Prerrogativas ofendidas
Fui juiz de carreira. Iniciei minha vida profissional como escrevente de cartório, ingressando, por concurso, na magistratura, chegando a desembargador. Agora sou advogado.
quarta-feira, 22 de junho de 2005
Atualizado em 21 de junho de 2005 11:01
Prerrogativas ofendidas
Regis Fernandes de Oliveira*
Fui juiz de carreira. Iniciei minha vida profissional como escrevente de cartório, ingressando, por concurso, na magistratura, chegando a desembargador. Agora sou advogado. Todas as profissões são honrosas e honradas por aqueles que as exercem. Não há trabalho lícito que possa ser desonroso. Até Sísifo, carregando sua pedra pela eternidade, tinha um fim a cumprir. Mesmo o barqueiro do inferno que cobrava de todos para cruzar o Aqueronte tinha sua dignidade.
Do ângulo profissional, todas as carreiras se equiparam. O importante é quem as exerça o faça com nobreza de caráter. Há bons e maus profissionais em todas elas.
Não há, de outro lado, qualquer delas que deixe de ter a prerrogativa da existência do sigilo. O religioso tem o segredo da confissão que lhe é sagrado. O médico não pode revelar detalhes sobre seu cliente. O dentista procede da mesma forma, seguido do engenheiro e das demais atividades liberais. Mesmo o servidor público não pode ter sua vida devassada pela Administração.
Não se trata de qualquer prerrogativa ou benefício aos profissionais das diversas áreas. É garantia daquele que vem despejar sua angústia e seus problemas. Parte de sua vida é pública, mas todos têm direito a sua privacidade (incisos X a XII do art. 5° da Constituição). Todos os que convivem em sociedade devem ter sua conduta disciplinada por regras de boa convivência. As normas da moral orientam tudo e todos. Assim, para que se apresentem perante a comunidade em que vivem, todos buscam o respeito dos que com ele convivem.
De outro lado, há a vida íntima, em que cada um revela sua preferência ideológica, religiosa, sexual, dando vazão a seus sentimentos puros ou impuros. A única sabedora do que se passa na intimidade, então, é a consciência e a reflexão.
Mais do que qualquer outra profissão, o advogado é polivalente. Recebe, em confidência (em confiança, fiduciariamente), informações sobre a individualidade de seu cliente. Não pode trair a confiança que lhe foi depositada. É preservado pelo sigilo profissional. Aquele que vem ao advogado deve poder sentir segurança nas informações que lhe passa; deve ter a garantia que seu segredo não será revelado. Tanto quando o padre ou o pastor e outras autoridades religiosas é obrigado, por seus votos, a guardar segredo da confissão, o, advogado não pode trair ou ver traída a confidência que lhe foi dada.
Os dados que a ele foram conferidos constituem o sigilo profissional do advogado e este é indevassável por quem quer que seja. O Estado Leviatã, todo poderoso e onipotente não tem espaço em nossos dias. O Grande Irmão é fruto da distorção comunista de Estado. A democracia não admite a quebra de seus princípios e regras. Viver em democracia não é apenas obedecer ao governo da maioria. É conviver em sociedade saudável e de regras estabelecidas mediante consenso que não pode ser quebrado. É a prevalência das regras que dá garantias ao jogo. É a manutenção do dissenso que nos permite chegar ao consenso. É do confronto de idéias e preservação de direitos que nos permite viver em Estado seguro e sólido, onde as garantias constitucionais são preservadas.
Estamos vivendo uma crise de valores de toda ordem. As instituições estão estremecidas por toda sorte de corrupção. A sociedade assiste, pasma, à quebra do respeito. Os quartéis estão inquietos. Inúmeras leis que são mal interpretadas servem de respaldo ao crescimento de temores. Há permanente inquietude na insegurança.
Daí se segue que não é apenas de invasão de escritório de advocacia que se cuida. É coisa mais grave. É a quebra do respeito aos princípios que devem vigorar para que subsista a comunidade. É o temor que o Estado volte a prevalecer sobre os princípios democráticos, abalando a seriedade que deve envolver a prática jurídica. A democracia só se assenta sobre princípios sólidos. Os direitos tornam-se inabaláveis à medida em que são praticados e exercidos. Se e quando o Estado menospreza direitos, abala-se a fé nas instituições, tornando-as agressoras de direitos e não mantenedoras deles.
Não podemos deixar que o Judiciário possa servir de instrumento aos avanços ditatoriais e inescrupulosos do Estado-gendarme. A sanha arrecadatória do Estado pode satisfazer-se com a apreensão de documentos em poder da empresa que agride o ordenamento jurídico. A sonegação deve ser combatida como crime, na medida em que superada a fase do procedimento administrativo. Toda sonegação significa menor arrecadação, o que redunda em detrimento da boa prestação dos serviços públicos, sacrificando a população de baixa renda. Vê distanciar de si os aparelhos públicos que devem ser destinados a prestar-lhes atendimento, com creches, escolas e hospitais. Ninguém defende a sonegação.
O que não tem sentido, no entanto, é ultrapassar as fronteiras do permitido, de forma a misturar as pessoas do cliente com o do advogado. É confundir infrator com seu patrono. São intimidades que não se confundem. Nem podem ser confundidas, salvo indícios de também o confessor é criminoso. O cliente apenas procura o profissional da área jurídica porque tem um problema. Quem convive harmonicamente com as regras jurídicas e não entra em confronto com qualquer outro valor, não necessita do apoio, do conselho e do trabalho do tribuno.
Há, pois, estruturas jurídicas que não podem ser mescladas, sob pena de perder sua individualidade e seu valor. A intimidade jurídica da empresa pública ou do indivíduo não pode ser confundida com a de outro. A jurisprudência e a doutrina apenas têm admitido a desconsideração da pessoa jurídica, para atingir uma outra, quando circunstâncias justificarem o comportamento. No entanto, a tese não se aplica à hipótese analisada.
Qualquer profissional tem sua intimidade resguardada. Com maior razão o advogado, que é imprescindível à Justiça, na forma prevista pela Constituição da República. Nada pode atingir mais o Estado de direito, quando as garantias constitucionais começam a ser desconsideradas. Aí surge o abalo das instituições e o risco dos direitos que o Estado tem que preservar e não agredir.
A ninguém é dado, pois, invadir escritórios de advocacia impunemente. Não se pode confundir as coisas, as pessoas jurídicas, as instituições, as garantias e os direitos. Somente com a sublevação do Estado de direito.
Daí porque, nos diversos cargos que ocupei, como o de escrevente, de juiz, de desembargador, de deputado, de vice-prefeito e, agora como advogado, o respeito primeiro é pelo país, pelas instituições e pelos direitos das pessoas. Em qualquer profissão deve tudo isso ser respeitado. Mais do que qualquer outra coisa, a intimidade do profissional, que é a garantia do cidadão.
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*Advogado, professor titular da USP e sócio do escritório Regis de Oliveira, Corigliano e Beneti Advogados
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