ICMS, importação de bens e a EC nº 33/01
A possibilidade de haver incidência do ICMS sobre a importação, por não contribuintes do tributo, de bens ou mercadorias, foi alvo buscado por esta alteração, em "represália" à firme posição em contrário adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
sexta-feira, 21 de março de 2003
Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49
ICMS, importação de bens e a EC nº 33/01
Eduardo Domingos Bottallo*
1 - Introdução
Na história do direito constitucional brasileiro, a Constituição de 1988 desponta como recordista absoluta em termos de alterações.
Em trabalho elaborado em conjunto com o Professor Roque Antonio Carrazza, escrevemos:
"Percebemos, ictu oculi, que a EC nº 33/01 foi de um casuísmo manifesto que, positivamente, não fica bem em sede constitucional, onde devem imperar as diretrizes, os lineamentos básicos. De fato, a Constituição deve operar por sínteses, indicando e resumindo; nunca descendo, como no caso em foco, a detalhes.
Além disso, emendas constitucionais deveriam ser editadas com parcimônia e a passos largos. A constância com que vêm sendo editadas no Brasil revela, para constrangimento do mundo jurídico nacional, que a nossa Carta Magna não é capaz de impor-se aos fatos, mas, pelo contrário, são estes que determinam as trilhas que aquela deve seguir".1
Estas observações foram feitas a propósito das modificações que a Emenda Constitucional nº 33, de 11.12.01 (EC nº 33/01) introduziu nos artigos 149 e 177 da Carta, com o objetivo de possibilitar a criação de contribuição interventiva sobre as atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool combustível.
Cabem, porém, com todo o conforto, na análise crítica de outros temas tratados naquele diploma, entre os quais o de que nos ocuparemos neste artigo: a possibilidade de incidência do ICMS sobre a importação do exterior de bens ou mercadorias, por pessoas físicas ou jurídicas, mesmo que não sejam contribuintes habituais do tributo.
Então, vejamos.
2 - O ICMS e a importação de bens ou mercadorias por não Contribuintes
A EC nº 33/01 deu a seguinte redação ao art. 155, § 2º, IX, "a" da Lei Magna:
"(o ICMS incidirá também) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço".2
A possibilidade de haver incidência do ICMS sobre a importação, por não contribuintes do tributo, de bens ou mercadorias, foi alvo buscado por esta alteração, em "represália" à firme posição em contrário adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
O que se pretendeu, pois, em última análise, foi "cassar", por meio de emenda constitucional, diretriz jurisprudencial da nossa mais alta Corte de Justiça, que contrariava o interesse arrecadatório dos Estados, além de desagradar empresas que operam em alguns setores do mercado interno, incomodadas com o maior potencial competitivo de produtos estrangeiros, similares aos produzidos localmente, e importados com menor tributação.
As razões que levaram à construção desta jurisprudência podem ser assim sintetizadas:
a) a incidência do ICMS na importação de mercadorias está assentada na existência de operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo, portanto, inexigível nos casos em que o negócio jurídico seja praticado por quem não seja comerciante;
b) a cobrança do ICMS, nos casos de importação feita por não contribuinte, dá origem a crédito não suscetível de aproveitamento ou utilização, em face da inexistência de operações posteriores, o que vai de encontro ao princípio constitucional da não-cumulatividade deste tributo.
Vale, pela oportunidade, destacar o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Carlos Velloso no "leading case" consagrador do entendimento ora colacionado:3
"Se o contribuinte é o vendedor, numa importação não haveria pagamento do ICMS, pelo simples motivo de o exportador estar no exterior. Foi preciso, portanto, que a Constituição estabelecesse, expressamente, a incidência desse tributo, na importação e, expressamente, explicitou que o seu pagamento seria feito pelo comprador, ou seja, pelo importador. Ao estabelecer a incidência, no caso, o constituinte, entretanto, optou pelo comerciante, ou pelo industrial, é dizer, por aquele que tem um estabelecimento, certo que o particular, que não é comerciante ou industrial, tem simplesmente domicílio ou residência. E porque procedeu assim o constituinte? Porque o importador, assim o comprador, que é comerciante ou industrial, pode, na operação seguinte, utilizar o crédito do tributo que pagou no ato de desembaraço aduaneiro. O particular, que não é comerciante ou industrial, jamais poderia fazer isso. É dizer, caberia a ele o ônus total do tributo".4
Observa-se, portanto, que o texto original do art. 155, § 2º, IX, "a", da Constituição, interpretado segundo a correta óptica adotada pelo Supremo Tribunal Federal, preservou a identidade estrutural do ICMS, mesmo quando incidente sobre a importação de mercadorias do exterior.
Embora a sujeição passiva tenha sido, neste caso, deslocada, da figura do vendedor para a do adquirente (o que se fez em homenagem ao âmbito territorial de aplicação da norma fiscal brasileira), o tributo foi mantido em suas principais características, quais sejam: a) a de incidir apenas sobre operações (negócios jurídicos) a cargo de comerciantes; b) a de terem, tais operações, por objeto, "mercadorias" (bens móveis destinados ao comércio) e; c) a de ser não-cumulativo, "compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias (...) com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado e pelo Distrito Federal".5
Pois bem. A EC nº 33/01, dando nova redação ao dispositivo em comento, voltou-se exatamente contra os aspectos essenciais do tributo.
Em primeiro lugar, ela ampliou o campo de incidência do ICMS ao aludir à "entrada de bem ou mercadoria importados do exterior".
Como acuradamente destacou a advogada Renata Soares Leal Ferrarezi,
"... se o objeto importado não se enquadrar na definição de 'mercadoria', será considerado 'bem' importado.
Como o novo comando constitucional traz a expressão 'qualquer que seja a sua finalidade', conclui-se que a importação de 'bem', quer para consumo, quer para integrar o ativo fixo ou para qualquer outra finalidade, está sujeita à incidência do ICMS".6
Em segundo lugar, referida emenda determinou que o imposto incidirá mesmo quando o importador, pessoa física ou jurídica, não for "contribuinte habitual".
Portanto, não só comerciantes (ou industriais) como também qualquer outra pessoa promotora da importação, passou a ser o sujeito passivo possível da exação.
Finalmente - e como corolário dos pontos anteriormente destacados - o imposto, nestas operações, passa a ser potencialmente cumulativo, o que ocorrerá sempre quando elas forem protagonizadas por quem não tenha condições de compensar o montante pago em operações posteriores.
Ora, assim colocada a questão, parece inevitável a conclusão de que, na parte ora examinada, a EC nº 33/01, foi além do mero alargamento do campo de incidência do ICMS.
Longe disso, estamos convencidos de que a EC nº 33/01 desenhou um novo imposto, ou seja, um "imposto estadual sobre a importação de produtos estrangeiros" que, em seus traços fundamentais, distancia-se daquele previsto no art. 155, II, da Constituição Federal, pois: a) incide sobre operações praticadas por pessoas físicas ou jurídicas, independentemente da qualificação profissional que possam ter; b) as operações alcançadas terão por objeto não apenas "mercadorias", mas também "bens"; c) não atende ao princípio da não-cumulatividade.
A questão, pois, é saber se uma emenda constitucional poderia operar com este alcance.
As opiniões, a respeito, divergem.
Alguns sustentam que "a alteração é válida e eficaz, uma vez que foi promovida por veículo introdutor de norma competente, em harmonia com as disposições de nosso ordenamento jurídico: Emenda Constitucional".7
Outros defendem que, mesmo após o advento da analisada emenda, as importações realizadas por não contribuintes do ICMS continuam inalcançáveis por este imposto, uma vez que a alteração apenas teria alcançado o aspecto material do imposto, de sorte a incidir também sobre outros bens importado pelos contribuintes (os comerciantes) e não apenas sobre mercadorias.8
De nossa parte, ousamos ir além e, com base nos fundamentos ora elencados, proclamar a inconstitucionalidade da própria Emenda nº 33/01, na parte em que tratou do tema objeto das presentes considerações.
Com efeito, se é certo - como estamos convencidos - de que a referida emenda leva à instituição de um verdadeiro "imposto estadual sobre a importação de produtos estrangeiros", então parece inexorável o extravasamento de competência por ela perpetrado.
A discriminação dos impostos possíveis de serem cobrados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios é atributo próprio e exclusivo, a nosso ver, do constituinte originário, que, assim, exauriu-se com a promulgação da Constituição de 1988, já que diz respeito diretamente aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes, protegidos pelo art. 60, § 4º, IV.
Claro está que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem ser contemplados, por emenda constitucional, com competência para instituir novos impostos. Há, porém, uma inafastável limitação: estes novos impostos somente poderão resultar da diminuição do campo da "competência residual" reservado à União.9
Dito de outro modo, apenas impostos não discriminados na Constituição é que poderão ser objetos da citada contemplação. Quanto aos que o são, ou seja, aqueles a que aludem os artigos 153, 155 e 156 da Carta, a impossibilidade de serem simultaneamente entregues à competência de outro ente federativo, que não os indicados nestes preceitos, é, segundo nos parece, incontornável.
O entendimento contrário leva a admitir-se a possibilidade de serem instituídos, por emenda constitucional, impostos dos mais extravagantes, como o "IPTU federal", o "IPVA municipal", o "IR estadual" e assim por diante. O único "cuidado" que, então, caberia ao constituinte derivado observar, seria o de escolher a sigla "certa" para "batizar" estas bizarras exações (denominar o "IPTU federal" de "imposto sobre a renda"; o "IPVA municipal" de "imposto sobre serviços"; o "IR estadual" de "imposto sobre transmissão causa mortis de bens e direitos"). Feito isto, o caos poderia ser implantado sem maiores embaraços...
Ora, voltando os olhos para o caso concreto, parece claro - como já nos esforçamos em demonstrar - que, embora rotulado de ICMS, o imposto resultante da nova redação dada ao art. 155, § 2º, IX, "a", da Constituição pela EC nº 33/01, corresponde, em tudo e por tudo, ao imposto federal sobre a importação de produtos estrangeiros. E é esta nítida equivalência substancial que retira a legitimidade da emenda.
Perpetra-se, no caso, manifesta bitributação, quando é certo que tal fenômeno somente é admissível nos casos em que o constituinte originário houve por bem deliberar.10
Ele não remanesce, pois, dentro do feixe de competências outorgado ao constituinte derivado, já que se trata de matéria - repetimos - que guarda visceral relação com a garantia de intangibilidade dos direitos fundamentais dos contribuintes, sendo, por isso, "cláusula pétrea".
3 - A questão da base de cálculo
Sem prejuízo das considerações até aqui desenvolvidas, somos levados a estender, um pouco mais, nossas reflexões, admitindo a hipótese de que a tese por nós defendida possa não prevalecer, em razão do que se confirmaria a higidez das bases constitucionais ensejadoras da instituição, pelos Estados, de impostos sobre importações de bens realizadas por não contribuintes.
Neste caso, qual seria a base de cálculo a ser considerada?
A resposta a esta indagação leva-nos, novamente, ao exame da EC nº 33/01, agora na parte em que acrescentou uma alínea "i" ao art. 155, § 2º, XII da Constituição.
Em conseqüência deste acréscimo, ficou estabelecido que a base de cálculo do ICMS (ou de "outro" tributo albergado em tal sigla) será fixada por lei complementar, "de modo que o montante do imposto a integre, também na importação de bem, mercadorias ou serviço".
Ocorre-nos, a propósito, evocar as preciosas lições de Alfredo Augusto Becker e Geraldo Ataliba que, destacando a singular importância da base de cálculo (base imponível) demonstram que nela repousa o verdadeiro núcleo da hipótese de incidência dos tributos.
E, com efeito, a base de cálculo é a verdadeira "prova real" a confirmar se a hipótese de incidência descrita pelo legislador está conforme os limites da competência tributária que lhe foi outorgada pela Constituição.
Pois bem, à luz do autorizadíssimo magistério de tão insuperáveis mestres, sentimo-nos à vontade para sustentar que, ao determinar que o valor do imposto integre a sua própria base de cálculo, a EC nº 33/01, acabou por franquear aos Estados a criação de um imposto que não incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias, nem sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, nem, tampouco, sobre a importação do exterior de bem ou mercadoria.
Em realidade, a verdadeira hipótese de incidência deste "novo" imposto, tal como revelada pela redação que a EC nº 33/01 deu ao art. 155, § 2º, XII, "i", da Constituição, pode ser assim formulada: "pagar imposto em razão da realização de operações relativas à circulação de mercadorias, ou da prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, ou, ainda, da importação do exterior, de bem ou mercadoria".
Um imposto, como se vê, fundamentado no fato econômico de "pagar imposto". Uma inusitada revelação de capacidade contributiva.
É o caso de indagar se tão exótica quanto singular modalidade de exação poderia estar compreendida na competência residual, suscetível de ser transferida aos Estados por redução do campo de incidência originariamente pertencente à União.
Deixemos a resposta a cargo de quem se disponha à dá-la.
4 - Conclusões
Resumindo e sintetizando as idéias aqui desenvolvidas, podemos assentar que:
a) a EC nº 33/01, a pretexto de satisfazer a pretensão arrecadatória dos Estados, bem como os interesses de certos setores empresariais, acabou possibilitando a criação de um imposto que, substancialmente equivale, em tudo e por tudo, ao imposto federal sobre a importação de produtos estrangeiros;
b) a competência outorgada ao Congresso Nacional para introduzir emendas à Constituição não vai ao ponto de permitir-lhe a criação de figuras tributárias que padecem do defeito da bitributação, como ocorre no caso concreto;
c) logo, mostra-se claramente inconstitucional a incidência do imposto sobre a "entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade";
d) como se não bastasse, a nova redação dada pela EC nº 33/01 ao art. 155, § 2º, XII, "i" da Constituição, leva à criação de anômala figura tributária, que tem como hipótese de incidência o próprio fato econômico de alguém "pagar imposto" sobre operações ou prestações de serviços que venham a praticar.
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1. "As Inconstitucionalidades da Contribuição Interventiva Instituída pela Lei nº 10.336/01" - no prelo. 2. Esclarecemos nos parênteses. 3. Recurso Extraordinário nº 203.075-DF, Relator Ministro Maurício Corrêa, j. 05.08.98. 4. Grifamos. 5. Constituição Federal, art. 155, § 2º, I. 6. "O ICMS na Importação de Bens por Não Contribuintes", Repertório IOB de Jurisprudência, nº 5/2002, Caderno 1, p. 168. 7. Marcelo Magalhães Peixoto, "Breves Comentários sobre a Nova Redação do Art. 155, § 2º, IX, "A", da Constituição Federal Introduzido pela Emenda Constitucional nº 33/01 - Relativo à Importação", Repertório IOB de Jurisprudência, nº 5/2002, Caderno 1, p. 161. 8. Renata Soares Leal Ferrarezi, op. cit., p. 165. 9. Cf. art. 154, I, da CF. 10. A simultânea tributação, federal e estadual, das importações de mercadorias promovidas por comerciantes bem exemplifica a bitributação "consentida".________________
*escritório Bottalo e Gennari advogados. Mestre e Doutor em Direito Tributário - Professor da área de Direito Público das Faculdades de Direito da USP - Coordenador do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo - Ex- Juiz - Jurista do TRE-SP.
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