Conselhos de contribuintes com distribuição especial
Mais uma vez, e, agora, sub-repeticiamente, tenta o Executivo alterar a competência dos Conselhos de Contribuintes para certas matérias e certos valores.
segunda-feira, 11 de julho de 2005
Atualizado em 8 de julho de 2005 12:37
Conselhos de contribuintes com distribuição especial
Lúcia Valle Figueiredo*
Mais uma vez, e, agora, sub-repeticiamente, tenta o Executivo alterar a competência dos Conselhos de Contribuintes para certas matérias e certos valores.
Digo sub-repeticiamente porque se vale da Medida Provisória 232/2005, de 74 artigos, medida esta que versa sobre o Regime Especial de Tributação para a Plataforma de Exportação de Serviços de Tecnologia da Informação - REPES e o Regime Especial de Aquisição de Bens de Capital para Empresas Exportadoras - RECAP, e insere insidiosamente alteração significativa na competência dos Conselhos de Contribuintes, no artigo 68.
Criticado quando da edição dos nefastos PGFN nº 1.087/2004, de 19 de julho de 2004 e Portaria nº 820, de 25.10.2004, tenta novamente alterar a competência do Conselho de Contribuintes, visando a não enfrentar decisões em processos administrativos fiscais, que possam lhe ser desfavoráveis.
Desta vez, tentando fugir da crítica que, por ato administrativo, subalterno, portanto, à lei, emanara parecer normativo e portaria obrigando os procuradores da Fazenda Nacional, em determinadas situações, a comunicar à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional as decisões contrárias à Fazenda Nacional, a fim de que fossem submetidas à apreciação do Poder Judiciário, emite uma MP, esta chamada de "MP do Bem", com quase a mesma finalidade, tal seja, exercer controle sobre os Conselhos.
Todavia, a mencionada Medida Provisória atenta contra o devido processo legal.
Conforme já tivemos ocasião de afirmar, quando emitimos parecer para Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, naquela ocasião, qualquer lei casuística, que vise beneficiar uma das partes em detrimento da outra, atenta contra o processo devido.
Vejamos, em sua literalidade o artigo 68 da MP do Bem, que, já se verifica trazer em seu bojo significativa "maldade":
"Art. 68. O Ministro de Estado da Fazenda poderá criar, nos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, Turmas Especiais, por prazo determinado, com competência para julgamento dos processos que especificar em função da matéria e do valor.
§ 1o. As Turmas de que trata o caput serão paritárias, compostas por quatro membros, sendo um conselheiro Presidente de Câmara, representante da Fazenda, e três conselheiros com mandato pro tempore, designados entre os conselheiros suplentes.
§ 2o. O Ministro de Estado da Fazenda disciplinará o disposto neste artigo, inclusive quanto à definição da matéria e do valor a que se refere o caput e ao funcionamento das Turmas Especiais".
Inicialmente, verificamos ter sido atribuída competência para o Ministro de Estado da Fazenda alterar a composição dos Conselhos, ou, por outra, criar "jurisdição especial", Turmas Especiais, quando tal fato interessar ao Executivo, parece claro.
Em conseqüência, o processo administrativo, garantia dos administrados, passa a ter a flexibilidade que interessar a uma das partes, o Estado, exatamente a parte mais forte. Portanto, trata-se de competência ad hoc, competência não aleatória, mas competência de julgadores escolhidos exatamente pela parte mais favorecida, a parte que já tem várias prerrogativas.
As Turmas Especiais, descritas no artigo 68 da Medida Provisória terão juízes escolhidos, dentre os suplentes, pelo Fisco, naturalmente aqueles que se revelarem fazendários, tais sejam, aqueles que entendem erroneamente o conceito de interesse público1.
O julgador incerto, não escolhido pelas partes, é garantia da prestação jurisdicional isenta ou da decisão isenta, somente comprometida com a justiça. Lembremo-nos que o Estado de Direito tem como pilastra a separação e independência dos poderes, a submissão à lei e o respeito às garantias constitucionais. Este será o Estado de Constitucionalidade.
Ora, o desrespeito aberto ao inciso XXXVII do artigo 5º da Constituição é, segundo creio, e firmemente, terrível afronta ao processo devido, afronta essa, que, diga-se de passagem, cada vez mais se vem acentuando.
Não se diga que as decisões dos Conselhos de Contribuintes não são decisões jurisdicionais, portanto o argumento não serviria. Certo que as decisões não são jurisdicionais em seu sentido autêntico, mas a elas foram dadas as mesmas garantias do processo judicial (art. 5º, inc. LV da CF).
Além disso, as decisões dos Conselhos de Contribuintes fazem "coisa julgada" administrativa. Portanto, têm o condão de fazer atuar o artigo 45 do Decreto Federal nº 70.235/1972, que determina a exoneração do contribuinte quando da decisão administrativa não couber mais qualquer recurso.
Prosseguindo no exame. Os "juízes", ou melhor dizendo, os julgadores, serão escolhidos em função do valor da questão administrativa e em função da matéria. Quem dirá de que matérias2 se trata? O Ministro da Fazenda a quem foi atribuída competência para modificar legislação, a quem foi dada delegação praticamente em branco.
A norma é extremamente aberta. É delegação de competência em branco e, ademais disso, como já enfatizado, juízes comporão Turmas Especiais pro tempore, ao sabor da necessidade arrecadatória, em franco desrespeito ás garantias individuais.
Resta-nos a indagação:
Somos ainda um Estado Democrático de Direito, como afirma nossa maltratada Constituição? Ou esta já é página virada?
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1 Já tivemos oportunidade de afirmar cem número de vezes que "interesse público" não poderá ter qualquer conteúdo, como se fosse palavra oca, mas, antes, deverá ser pensado em termos de interesses primários da Administração e não em interesses secundários. O interesse público maior a proteger é, sem dúvida, a defesa da Constituição e das garantias individuais nela consagradas. A lei, ou, pior ainda, a medida provisória, que resulta da vontade do Executivo, pelo menos inicialmente, não pode sufocá-las, tentar fazê-las submergir na fúria fical, cada vez mais avassaladora.
2 A discricionariedade administrativa não pode ir ao ponto de escolher julgadores e matérias a lhes serem atribuídas. A administração age debaixo da lei. Não pode a Administração ter um "cheque em branco" do legislador (Caio Tácito).
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* Professora titular de Direito Administrativo da PUC - SP, Desembargadora Federal aposentada do TRF da 3ª Região, advogada e consultora em São Paulo