A bipolaridade do Direito Processual brasileiro
Algumas regras estabelecidas ainda permitem, pela via oblíqua, que se tripudie sobre o direito reconhecido em decisões de primeiras instâncias, submetendo seu legítimo titular a uma espera que está longe do razoável.
quarta-feira, 10 de agosto de 2011
Atualizado em 9 de agosto de 2011 09:35
A bipolaridade do Direito Processual brasileiro
Mário Gonçalves Júnior*
Não se sabe bem de onde começou uma tendência bem brasileira, infelizmente ainda, de ganhar e não levar. Coisa esquisita. O Direito Processual é, ou deveria ser, por essência, o instrumento de realização do direito material. Sua principal função é transformar em verdade real o que desde sempre já deveria ter sido não fosse a lesão do direito. Esse direito, porque violado desde o nascedouro, equivaleria, por assim dizer, a um direito abortado, com a diferença de que pode renascer pela vontade do Estado-juiz de restituí-lo integralmente através da sentença que o reconhece.
Apesar do desgaste e dos custos de uma ação judicial, quem decide enfrentá-la, ainda que munido das mais sinceras e válidas razões, em geral, encontrará do outro lado alguém que, sem contrarrazões à altura, só terá ao alcance o uso e abuso do chamado sistema para vencê-lo pelo cansaço e forçá-lo a algum acordo insatisfatório, ou a uma egoísta quase-moratória, até que, vencidas todas as instâncias recursais, possa finalmente fruir o direito, muitas vezes já aos frangalhos ou parcialmente, quando não substituído por algum acordo risível, a que o titular do direito se submete vencido pelo cansaço. O tempo trabalha contra o restabelecimento integral e principalmente oportuno dos bens legítimos ilegitimamente usurpados.
Vale recordar que a jurisdição estatal foi a resposta civilizada aos tempos de 'justiça' pela força direta dos particulares. O que infelizmente acontece entre nós é que, apesar da jurisdição estatal, regras foram estabelecidas que ainda permitem, pela via oblíqua, que se tripudie sobre o direito estabelecido e reconhecido em decisões de primeiras instâncias, submetendo seu legítimo titular a uma espera que longe está do razoável e justificável. O primado do devido processo legal e da inocência presumida ultimamente têm trabalhado, contudo, em favor dos potencialmente culpados, assim considerados como tais pelas duas primeiras instâncias de qualquer jurisdição. Estabeleceu-se um caminho para se considerar alguém culpado, mas nesse percurso, exacerbado demais para os tempos de hoje, os provavelmente inocentes é que pagam o preço da (longa) espera.
Isto vem alimentando uma subcultura espúria, algo assemelhada à dos tempos da justiça pelas próprias mãos. Quem pode aguentar e postergar o trânsito em julgado da própria culpa, castiga o inocente do outro lado até o limite do suportável, onde seja imaginável desistir da própria inocência ou capitular em acordo minimalista ou até o abandono da causa justa.
É sabido que as instâncias superiores não se prestam a reexaminar todas as causas e em todos os seus detalhes. Pelo sistema atual, deveria ser exceção o acesso a essas instâncias, porém a quantidade de recursos interpostos desafia essa lógica já só pelo prisma estatístico. A quantidade não parece sugerir exceção, mas regra. Isto se deve ao fato de que, mesmo incabíveis os últimos recursos, são ordinariamente interpostos em boa parte dos processos. Isto instaura situação paradoxal que não difere muito da antiga justiça particular, a sem intervenção estatal. Continua havendo um desequilíbrio sério para a civilidade. Antes pela força, hoje pela má-fé processual. Há um aparelho estatal 'no meio', mas continua havendo espaço, algo mal travestido de legítimo, para alguém que só quer postergar demais o dia de pagar. É como um meio termo entre a barbárie e a civilidade.
Evidente que o direito ao esgotamento das instâncias não tinha por princípio esse absurdo. Imaginava-se que regra fosse regra, exceção, exceção. E assim o devido processo legal se cumpriria sem espantar. Mas quando a realidade desafia o direito, este, mais tempo, menos tempo, reage, porque a toda ação corresponde uma reação igual e contrária.
É bem verdade que hoje os juízes estão dotados de institutos que permitem até mesmo a antecipação da tutela (artigos 273 e 461 do CPC - clique aqui), mas parece ainda haver reserva para a procrastinação. Ou se está utilizando pouco a antecipação da tutela, ou há alguma outra razão que explique o excessivo conservadorismo em se tratando dos conceitos legais de inocência e direito de ampla defesa.
O Direito Processual é mero instrumento, não é um fim em si mesmo. Se não servir para o restabelecimento adequado do direito substantivo lesado. Se for para protagonizar a disputa judicial, desvirtua-se, deixa de ser instrumento para ser obstáculo.
A reação política já vem. Começou com a lei da ficha limpa, tão cansados estavam os cidadãos da possibilidade de condenados em várias instâncias, mas sem o supervalorizado trânsito em julgado, concorrer, ganhar e tomar posse em eleições.
Não demora e essa reação ganhará novos braços nos demais ramos do Direito, alcançando principalmente o criminal, o cível, o trabalhista, etc. Não faz sentido assistir condenados nas primeiras instâncias postergando o cumprimento das condenações só porque papel branco aceita tudo, interpondo recursos excepcionais sem o menor cheiro de excepcionalidade, zombando do Estado de Direito, distorcendo os bons objetivos do Direito Processual.
Difícil compreender tamanho conservadorismo. Já deveríamos estar bem mais adiante. Há alguma espécie de bipolaridade aqui: todos queremos a justiça efetiva e menos morosa, mas ainda teimamos em atravancar o caminho com o direito de defesa, levado ao extremo do sagrado. Ou, quem sabe, alguma boa dose de cinismo e consciência pesada: se regras pudessem valer só para os outros, talvez já teriam sido mais rigorosas...
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*Advogado trabalhista. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho
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