Os cartórios
O autor destaca que mesmo Portugal, quem nos deixou por legado o sistema cartorário, já possui legislação admitindo fé pública a outras entidades.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Atualizado em 1 de setembro de 2011 11:47
Antonio Pessoa Cardoso
Os cartórios
Portugal implantou no Brasil os Cartórios e as Capitanias Hereditárias; a semelhança de uns com os outros reside no fato de que as duas invenções permaneciam com pais e filhos e a dessemelhança está no desaparecimento das Capitanias desde o século XVIII, enquanto há eternização dos Cartórios que se tornam cada vez mais fortes.
A Constituição Federal autoriza a delegação da atividade cartorial para o setor privado:
"Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público".
A lei 8.935/94 (clique aqui) enumera quais os cartórios extrajudiciais:
"Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os:
I - tabeliãs de notas; II - tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; III - tabeliães de protesto de títulos; IV oficiais de registro de imóveis; V - oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; VI - oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas; VII - oficiais de registro de distribuição".
As atividades notariais e de registro incluem-se entre os serviços públicos, delegados pelo Estado ao particular, mediante concurso público. Seus servidores são dotados de fé pública, ou seja, o que eles atestarem passa a ser verdade, porque vigente a presunção de veracidade de seus atos.
A desvinculação funcional desses servidores com o Poder Judiciário deu-se com a Constituição de 1988, mas há doutrinadores que ainda consideram os notários e registradores como funcionários públicos, vez que concursados e fiscalizados pelo Judiciário, art. 14 lei 8.935/94. A função é privativa de bacharéis em Direito.
As atividades desses servidores destinam-se a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos praticados. Percebe-se então que são órgãos criados para evitar litígios judiciais. Na verdade, a burocracia desses serviços tem criado ambiente para maiores pendengas no Judiciário, além da perda de tempo e dos altos custos exigidos de todos os cidadãos.
No Brasil, nem a lei é capaz de dispensar os carimbos, as autenticações, os reconhecimentos de firmas, as certidões, os Cartórios enfim.
Vejamos a grande utilidade, por exemplo, da certidão negativa de débito perante a Receita!
Obtém-se a certidão de que nada se deve, mas, ao mesmo tempo, insere-se, no documento, a ressalva de eventual dívida a ser apurada. Ou seja, não é, mas é, não deve, mas poderá vir a dever.
Os cartórios extrajudiciais não têm padronização dos documentos que expedem, não possuem critérios precisos para instalação neste ou naquele município, não há troca de informações entre as unidades, pois, em grande parte, falta-lhe o uso da tecnologia disponível; ademais, há grande diversidade de remuneração, vez que enquanto uns percebem milhões por mês, outros recebem o salário mínimo.
Nem se fala nas conquistas promovidas pelo ministro da Desburocratização Hélio Beltrão, quando atuou no ministério que perdurou entre nós entre os anos de 1979 e 1986; muitas facilidades obtidas para desburocratizar a catedral de papéis que somos obrigados a portar terminaram sendo revogadas ou caídas no esquecimento, mesmo porque se avançava muito rapidamente para diminuir a tortura dos cidadãos nos Cartórios e nas repartições públicas e esta não é meta dos burocratas.
Vejamos o que dizem algumas leis e, na prática, o que se faz.
O Código Civil (clique aqui), art. 225, estabelece que reproduções fotográficas, cinematográficas ou "quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão".
Órgãos públicos e privados continuam exigindo fotocópia autenticada de documentos e ainda querem firma reconhecida.
As Constituições, inclusive a atual dispõem que é gratuita a celebração do casamento civil, art. 226, § 1º. Os oficiais, entretanto, encontraram meios para cobrar pelo ato e interpretam a literalidade do texto para concluir que a celebração é realmente gratuita, mas a habilitação, os proclamas, as certidões e os atestados, indispensáveis para a celebração, são pagos. No final, o cidadão pobre termina sendo obrigado a desembolsar para a regularização de situação fática extralegal, criada em função do descumprimento da lei e da liberação de valores para regularização da vida civil. Mas se dispensável a cobrança pela celebração do casamento, exigem o atestado de pobreza; acontece que esse documento é obtido na Delegacia de Polícia e o titular argui a indispensabilidade de diligência para fornecimento; todavia, se dispensável esta, o atestado de pobreza expedido deverá ser reconhecida a firma no Cartório e o ato é pago. Ainda há outra motivação para se cobrar o casamento civil, consistente na alegação de que o serviço prestado é privado por delegação do Poder Público e, portanto, não se pode deixar de cobrar sem que o Estado pague pelo interessado.
O registro civil de nascimento e a certidão de óbito também são documentos que devem ser expedidos pelos Cartórios, gratuitamente, para os "reconhecidamente pobres", art. 5º, LXXVI, a) e b), mas o cidadão enfrentará a mesma dificuldade acima e termina tendo de pagar para obtê-los. Registre-se que, nesse caso, não há dubiedade para interpretação da lei.
Somente após a edição da lei 10.169 (clique aqui), de 29/12/2000, foi possível a obediência ao dispositivo constitucional. O art. 7º dessa lei estabelece que os notários e registradores sujeitem às penas previstas na lei 8.935/94 e o art. 8º determina a forma de compensação aos serventuários pelos atos gratuitos praticados.
A Bahia passa presentemente pelos últimos debates do PL 18.324/09, para a privatização dos Cartórios extrajudiciais, que são os serviços notariais e de registro, conforme denominação constitucional. Registre-se que, desde 1988, tais estabelecimentos deveriam está sob a direção de particulares, mas, passados mais de vinte anos, continuam públicos, prestando maus serviços aos jurisdicionados.
Nesses Cartórios são anotados o nascimento, o casamento, divórcio e morte de todo cidadão; o reconhecimento de validade do diploma do profissional; o registro de imóveis; eventuais restrições nos bens para garantia, através da hipoteca, a abertura de uma empresa e muitos outros atos da vida civil.
A Corregedoria do CNJ publicou, em 12/7/2010 a situação dos 14.964 Cartórios extrajudiciais do Brasil. Anotou que há 5.561 cartórios preenchidos sem concurso público. Chamou a atenção para o fato de que desses Cartórios com titulares interinos alguns recebem mensalmente a importância de R$ 5 milhões; muitos ocupam o cargo por herança. O CNJ descobriu 153 cartórios-fantasmas, que funcionam sem qualquer autorização legal. Ou seja, o cidadão foi lá assumiu e passou a praticar todos os atos como se fosse nomeado para o cargo. Tudo isso acontece, apesar de a Constituição exigir concurso público para preenchimento dos cargos, art. 236, § 3º.
Reportagem do jornal "O Globo" anotou que no ano de 2006 os quase 15 mil Cartórios extrajudiciais arrecadaram a significativa cifra de R$ 4 bilhões. Nessa oportunidade, o CNJ recebeu dados e constatou que a arrecadação média desses Cartórios mensalmente situa-se em quase R$ 30 mil. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro indica que o 9º Ofício do Registro de Imóveis, no centro da cidade, arrecadou a importância de R$ 35,5 milhões no ano de 2005.
Na Bahia são 1.549 Cartórios, sendo que desses 614 não tem titulares.
Há Cartórios altamente lucrativos, Registro de Imóveis e Tabelionatos; outros que não tem como se manter, Registro Civil de Nascimento e Óbito.
Ocorreram algumas tentativas para alterar a sistemática cartorária no Brasil. Em 2001, Proposta de Emenda Constitucional 25, de 22/8/2001, buscou modificar o art. 236 da Constituição, nos seguintes termos:
Art. 236...
"Parágrafo 4º - Ficam excetuados os serviços de registro de imóveis que mediante lei estadual ou da Câmara Legislativa, serão exercidos diretamente pelos Municípios ou pelo Distrito Federal".
A proposição 292, de 17/10/2000, Emenda à Constituição, procurou transferir para os municípios, para as Juntas Comerciais dos Estados e para os órgãos auxiliares da justiça, o registro das pessoas naturais, o registro de imóveis, de pessoas jurídicas, a autenticação de documentos, o reconhecimento de firmas e o protesto de títulos e documentos.
Evidente que nenhuma das proposições obteve êxito, porquanto o lobby cartorário é muito forte e as proposições foram arquivadas.
No direito estrangeiro a matéria recebe tratamento diferenciado. Em outro trabalho, mostramos que em Portugal, de onde herdamos a cultura cartorária, já admite fé pública a inúmeras entidades profissionais, a exemplo das Juntas de Freguesia, dos operadores dos Correios, das Câmaras de Comércio, aptas a autenticar documentos de conformidade com o decreto-lei 28, de 13/03/2000.
Nos Estados Unidos, a secretária de uma agência de automóvel, o funcionário de um banco, os advogados tem o poder do notário e, portanto, aptos a fazer o reconhecimento de firmas, sem custo algum.
A característica fundamental dos Cartórios situa-se no baixo custo operacional da atividade, no risco zero da operação, seguido de altos rendimentos para seus "proprietários".
Serve de retrato para os Cartórios o verso da música de Noel Rosa:
"Espera mais um ano que eu vou ver.
Vou ver o que posso fazer.
Não posso resolver nesse momento,
Pois não achei o teu requerimento."
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*Antonio Pessoa Cardoso é desembargador do TJ/BA
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