Variações sobre a verdade
No âmbito da Teoria do Conhecimento não há assunto mais complexo do que o da verdade, desafio perene às pesquisas de filósofos, cientistas, políticos e economistas, sem exclusão, é claro, dos que se dedicam às artes.
segunda-feira, 17 de março de 2003
Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49
Variações sobre a verdade
Prof. Miguel Reale
No âmbito da Gnoseologia ou Teoria do Conhecimento não há assunto mais complexo do que o da verdade, desafio perene às pesquisas de filósofos, cientistas, políticos e economistas, sem exclusão, é claro, dos que se dedicam às artes.
A começar pela Filosofia da Religião, procura o homem, desde tempos imemoriais, o fundamento último da verdade compreendida como identificação com os deuses, vistos e respeitados como valores transcendentes que se impõem inexoravelmente aos crentes, aos quais não resta senão se conformar com os mandamentos divinos. Na história do pensamento humano, foi multimilenar o processo intuitivo-intelectual que acabou afirmando a existência de um deus único, base primeira e última de tudo o que se consegue saber. A essa luz, a verdade não se põe como uma explicação ou resposta a infinitos problemas, mas, sim, como subordinação à vontade divina, com a qual a verdade se identifica, representando um ato de pura e simples aceitação de algo revelado por um ente absoluto inacessível aos poderes da razão.
Pode-se dizer que, sob o ponto de vista filosófico, a história do conhecimento humano se reduz a uma nunca acabada procura da verdade que se põe e se impõe nas infinitas circunstâncias que condicionam a existência do ser humano sobre a face da Terra.
Na Filosofia Moderna prevalece a idéia de que a verdade resulta da própria razão humana, sendo sempre plural, de conformidade com os infinitos objetos de perquirição. Não haveria, em suma, uma única verdade, em si e de per si, mas uma multiplicidade de verdades, cuja totalidade se confunde com o que denominamos cultura, empregando-se esta palavra não como aprimoramento do intelecto para crescente cognição dos valores que vão sendo descobertos, mas sim como o conjunto unitário de tudo o que o homem conhece e realiza através da história, ou do decurso das civilizações.
Há, desse modo, uma verdade para o matemático, situada no plano ideal e formal do pensamento, e uma verdade para o cultor das chamadas ciências positivas, baseadas na experiência e sua contrasteação, assim como é distinta a verdade objeto de indagação das ciências humanas, cujo fulcro é dado pela idéia de valor.
Isto posto, já podemos afirmar que verdades há que se referem ao ser (ser ideal estudado pelos lógicos e matemáticos; e ser real, de que cuidam a Física e demais ciências experienciais), enquanto que outras são concernentes ao dever ser, ou valores existenciais, tais como se dá com as já lembradas ciências humanas, que Hegel denomina "ciências do espírito".
Ora, a cada uma dessas "esferas de objetos" correspondem distintos critérios de verdade. Assim é que para os objetos ideais da Lógica e da Matemática, como, por exemplo, uma conferência ou um cálculo, a verdade é puramente formal, expressando posições do pensamento abstrato. As figuras geométricas não estão vinculadas a qualquer duração temporal: elas são como formas do pensamento como tal, em si e por si, sendo dotadas de propriedades exatas, independentemente da experiência.
Nas ciências positivas, como a Física ou a Química, ao contrário, a verdade está sempre em correlação com a experiência, de conformidade com o princípio de causalidade, a cuja luz determinados efeitos se ligam a determinados fatos naturais, permitindo o estabelecimento de leis objeto de verificação experimental.
Já nas ciências humanas há a interferência de um terceiro elemento ou fator - além do pensamento e dos fatos naturais -, que são os valores que elas expressam segundo uma outra espécie de causalidade, que Husserl denomina "causalidade motivacional". Os valores não pertencem ao mundo do Ser (Sein) ou seja, do ser ideal ou do ser natural - próprios, respectivamente, das ciências lógico-matemáticas e das ciências experimentais -, mas sim ao mundo do dever ser (Sollen). Uma estátua, por exemplo, não constitui apenas uma realidade que pode ser de mármore ou de bronze, pois ela vale principalmente como expressão de beleza ou de utilidade ornamental ou histórica.
Pensadores há, como Max Scheler e Nicolai Hartimann, que qualificam os valores como objetos ideais, mas eu penso ter demonstrado que os valores têm qualidades que os objetos ideais não possuem, tais como a sua contraposição (um objeto belo se contrapõe aos que não o são) e a sua realizabilidade, visto como, se um valor jamais se realizasse, seria uma quimera.
Pois bem, essa compreensão do valor como expressão do dever ser o distingue dos objetos ideais, constituindo uma das razões pelas quais a Axiologia (teoria dos valores) compõe uma entidade a se, não podendo mais ser considerada parte da Metafísica, ou doutrina do "ser em si", ou Absoluto.
Nessa ordem de idéias, cabe reconhecer que o advento da Axiologia como ciência autônoma, a cavaleiro dos séculos 19 e 20, abriu campo a uma outra modalidade de verdades, que são as das ciências culturais, ou, por melhor dizer, das ciências histórico-culturais, que são verdades motivacionais. Não digo que, antes da época ora lembrada, não tenha havido conhecimento de valores (Dante já se referia a Deus como il più alto valore), mas eles eram considerados qualidades do bem, fundamento da Ética, ou, então, do ser em suas várias dimensões.
Reconhecida a autonomia das pesquisas axiológicas ou valorativas, é toda uma nova fase da Hermenêutica ou Teoria da Interpretação que surge, consoante foi demonstrado por Hans Georg Gadamer, que jamais deixou de se referir aos estudos pioneiros de Emilio Betti no campo da Ciência do Direito, depois estendidos à interpretação em geral.
Ora, se o critério da verdade nas ciências lógico-matemáticas é a exatidão, e nas ciências ditas positivas é a verificação experimental, na Axiologia é a adequação aos valores em sua realizabilidade, predominando, no que toca ao valor do belo, o sentido da imagem criadora, seja ela colimada por um poeta, por um pensador, por um escultor ou por um pintor.
Finalmente, cumpre distinguir, no concernente às ciências do espírito, que algumas se limitam a revelar as relações valorativas, tal como o fazem a História, a Sociologia e a Antropologia Física, enquanto que outras se elevam ao plano da normatividade, isto é, da prescrição das regras de conduta, como se dá com a Ética, a Moral e o Direito. Este é por mim visto como uma estrutura normativa resultante da incidência do valor de justiça sobre os fatos que compõem a convivência humana.
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