A portaria SPU nº 24/2011 e a cessão onerosa de espaços em águas públicas para estruturas náuticas: terminais portuários de uso público e autoridades portuárias
Foi publicada, no DOU do dia 28/1/2011, a Portaria 24 da Secretaria de Patrimônio da União - SPU, que estabelece normas e procedimentos para a instrução de processos visando à cessão de espaços físicos em águas públicas e fixa parâmetros para o cálculo dos valores devidos a título de retribuição à União.
quarta-feira, 30 de março de 2011
Atualizado em 29 de março de 2011 16:01
A Portaria SPU nº 24/2011 e a cessão onerosa de espaços em águas públicas para estruturas náuticas: terminais portuários de uso público e autoridades portuárias
Cesar A. Guimarães Pereira*
Fernão Justen de Oliveira*
Rafael Wallbach Schwind*
1. Introdução
Foi publicada, no DOU do dia 28/1/2011, a Portaria 24, de 26/1/2011, da Secretaria de Patrimônio da União - SPU (clique aqui), que "estabelece normas e procedimentos para a instrução de processos visando à cessão de espaços físicos em águas públicas e fixa parâmetros para o cálculo dos valores devidos a título de retribuição à União" (art. 1º).
Após tecer uma série de definições, a portaria, em linhas gerais, estabelece que as estruturas náuticas localizadas em espaços físicos em águas públicas sob o domínio da União, destinadas a atividades institucionais, habitacionais, de lazer, comerciais ou industriais (art. 3º), serão objeto de cessão gratuita ou onerosa.
Quando a cessão for onerosa, deverá ser recolhido aos cofres da União um valor de retribuição anual pelo uso do espaço físico em águas públicas, calculado de acordo com a fórmula prevista no art. 5º, parágrafo 3º, da Portaria. Trata-se, na linguagem comum, da cobrança de remuneração pela utilização do chamado "espelho d'água".
O presente estudo destina-se a examinar, em linhas gerais, a validade da cobrança e a sua incidência, ou não, sobre a utilização do "espelho d'água" pelos terminais portuários de uso público (art. 4º, § 2º, I, da lei 8.630/93 - clique aqui) ou pelas autoridades portuárias (art. 33 da lei 8.630/93).
2. Natureza e parâmetros gerais
Tratando-se do tema de modo mais abrangente, não apenas relacionado com o foco principal deste estudo, é admissível a cobrança pela utilização de bens públicos por particulares. O art. 103 do Código Civil (clique aqui) prevê que o seu uso pode ser gratuito ou sujeito a remuneração. A lei 9.636/98 (clique aqui), que disciplina a administração do patrimônio da União, também menciona esta possibilidade. No entanto, esta cobrança não é livre de parâmetros jurídicos.
Dependendo de certas condições, a cobrança terá a natureza de preço contratual (público) ou de tributo.
Os parâmetros que devem ser levados em conta são (i) a compulsoriedade ou não na utilização do bem, (ii) a existência ou não de serviço ou exercício de poder de policia associado à atuação estatal que dá ensejo à cobrança, (iii) a ocorrência de delegação a particulares, por concessão ou permissão, da atividade que enseja a cobrança em questão.
No caso em exame, trata-se de cobrança realizada diretamente pela União (SPU). Não há delegação de qualquer atividade. Também não há, nos termos da Portaria, nenhuma previsão de serviço público ou exercício de poder de policia associado à cobrança. Por fim, há a necessariedade na utilização do bem público: as atividades que envolvem a utilização do bem (superfície de água) não podem ser desenvolvidas de nenhum outro modo senão mediante o uso do bem. Não se concebe fisicamente a possibilidade de atividade portuária senão mediante a utilização, por alguém (responsável pela embarcação), da água para o tráfego aquaviário.
Nessas circunstâncias, seria cabível cogitar de uma cobrança de natureza tributária, nos termos do art. 3o do Código Tributário Nacional (clique aqui). Como não há no Brasil taxas de uso, apenas de serviço ou de polícia (art. 145, II, da CF/88 - clique aqui), tratar-se-ia de um tributo inominado, com a natureza de taxa "atípica" ou de contribuição (já que de imposto certamente não se trataria), somente passível de criação mediante lei que estabelecesse todas as suas características. A validade da cobrança pressuporia, de início, a necessidade de ela se enquadrar nas hipóteses constitucionais de taxas (cobrança vinculada a uma atividade diretamente referida ao sujeito passivo) ou contribuições. Mesmo se isto fosse possível, restariam alguns problemas claros, entre eles a violação da legalidade tributária (a definição da cobrança é configurada pela portaria, não por lei), a definição do sujeito passivo (que deve ser o efetivo utilizador do bem público - p. ex., o armador - e não alguém indiretamente vinculado à utilização, como o terminal portuário) e a quantificação da cobrança (que deve ser uma medida da atuação estatal ou da referibilidade indireta existente nas contribuições).
Destaque-se uma distinção necessária entre a presente situação e a cobrança de pedágio em vias públicas, especialmente as sujeitas a concessão. Neste caso, não se reconhece a natureza tributária da cobrança em face da delegação da atividade mediante concessão, o que implica a incidência do regime de tarifa pela prestação de um serviço público (art. 175 da CF). Ademais, a instituição do pedágio é expressamente referida no art. 150 da CF. No caso da cobrança pelo uso do espelho d'água, além de não haver serviço público, há a instituição da cobrança diretamente pelo Poder Público, não sujeita a delegação.
Tais razões conduzem ao descabimento da cobrança de modo geral. Deve-se destacar que já há alguma experiência jurisprudencial no âmbito da cobrança por áreas terrestres a ser levada em consideração. A jurisprudência do STJ, conforme indicado em tópico posterior deste estudo, tem afirmado a impossibilidade de cobrança de valores inominados, não enquadráveis nas formas típicas previstas na Constituição. Ademais, mesmo se fosse possível alguma "cobrança atípica" de natureza não tributária, alheia, portanto à legalidade estrita, tal cobrança também se submeteria a parâmetros de razoabilidade na sua quantificação e na definição de quem pode ser atingido pela cobrança.
3. A situação dos terminais portuários de uso público: questão prévia e não incidência de cobrança (art. 5º, I e § 1º, da Portaria)
No que se refere à situação dos terminais portuários de uso público, antes de ir adiante, é necessário destacar um ponto específico que demonstra o caráter no mínimo questionável das previsões contidas na Portaria 24/2011 da SPU.
A instituição de cobranças pela utilização de estruturas náuticas, caso atinja terminais portuários de uso público - e não é o caso, como se demonstra adiante -, constitui ofensa aos princípios da boa-fé e da moralidade administrativa.
Os particulares, atuais arrendatários de terminais portuários de uso público, participaram de licitações a fim de arrendar os terminais. Pressupuseram - como não poderia deixar de ser - que, tendo obtido as concessões dos terminais por eles operados, poderiam utilizá-los para a atracação de navios.
À época das licitações, não havia nenhuma previsão de cobrança pela simples utilização dos espaços físicos em águas públicas. Havia, em cada caso, apenas as obrigações devidamente previstas nos editais dos certames no sentido de que deveriam ser pagos determinados valores às respectivas autoridades portuárias pelo direito de utilização dos terminais que seriam arrendados.
Sendo assim, os atuais arrendatários não podem ser agora surpreendidos com a instituição de uma nova cobrança incidente sobre aqueles elementos. A utilização (e exploração) dos terminais e dos espelhos d'água correspondentes é essencial para a própria prestação dos serviços públicos desempenhados pelos arrendatários. Instituir cobranças adicionais, seja a que título for, constitui mero artifício para que o Poder Público cobre novamente pela utilização das mesmas estruturas, que já são remuneradas nos termos dos contratos administrativos de arrendamento.
Porém, o mais relevante é que, segundo o próprio texto da Portaria 24, os terminais portuários de uso público e os demais envolvidos na prestação de serviços públicos não estão sujeitos à cobrança.
Os terminais de uso público prestam um serviço público, de titularidade da própria União, e não uma atividade econômica privada. A portaria leva isso em consideração ao não tratar aparentemente os terminais de uso público exatamente da mesma forma que os terminais privativos.
Neste ponto, convém destacar que o teor do art. 5o da Portaria pode e deve ser interpretado como não abrangendo os terminais de uso público (arrendatários de instalações portuárias empregadas para a prestação de serviço público portuário).
A situação dos terminais de uso público se enquadra na previsão do art. 5º, inciso I, da Portaria, que estabelece a cessão gratuita de estruturas náuticas "de interesse público". Isso porque os terminais de uso público são utilizados por um ente público, ainda que não diretamente, mas por meio de concessão a uma empresa privada, que é a arrendatária da estrutura portuária. Portanto, devem ser objeto de cessão gratuita, na forma do § 1o do referido dispositivo.
O art. 5o, I, prevê as seguintes hipóteses de estruturas náuticas:
a) "aquelas caracterizadas como essenciais ou necessárias, a exemplo de um único acesso à localidade ou propriedade"
b) "aquelas de uso público, gratuito e irrestrito"
c) "as utilizadas por entes públicos municipais, estaduais ou federais em serviço de interesse público ou social"; e
d) "as utilizadas por comunidades esportes náuticos nos termos do art. 20 do Decreto-Lei nº 3.438, de 17 de julho de 1941".
Os terminais de uso público se enquadram especialmente na hipótese "c". Consistem em instrumentos dos "entes públicos" na prestação de um serviço de interesse público ou social, qualificado como tal pelo art. 22, XII, "f", da CF. A redação da Portaria não impõe como requisito que essa utilização para o desenvolvimento de um serviço público seja também gratuita para o usuário (do serviço prestado). A hipótese de uso gratuito é a "b". As demais hipóteses não contemplam esse requisito.
Isso é confirmado pelo fato de que os terminais de uso público certamente não se enquadram no inciso III do art. 5º da portaria. Seu enquadramento no inciso II do mesmo artigo também não é possível. O dispositivo alude a estruturas "destinadas ao desenvolvimento de atividades econômicas comerciais, industriais, de serviços e lazer, geralmente com finalidade lucrativa". Como a Portaria utiliza concomitantemente os dois conceitos de "serviços de interesse público ou social", no inciso I, e de "atividades econômicas ... de serviços", no inciso II, é inegável que a atividades dos terminais de uso público se enquadra no inciso I. Do contrário, haveria a equiparação de dois conceitos (serviço público e atividade econômica em sentido estrito) que a CF/88 separou com clareza nos seus arts. 175 e 173. O inciso II deve ser reservado aos casos em que não ha prestação direta ou indireta de serviço público.
4. A não abrangência das autoridades portuárias pelas cobranças previstas na Portaria 24/2011 da SPU
A situação das autoridades portuárias é idêntica à dos terminais de uso público no que se refere à aplicação do art. 5º da Portaria. Para maior clareza, examine-se o teor integral do dispositivo e os três primeiros incisos:
Art. 5º. As estruturas náuticas são classificadas, para fins de cobrança, como:
I - de interesse público: aquelas caracterizadas como essenciais ou necessárias, a exemplo de um único acesso à localidade ou propriedade, aquelas de uso público, gratuito e irrestrito, as utilizadas por entes públicos municipais, estaduais ou federais em serviço de interesse público ou social; as utilizadas por comunidades esportes náuticos nos termos do art. 20 do Decreto-Lei 3.438, de 17 de julho de 1941;
II - de interesse econômico: aquelas destinadas ao desenvolvimento de atividades econômicas comerciais, industriais, de serviços e lazer, geralmente com finalidade lucrativa; ou
III - de interesse particular: aquelas cujos usos não demandem necessariamente a vinculação com o espaço físico em águas públicas e aquelas que agregam valor a empreendimento, geralmente utilizadas para o lazer ou moradia.
§ 1º. As estruturas náuticas classificadas como de interesse público, enquadradas no inciso I deste artigo serão objeto de cessão gratuita.
§ 2º. A cessão de uso gratuita de espaço físico em águas públicas federais a comunidades tradicionais poderá ser feita na modalidade coletiva a associações ou conjunto de famílias pescadoras artesanais.
§ 3º. As estruturas náuticas classificadas nos incisos II e III deste artigo terão o valor da retribuição anual pelo uso do espaço físico em águas públicas calculado em função da área ocupada e do valor do investimento, aplicando-se a seguinte equação: (...)"
Como se vê, somente se prevê a cobrança de valores junto a estruturas náuticas de interesse econômico e de interesse particular. As estruturas náuticas de interesse público não serão atingidas por nenhuma cobrança.
Os portos organizados de titularidade da União e objeto de delegação a outros entes da Federação inserem-se no conceito de estruturas náuticas de interesse público. Isso porque são estruturas "utilizadas por entes públicos" municipais ou estaduais para a prestação de um serviço de interesse público (movimentação de cargas), que inclusive é de titularidade da União.
Assim, nos termos da Portaria, as autoridades portuárias (em sua maioria sociedades de economia mista ou autarquias vinculadas a Estados ou Municípios) não são obrigadas a efetuar qualquer pagamento. Afinal, os portos organizados são objeto de delegação a Estados ou Municípios, sendo que as autoridades portuárias são meros braços dos delegatários para a exploração dos portos organizados.
A instituição de cobranças com base na Portaria 24/2011 da SPU, caso atingisse autoridades portuárias, acabaria por afetar as condições previstas nos convênios de delegação preexistentes à Portaria. Além disso, seria incompatível com as previsões da própria Portaria.
5. A impossibilidade de solução diversa: defeitos da cobrança pretendida pela Portaria
A instituição de novas cobranças pela utilização de terminais portuários de uso público e do espelho d'água correspondente é questionável também por diversas outras razões.
Em primeiro lugar, a utilização do espelho d'água é indissociável da prestação do serviço público desempenhado pelos arrendatários de terminais portuários de uso público.
É evidente que, quando se promove uma licitação para um arrendamento portuário, os licitantes têm a expectativa legítima de poder utilizar uma determinada área de água para a atracação de navios. Aliás, é materialmente impossível que isso ocorra de outra forma.
Já a utilização do próprio terminal portuário é remunerada nos termos das previsões constantes do edital da licitação e do contrato de arrendamento.
Assim, não é possível instituir novas cobranças pela utilização da mesma estrutura (o próprio terminal portuário) nem do espelho d'água correspondente, cuja utilização já era prevista e sem a qual a própria exploração do terminal portuário fica impossibilitada.
Em segundo lugar, a área utilizada para a atracação de navios é essencial para o desenvolvimento do serviço público desempenhado pelos arrendatários de terminais de uso público.
É indevida a instituição de cobranças que inviabilizem a própria prestação do serviço público.
O Superior Tribunal de Justiça, em diversos casos, já entendeu pela impossibilidade de instituição de cobranças pela utilização de estruturas essenciais à prestação de um serviço público. Tratava-se, na maior parte dos casos, da pretensão de determinados Municípios de instituírem preços públicos ou taxas, em desfavor de concessionárias de serviços públicos (de fornecimento de energia elétrica, por exemplo) pela utilização do solo, subsolo e espaço aéreo - como na colocação de postes e linhas de transmissão de energia.
Nesses casos, o STJ entendeu que as cobranças em questão não eram possíveis, seja pela adoção de títulos jurídicos indevidos, seja porque elas afetariam a prestação de serviços públicos relevantes.
Confiram-se os seguintes acórdãos:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. REMUNERAÇÃO MENSAL PELO USO DAS VIAS PÚBLICAS INSTITUÍDA POR LEI MUNICIPAL. NATUREZA JURÍDICA. PREÇO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA. 1. Não se conhece de Recurso Especial em relação à ofensa ao art. 535 do CPC quando a parte não aponta, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF. 2. Cuida-se, originariamente, de Mandado de Segurança impetrado por concessionária de serviço público de telefonia contra ato do Secretário Municipal da Fazenda do Município de Porto Alegre/RS, em razão da exigência, nos termos do art. 4º da Lei Municipal 8.712/2001, de pagamento de remuneração mensal pelo uso das vias públicas para instalação de seus equipamentos de telecomunicações. 3. O Tribunal a quoposicionou-se na compreensão de que a discutida remuneração é destituída da natureza jurídica de taxa, uma vez que não há, por parte do Município, o exercício do poder de polícia, nem a prestação de quaisquer serviços públicos. Concluiu, por outro lado, que, em se tratando "de remuneração pelo uso da propriedade de bens públicos, como é o caso, fica evidente tratar-se de preço público" (fl. 572). 4. Ocorre que, contrariamente ao que decidiu a Corte de origem, tampouco se cogita natureza jurídica de preço público, pois a cobrança deste derivaria de serviço de caráter comercial ou industrial prestado pela Administração. Hipótese que não se vislumbra no presente caso, que trata tão-somente de utilização das vias públicas para a prestação de serviço em favor da coletividade, qual seja a telefonia. Precedentes do STJ. 5. Evidente, portanto, a ilegitimidade da cobrança da remuneração prevista na Lei 8.712/2001 do Município de Porto Alegre/RS, por carecer de natureza jurídica de taxa ou de preço público. 6. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (RESP 2006/0234924-6, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, 31/08/2009);
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. BENS PÚBLICOS. USO DE SOLO, SUBSOLO E ESPAÇO AÉREO POR CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO (IMPLANTAÇÃO DE POSTES, DUTOS E LINHAS DE TRANSMISSÃO, P. EX.). COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os órgãos julgadores não estão obrigados a examinar todas as teses levantadas pelo jurisdicionado durante um processo judicial, bastando que as decisões proferidas estejam devida e coerentemente fundamentadas, em obediência ao que determina o art. 93, inc. IX, da Lei Maior. Isso não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. Precedente. 2. Pacífico o entendimento desta Corte Superior no sentido de que a cobrança em face de concessionária de serviço público pelo uso de solo, subsolo ou espaço aéreo é ilegal (seja para a instalação de postes, dutos ou linhas de transmissão, p. ex.) porque (i) a utilização, neste caso, reverte em favor da sociedade - razão pela qual não cabe a fixação de preço público - e (ii) a natureza do valor cobrado não é de taxa, pois não há serviço público prestado ou poder de polícia exercido. Precedentes. 3. Recurso especial parcialmente provido.
(RESP 2006/0144246-5, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ - SEGUNDA TURMA, 10/09/2010).PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO TELEFÔNICO. PREÇO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA. INSTITUIÇÃO POR DECRETO MUNICIPAL. AUSÊNCIA DE PODER DE POLÍCIA OU SERVIÇO PÚBLICO. PREÇO PÚBLICO. USO DE BEM PÚBLICO. CONCESSÃO. INEXISTÊNCIA DE SERVIÇO COMERCIAL OU INDUSTRIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. 1. Ação proposta por pessoa jurídica autorizada à exploração do Serviço Telefônico Fixo Comutado, destinado a uso do público em geral, conforme Termos de Autorização firmados com a Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, ao fundamento de que obrigada a pagar 'retribuição pecuniária' instituída pelo Decreto Municipal nº 18.627/2000" para utilizar-se de bens de uso público para a instalação de equipamentos que permitam o fiel cumprimento da prestação dos serviços de telecomunicações. 2. A intitulada "taxa", cobrada pela colocação de postes de iluminação em vias públicas não pode ser considerada como de natureza tributária porque não há serviço algum do Município, nem o exercício do poder de polícia. 3. Somente se justificaria a cobrança como PREÇO se se tratasse de remuneração por um serviço público de natureza comercial ou industrial, o que não ocorre na espécie. Precedentes: REsp 802.428/SP, DJ 25.05.2006; REsp 694.684/RS, DJ 13.03.2006; RMS 12.258/SE, DJ 05.08.2002; RMS 11.910/SE, DJ 03.06.2002; RMS 12081/SE, DJ 10.09.2001. 4. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. 5. Recurso especial provido, restando prejudicada a Medida Cautelar n.º 12.191/RJ.
(RESP 2006/0226872-7, LUIZ FUX, STJ - PRIMEIRA TURMA, 05/05/2008);PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. ADMINISTRATIVO. OCUPAÇÃO DE SOLO URBANO. TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. COBRANÇA MUNICIPAL. ILEGALIDADE. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. I - O Tribunal a quo ao apreciar a demanda manifestou-se sobre todas as questões pertinentes à litis contestatio, fundamentando seu proceder de acordo com os fatos apresentados e com a interpretação dos regramentos legais queentendeu aplicáveis, demonstrando as razões de seu convencimento, não havendo, pois, como taxar o acórdão recorrido de omisso. II - Quanto à matéria de fundo, cobrança estipulada pelo Município via Decreto Municipal denominada "retribuição pecuniária" pelo uso de bens públicos (solo, subsolo e espaço aéreo) por particular (empresa distribuidora de energia elétrica), verifica-se que o acórdão recorrido dirimiu a contenda em consonância com o posicionamento desta Corte Superior ao apreciar caso idêntico - o RMS nº 12.081/SE, Rel. Min. ELIANA CALMON (DJ de 10/09/2001). III - Não há como vislumbrar a cobrança em tela seja como taxa seja como preço público, como pretendido pelo Município recorrente, já que não se cuida de serviço público de natureza comercial ou industrial. Ao revés, trata-se de utilização das vias públicas para a prestação de serviço em benefício da coletividade, qual seja, o fornecimento e a distribuição de energia elétrica, donde exsurge a ilegalidade da cobrança ora discutida. IV - Recurso especial DESPROVIDO.
(RESP 2005/0203003-9, FRANCISCO FALCÃO, STJ - PRIMEIRA TURMA, 25/05/2006).
Confira-se também o seguinte acórdão do Supremo Tribunal Federal, que adota entendimento semelhante:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA. COBRANÇA. TAXA DE USO E OCUPAÇÃO DE SOLO E ESPAÇO AÉREO. CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO PÚBLICO. DEVER-PODER E PODER-DEVER. INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS NECESSÁRIOS À PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO EM BEM PÚBLICO. LEI MUNICIPAL 1.199/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO. ARTIGOS 21 E 22 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Às empresas prestadoras de serviço público incumbe o dever-poder de prestar o serviço público. Para tanto a elas é atribuído, pelo poder concedente, o também dever-poder de usar o domínio público necessário à execução do serviço, bem como de promover desapropriações e constituir servidões de áreas por ele, poder concedente, declaradas de utilidade pública. 2. As faixas de domínio público de vias públicas constituem bem público, inserido na categoria dos bens de uso comum do povo. 3. Os bens de uso comum do povo são entendidos como propriedade pública. Tamanha é a intensidade da participação do bem de uso comum do povo na atividade administrativa que ele constitui, em si, o próprio serviço público [objeto de atividade administrativa] prestado pela Administração. 4. Ainda que os bens do domínio público e do patrimônio administrativo não tolerem o gravame das servidões, sujeitam-se, na situação a que respeitam os autos, aos efeitos da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à prestação de serviço público. A imposição dessa restrição não conduzindo à extinção de direitos, dela não decorre dever de indenizar. 5. A Constituição do Brasil define a competência exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica [artigo 21, XII, b] e privativa para legislar sobre a matéria [artigo 22, IV]. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a declaração, incidental, da inconstitucionalidade da Lei n. 1.199/2002, do Município de Ji-Paraná. (RE 581947, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2010, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-159 DIVULG 26-08-2010 PUBLIC 27-08-2010 EMENT VOL-02412-05 PP-01113).
Reputa-se que o mesmo entendimento pode ser aplicado no caso das cobranças instituídas pela Portaria nº 24/2011 da SPU.
Trata-se da instituição de valores pela utilização de estruturas que ou já são objeto de remuneração nos termos dos contratos de arrendamento, ou constituem bens imprescindíveis à utilização dos próprios terminais e ao desempenho do serviço público concedido (espelho d'água).
Nesse ponto, é necessário fazer uma distinção entre os casos aqui referidos e as cobranças pela utilização de faixa de domínio em rodovias concedidas à iniciativa privada. Isso para que não se pretenda equiparar as previsões da Portaria da SPU com a cobrança pela utilização de faixas de domínio em rodovias concedidas - cobrança esta que é juridicamente possível, praticada e admitida sem questionamentos relevantes.
Nos casos analisados pelos acórdãos acima mencionados, há um conflito entre o Poder Público e a concessionária, ao passo que, no caso da cobrança pelas faixas de domínio em rodovias concedidas, há um conflito entre concessionárias. Essa distinção é fundamental, uma vez que as concessionárias têm o dever de explorar todas as potencialidades do serviço a fim de obter receitas marginais que revertam à modicidade tarifária (art. 11 da lei 8.987/95 - clique aqui).
No caso dos portos, cobrar pela utilização do bem público (espelho d'água) apenas encareceria a prestação do serviço público, que inclusive é de titularidade da própria União. Ainda que o Poder Público tenha o dever de obter receitas pela exploração de seus bens, isso deve ser feito quando possível, e na medida em que não prejudique a prestação de serviço público.
E a utilização dos próprios terminais portuários, por outro lado, já é devidamente remunerada nos termos do que estabelecem os contratos de arrendamento.
Além disso, no caso das rodovias, as empresas que utilizam a faixa de domínio podem obter os mesmos resultados mediante outras soluções (por exemplo, desapropriação de imóveis para passarem suas estruturas). Elas preferem utilizar a faixa de domínio por se tratar da solução economicamente mais interessante, ainda que tenham de pagar determinados valores à concessionária da rodovia.
No caso dos portos, a situação é totalmente diversa. Não há como um navio chegar ao porto senão pelo mar. A única forma de os navios atracarem será ocupando uma área de espelho d'água. Já o terminal portuário é a própria estrutura arrendada, e que é devidamente remunerada de acordo com o que preveem os contratos de arrendamento.
Outro fator de distinção é que a utilização da faixa de domínio gera determinados custos à concessionária da rodovia. Já em relação à cobrança que a Portaria da SPU pretende instituir, não há nenhuma alegação ou comprovação de que a simples utilização de uma área para a atracação de um navio gere custos à União. Prova disso é que a fórmula de cálculo do valor que se pretende cobrar, estabelecida no art. 5º da Portaria, não leva em consideração custos específicos. A União só pretende ampliar sua arrecadação mediante a cobrança pela utilização de um bem público, mas está fazendo isso em prejuízo do serviço público desempenhado pelos terminais portuários de uso público.
Portanto, o entendimento retratado nos acórdãos acima mencionados é aplicável à cobrança instituída pela Portaria da SPU. Além disso, as razões que justificam a instituição de remuneração pela utilização de faixas de domínio em rodovias concedidas não se aplicam ao caso ora em exame.
Ressalte-se ainda que a Portaria da SPU não identificou um motivo autônomo e concretamente apreciável para a instituição da cobrança pelo uso do espelho d'água.
Essa omissão sobre o motivo para a cobrança configura antes um sintoma da incongruência da instituição da cobrança do que uma sua causa específica. Como se disse, toda e qualquer contraprestação que pudesse ser obtida com a utilização do espelho d'água já está contemplada no arrendamento dos terminais portuários. A Portaria da SPU nem sequer esboçou justificativa para a sobreposição das cobranças pelo arrendamento e pela utilização do espelho d'água.
Ademais, a ausência de serviço público envolvido nas hipóteses contempladas pela Portaria da SPU impede qualquer eventual fundamento para a exigência de contraprestação autônoma. Não será viável, por isso, que a passagem pelo espelho d'água ficasse condicionada a alguma prévia contraprestação com fundamento isolado nesse exclusivo fato.
Mais do que isso, a organização do tempo e modo como os usuários têm acesso ao espelho d'água não se regula por intermédio de contraprestação específica, tal como instituída pela Portaria da SPU. Não se submete, por si só, a parâmetros econômicos (como a escassez, para exemplificar) que lhe tornem suscetível de ordenação por meio de cobrança equivalente à determinada pela Portaria da SPU.
É necessário levar em consideração também que a utilização do espelho d'água correspondente a um terminal portuário é apenas temporária e não excludente. Um navio ocupa o espaço apenas pelo tempo necessário ao carregamento e descarregamento.
Sendo assim, não é possível que a Portaria trate da mesma forma situações totalmente diferentes. A utilização do espelho d'água é bem diversa da realização, por exemplo, de uma obra definitiva sobre águas públicas.
A cobrança pretendida pela Portaria da SPU é inválida também porque os critérios previstos para o cálculo da prestação são indevidos. Levam-se em consideração determinados dados que são totalmente irrelevantes (tais como o preço do terreno, o valor do investimento etc.). Esses critérios levam a distorções. Por exemplo, dois terminais exatamente iguais pagariam valores diferentes dependendo do volume de investimentos previsto nos contratos de arrendamento. Não há razão lógica para isso.
6. Conclusão: a cobrança é ilegal, inconveniente e inoportuna
Pelos motivos expostos até aqui, entende-se que os arrendatários de terminais portuários de uso público e as autoridades portuárias não são e nem poderiam ser atingidos pelas cobranças instituídas pela Portaria nº 24/2011 da SPU.
Se fosse outro o teor da Portaria ou o entendimento cabível, a instituição de cobranças pela utilização do espelho d'água constituiria um fato do príncipe que afetaria o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamento (semelhante à instituição de um novo tributo, por exemplo), dando, assim, direito ao reequilíbrio da equação contratual.
Seria possível, assim, por parte dos terminais portuários, exigir que a instituição de cobranças com base na Portaria fosse acompanhada de medidas concomitantes de reequilíbrio dos contratos de arrendamento. Na medida da possibilidade concreta, os terminais de uso público poderiam repassar os custos aos usuários mediante o aumento dos preços cobrados pelos seus serviços, por exemplo. Seria indevido impedir uma medida dessas, já que os valores cobrados com base na Portaria representariam um custo adicional aos arrendatários, que poderia perfeitamente ser repassado adiante.
Essa circunstância, aliás, acaba por reforçar ainda mais o descabimento das cobranças pretendidas pela Portaria. Na realidade a instituição de cobranças desse tipo acaba por aumentar ainda mais o "custo Brasil", tornando as importações e exportações mais caras. Portos concorrentes de países vizinhos podem não ser atingidos por cobranças semelhantes, o que prejudica a competitividade dos terminais portuários brasileiros no cenário internacional.
Bibliografia
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. OLIVEIRA, Fernão Justen de. SCHWIND, Rafael Wallbach. A Portaria SPU nº 24/2011 e a cessão onerosa de espaços em águas públicas para estruturas náuticas: terminais portuários de uso público e autoridades portuárias. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 49, março 2011 (clique aqui).
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*Advogados do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados
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