STF e Cidadania
O modo de designar Ministros é dos mais lamentáveis, a pretexto de imitar o modo norte-americano (que, tudo indica, não guarda nenhum objetivo nobre, e também não dá certo, como sonha a nossa vã ciência política).
quinta-feira, 13 de março de 2003
Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49
STF e Cidadania
Alfredo Attié Jr.*
Vivemos os primeiros momentos do Novo Governo brasileiro. O mote da campanha presidencial foi a esperança, que vencesse o medo.
Medo e esperança são gêmeos, formam um par de paixões, que se contradizem e se completam. Parecem querer dizer a mesma coisa, porque têm origem comum: seu parto é a insegurança, o sentimento de crise. Mas se opõem, porque interpretam de modo diverso não apenas a situação de incerteza em que surgem, mas sobretudo o futuro de tal situação. Têm assim projetos diferentes.
O projeto do medo tolhe, emperra, desiste. Para ele, todas as projeções são ruins, sua racionalidade impede que se enxergue qualquer saída, que se faça qualquer movimento. Obriga a que se olhe com reverência para o passado, para a tradição, que se veja as situações como determinadas, condicionadas pelo que foi e o que foi é ruim, não há como escapar do destino.
O projeto da esperança impele, avança, prossegue. Para ele, as projeções não são ruins ou boas, porque ele sabe que nem tudo é absoluta racionalidade. Ele enxerga muitas saídas, ele quer experimentar, quer errar - errar, como se sabe, é sinônimo de caminhar. E caminho é movimento, a vida é movimento. Só erra quem caminha. Quem fica parado não erra, porque não tem vida. O projeto da esperança, então, vê o passado, mas não como determinante. As condições do passado são apenas condições, vários "se", assim como o futuro também são várias condições.
A esperança sabe que é preciso construir, mas sobretudo inventar.
Mas este artigo leitor, leitora, é sobre o STF, o nosso Supremo Tribunal Federal. E eu gostaria de falar-lhes de nossa triste tradição e do futuro que podemos inventar e construir juntos. Assim como um clamor de esperança de nós mesmos e um desafio dirigido a nosso sentimento de cidadania e aos nossos Novos Governantes, nos quais depositamos nossa esperança.
Entre as tantas notícias que temos lido e ouvido, há um bocado de cogitações de nomes para o STF - gente querendo ir, outros querendo apoiar, outros refletir, outros experimentar, outros provocar, ainda os que fazem sua campanha, aberta ou dissimulada, etc, etc. Não gostaria de estragar o baile de ninguém, de frustrar os projetos de quem quer que seja. O que considero adequado, repito, para o momento novo e de esperança que vivemos, é fazer um contraponto, em nome da Cidadania.
Não sei se é tão óbvio quanto penso ou se perceberam, mas a campanha que fazem se dirige somente a uma pessoa - naturalmente, a que ocupa a Presidência da República - e isto, tudo indica, contraria o Princípio Democrático e a própria idéia de República.
Isto ocorre, quer me parecer, porque tal princípio e tal idéia não têm sido, desde sempre, levados a sério em nosso País quando se trata de os relacionar com o desconhecido e maltratado Poder Judiciário.
Eis o ponto, acredito que o Judiciário não pode continuar a ser maltratado. Sim, maltratado não apenas pela teoria (constitucional), mas sobretudo pela prática (republicana?) também a brasileira.
Vamos restringir nossa conversa inicial ao STF. E enfrentemos desde logo a questão. O modo de designar Ministros é dos mais lamentáveis, a pretexto de imitar o modo norte-americano (que, tudo indica, não guarda nenhum objetivo nobre, e também não dá certo, como sonha a nossa vã ciência política).
As indicações de nossos Presidentes não tomam nenhum cuidado e somente guardam a intenção de amealhar aliados e guardar alianças. Não há critério e é mesmo engraçado que, de quando em quando, a imprensa fale, seguindo cegamente uma justificativa das mais simuladas, em contentar este ou aquele Estado ou Região, esta ou aquela categoria. São justificativas postas após o fato da escolha, mas não condizem com uma condição essencial, absolutamente ausente no caso brasileiro: falta legitimidade democrática ao STF. E isto macula o Poder Judiciário como um todo, pois o STF é concebido (muito mal, lamentavelmente) não só como Tribunal Constitucional, mas como ápice do poder judicial. Acaba exercendo de modo deficiente as duas funções.
Acredito que não haja nenhum respeito pela ciência jurídica, mas, o mais importante, não há respeito mesmo pelos interesses da sociedade brasileira, o que é grave.
O Judiciário segue sendo um poder desprezado pela teoria e pela prática constitucionais.
O importante agora, para os novos tempos que esperamos, não é saber quem merece ir para o Supremo, muito menos buscar reprisar a política das alianças e dos aliados, mas pensar efetivamente quais interesses da sociedade têm de ser valorizados e construídos por meio do poder Judiciário.
E ouso afirmar que existem sinais evidentes daquilo que a sociedade brasileira quer e eu defino como uma opção concreta pela construção dos direitos fundamentais ou humanos e sua eficácia plena. E isto implica não apenas em Autonomia, mas sobretudo em Participação.
Isto é, quem a sociedade brasileira, nós, os brasileiros, o povo brasileiro, merecemos ver no STF. Que Judiciário eficientemente nos serve. Qual o desenho novo que podemos esboçar juntos.
Para mim, parece ser isto o que deve ser atendido, quando se pensa na oportunidade de renovar o STF e o Judiciário (por meio da reforma).
Isto não é assunto só de juristas e não há fórmulas mágicas. Acredito que o único modo de corresponder a tais anseios é iniciar um processo de participação popular na escolha dos Ministros e fazer estabelecer modos de participação também nos Tribunais, além de outras tantas mudanças - entre as quais o controle externo e democrático, com certeza.
É o desafio para o Governo do Presidente Lula: pôr de lado o modo como as coisas ocorreram na triste história republicana brasileira e iniciar um novo modo. Fazer do Judiciário um poder verdadeiramente legítimo, na prática e na teoria democrático.
Vou citar alguns exemplos e oferecer uma proposta. Seu objetivo essencial é fazer de nosso Judiciário, começando pela Corte Constitucional ou Suprema, o STF, um poder condizente com a prática democrática implantada, desde o após guerra - como referem os bons constitucionalistas contemporâneos.
Esta prática implica (e implicou para os países europeus, sobretudo, desde a onda de redemocratização que, em passado recente, varreu o mundo e da qual parecemos estar esquecidos, nestes tempos de disputa pela hegemonia internacional plena) aquilo que dois professores muito queridos - com os quais tive a oportunidade e a satisfação de conviver, em minha estada na Universidade de Coimbra -, na legitimação democrática dos juízes, porque a jurisdição constitucional passou a ser considerada como elemento necessário da própria definição de Estado de direito democrático. Exige-se a transparência política, por meio de órgãos democraticamente legitimados, embora com cunho político indiscutível, evitando-se prosseguir na cegueira de um (mal) disfarçado e apenas aparente apartidarismo institucional: a questão fundamental está no modo de escolha dos Ministros, pois, conclui Gomes Canotilho, reforçando a posição de Vital Moreira, "o equilíbrio e a independência dos órgãos de soberania terá de encontrar expressão adequada na composição do órgão considerado como o arco de volta da estrutura organizatória da constituição".
Primeiro caso, o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal): é composto de dois Senate (Turmas), cada um composto por oito magistrados (portanto são dezesseis Ministros no total, que se reúnem no Plenum). Cada Senat se divide em Kammer (Câmaras) de três magistrados cada. A escolha dos magistrados é feita metade pelo Bundesrat - Câmara Federal - (eleição direta) e metade pelo Bundestag - Parlamento Federal - (eleição indireta), sendo que seis (três de cada Senat) são escolhidos entre os membros dos tribunais superiores federais. Existem limites de idade e exigências quanto à capacidade para ser eleito, assim como impedimentos absolutos. Importantíssimo: os Ministros têm mandato por tempo limitado e não podem, em nenhuma hipótese, ser reconduzidos. O tempo do mandato atualmente é de doze anos.
Como vêem, é uma fórmula que permite a participação popular, mesmo que de modo indireto. O fundamental para mim é lembrar que a experiência alemã permitiu o acesso ao Tribunal Constitucional Federal de juristas de primeira qualidade, bem como permitiu que o BVerfGE tivesse desenvolvido uma jurisprudência de primeira grandeza, sobretudo na construção dos direitos fundamentais e dos princípios de direito constitucional. É claro que não se pode transplantar um modelo nem qualquer experiência, mas é preciso aproveitar o trabalho que se desenvolveu em democracias sólidas (e observem que recentes) e fomentar uma discussão e melhorar e muito o nosso modelo. A experiência, é bom salientar, exige um sistema de representação parlamentar menos distorcido do que o nosso atual.
Caso segundo: pondo de lado algumas questões muito específicas e de detalhe, o modelo italiano é de conferência de legitimidade mista ao Tribunal Constitucional. Assim, dos quinze magistrados (ditos ordinarios, i.e., titulares), um terço é escolhido pelos tribunais superiores da República, o terço seguinte é escolhido pelo Parlamento, o último é escolhido pelo Presidente, com a aprovação do Presidente do Conselho de Ministros. Para a escolha, contudo, há requisitos, dentre os quais relevam: deve recair sobre magistrados das jurisdições (tribunais) superiores, professores titulares de disciplinas jurídicas de Universidades e advogados com mais de vinte anos de exercício profissional. No mais são os requisitos exigidos para ser Senador, na Itália.
Novamente, aqui, os Magistrados recebem mandato com termo: doze anos, sem possibilidade de reeleição sucessiva. Se a parte maior das designações pertence aos órgãos de governo, preserva-se a participação da magistratura, por meio do terço que nomeia, bem como do monopólio relativo às profissões jurídicas.
Já no terceiro caso (há outros, que pretendo discutir em momento posterior), o português, o modelo também é de puro tribunal de juristas (reines Juristengericht): dos treze Ministros, todos escolhidos pela Assembléia da República, o parlamento português, seis advêm dos tribunais superiores e sete, portanto a maioria, são escolhidos entre juristas. O mandato é de nove anos, sem possibilidade de reeleição.
Muito bem, vamos concluir. A proposta que prometi ofereço no próximo artigo - isto se leitores e leitoras quiserem ser reincidentes em acompanhar minhas reflexões1. Nada como suscitar a discussão, de modo provocativo mas construtivo, e que seja democrática.
Acredito que a chance de renovação esteja na implantação pelo governo Lula de um desenho diverso da Justiça.
___________
1. Se desejarem conhecer as reflexões que venho empreendendo há bom tempo, sugiro a leitura de três artigos que publiquei nos Cadernos de Direito Constitucional e Eleitoral (números 19, 26 e 28: "Direito Constitucional como processo", "Corporativismo estatal e societal", "Para uma redefinição do poder e seu controle") e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bem como minhas intervenções no seminário do IDESP, coordenado pela prof. M Tereza Sadek, sobre o Poder Judiciário, bem como no Seminário sobre o Princípio da Proporcionalidade, a ser publicado pela RT, ainda este ano. Discuti o assunto na Associação Juízes para a Democracia, e no universo acadêmico, podendo-se consultar meus programas nas disciplinas que lecionei na USP, na década de 80 e, mais recentemente, na pós-graduação da PUC, em Filosofia do Direito. Mas saliento, de modo muito especial, em face da elevada importância do MIGALHAS e da gentileza e seriedade dos que o constituíram, sob a battuta elegante do doutor Miguel Matos, o artigo que está em Catadas a dedo, sob o título "John Rawls, filósofo da justiça". No mais, entre textos essenciais para a construção da democracia brasileira, saliento aqueles de Fábio Comparato - cuja proposta de legitimação das ONG para a ação de inconstitucionalidade sublinha, acredito, aquela que fiz no artigo "Corporativismo estatal e societal", p. 52 -, Renato Janine Ribeiro e José Murilo de Carvalho.
________
__________________________________