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Lixo extraordinário

Cássio Roberto dos Santos Andrade

Fecho a revista, pago a conta, vai começar o documentário "Lixo Extraordinário", capitaneado por Vik Muniz, um dos grandes artistas plásticos da atualidade, radicado em Nova York e respeitado no mundo inteiro. O cenário se passa no maior aterro sanitário do planeta: Jardim Gramacho na periferia do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Atualizado em 12 de maio de 2011 00:13


Lixo extraordinário

Cássio Roberto dos Santos Andrade*

Faltava quase uma hora para o início da sessão, o que me levou ao café perto do cinema. No balcão havia uma revista cujo destaque era a entrevista do ex-governador José Roberto Arruda, apeado do poder acusado de corrupção. O político, flagrado recebendo maços de dinheiro, se defendia sob o argumento de que fez o que todos os seus pares fazem.

Fecho a revista, pago a conta, vai começar o documentário "Lixo Extraordinário", capitaneado por Vik Muniz, um dos grandes artistas plásticos da atualidade, radicado em Nova York e respeitado no mundo inteiro. O cenário se passa no maior aterro sanitário do planeta: Jardim Gramacho na periferia do Rio de Janeiro.

Vik e sua equipe começam a fotografar os brasileiros que trabalham no lixão. São pessoas vivendo em barracões de madeira, de papelão e em palafitas, que sustentam suas famílias catando material reciclável ao limpar toneladas de lixo. Leem poesia e filosofia nos livros que a população joga fora. Não se queixam da "sorte", não ficam lamentando a sina de dividir o espaço de trabalho com urubus e ratazanas. Não se importam com o cheiro do local que teima em invadir o ônibus após mais um dia de luta, provocando o preconceito, a humilhação, vindos dos mesmos irmãos brasileiros - estes, sim, pobres de tudo - com quem dividem a condução e a miséria desse país rico. São pessoas que nunca viram o rosto das oportunidades; a elas o destino reservou as portas fechadas, as costas do Brasil.

Apesar de todas as dores que o mundo impõe a esses homens e mulheres encharcados de dignidade, o que emerge do documentário é uma gente enlouquecida de esperança, que não desiste nem quando o pouco dinheiro, conquistado após uma estafante jornada, é roubado num fim de tarde, a mostrar que o sofrimento não tem fim.

E tudo se passa sob a proteção de um céu (mais uma vez) indiferente... O desespero não encontra espaço na vida de quem é regido pela necessidade, a quem não se permite pensar em outra coisa a não ser se haverá, hoje, o que comer. Os trabalhadores do lixão se organizam; líderes surgem; uma associação nasce para buscar melhores dias.

O documentário se encerra no programa do Jô Soares que anuncia a presença do presidente da "Associação de Catadores de Lixo do Jardim Gramacho". Com a coragem e a dignidade de quem só sabe lutar, o presidente Tião corrige o famoso apresentador: "Com licença, Jô, me desculpe, mas nós não somos catadores de lixo. Catamos material reciclável, pois lixo não tem utilidade".

Saio do cinema; volto ao café e vejo a foto do Arruda. A revista continua no balcão a exalar o mau cheiro de um lixo que infelizmente se recicla a cada eleição.

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*Advogado, procurador do Estado de Minas Gerais e professor de graduação e pós-graduação do curso de Direito do UNI-BH



 

 

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