando como dano moral a dor, humilhação, o vexame ou o sofrimento que, fugindo à normalidade, intervenha densamente no comportamento psicológico do lesado, causando-lhe aflições, angústia e intranquilidade.

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*Renata Júnia Pereira Carvalho é advogada do escritório Tostes & Coimbra Advogados

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