27.950 casos de abuso investigados e provados num Estado americano em 2004
O escriba migalheiro adotou esse pensamento, recentemente manifestado, na sua investidura, pelo Papa Joseph Ratzinger quando verberou a ditadura do relativismo, incorporada ao mundo contemporâneo.
terça-feira, 24 de maio de 2005
Atualizado em 23 de maio de 2005 11:11
27.950 casos de abuso investigados e provados num Estado americano em 2004
"Os desertos exteriores se multiplicam no mundo porque os desertos interiores se tornaram tão amplos".
Papa Bento XVI
O escriba migalheiro adotou esse pensamento, recentemente manifestado, na sua investidura, pelo Papa Joseph Ratzinger quando verberou a ditadura do relativismo, incorporada ao mundo contemporâneo. O relativismo reconhece nada como definitivo e que só deixa como última medida o próprio eu e suas vontades.
Permitam-me uma pausa. No início do mês de abril, saindo do hotel, à tardinha para um passeio, detive-me diante da iluminada 4ª Igreja Presbiteriana de Chicago. A arquitetura, herdada das semelhantes inglesas, aponta para o alto, para o céu. É uma igreja tradicional, contando com mais de 5.000 membros. Convida a orar, incita à reflexão, ao perpassarmos as suas pesadas portas. Não é por menos que é conhecida como "uma luz na cidade". A metáfora calha bem aos que buscam, na sua nave, encontrar a paz interior.
Pois parte dos seus dirigentes e congregados tomaram a saudável iniciativa de alertar para os escandalosos números ocorridos na cidade de Chicago e no Estado de Illinois referentes ao abuso infantil: investigados e comprovados, em 2004, 27.950 casos.
Espanta, sim; aterroriza, sim; revolta, sim.
Por que?
O abuso, assim como a negligência, que seguem quase sempre paralelos, produzem conseqüências a longo prazo, como ocasionam às crianças correrem riscos maiores com problemas maiores, a longo prazo.
Não há referência: tanto meninos como meninas são passivos dos atos de abuso.
Estatisticamente comprovado, por informações que obtive na Illinois State Bar Association, à qual orgulho-me de pertencer, que, em âmbito nacional, 50% das crianças ofendidas são brancas, 25% são african american e 15% são hispânicas.
De cinco, quatro crianças vítimas de abuso são efetivamente abusadas por um genitor, em sua própria casa.
O serviço gratuito de denúncias de abuso infantil (hotline) recebe, aproximadamente, 1.000 chamadas a cada 24 horas.
Comprovado: há quatro tipos de ofensas que se repetem com maior freqüência: abuso físico, abuso sexual, abuso emocional e abandono ou negligência de menores.
A sociedade organizou-se, trabalha com afinco para reduzir essa chaga social, contando com as autoridades, constituídas numa permanente ofensiva contra esses atos que, pensando bem, põem em risco o futuro da nação americana.
É preciso dar o relevo indispensável a esse trabalho comunitário, que também lá não é brindado com verbas milionárias, mas a vontade férrea de reduzir a fratura social que se alarga com essas ocorrências.
O Estado conta, integradas ao resto do país, quatro instituições por hotline, a saber: State of Illinois Department of Children and Family Services, National Department of Children and Family Services, Childhelp e National Center for Missing and Exploited Children.
Insuficientes essas iniciativas, há vários serviços integrados, (Estado e Federação) para apoiar as famílias, os pais, sem distinção.
Integrados aos hotlines e aos grupos de apoio, existem organizações públicas e privadas, locais, estaduais e nacionais. Nesse espectro, há a participação fecunda e atuante dos advogados e dos médicos.
Como o número de ocorrências, em todo o território continental, chega a dois milhões por ano, o trabalho de prevenção é o caminho mais seguro para descobrir o abuso já concretizado. O melhor ou mais eficiente caminho tem sido a detectação de sinais de ofensas físicas ou distúrbios de comportamento: as crianças do entorno hão de merecer atenção em primeiro lugar. A atenção preventiva, sem paranóias, com desassombro, pode ser a via que salvará uma criança.
Quais os sinais de provável abuso de uma criança?
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Nervosismo em torno de adultos ou medo de determinados adultos.
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Relutância em retornar ao lar.
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Tendências de comportamento passivo e evasivo ou agressivo ou disruptivo.
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Queixas de pesadelos ou noites não bem dormidas.
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Fugir de casa.
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Agir de forma imatura ou madura, fora dos limites da idade.
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Falta de ligação emocional com pessoas que cuidam dela.
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Demoras ou retardamentos no desenvolvimento físico ou emocional.
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Falta de supervisão da criança de acordo com sua idade.
Quais são os possíveis sinais de cuidado abusivo1?
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Pouco interesse para o bem-estar da criança.
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Freqüentes insultos ou atribuição de culpa à criança.
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Queixas de que a criança é um estorvo.
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Comportamento reclusivo, isolando a criança de outras.
Alguns são tipos de comportamento sempre reconhecidos como abuso de criança.
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Exposição dela à violência doméstica.
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Desinteresse e falta de atenção.
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Crítica constante e rejeição.
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Exposição da criança a matérias com apelo sexual, sobretudo a pornografia.
Essas observações, recolhidas e coletadas em material de propaganda distribuído na mencionada Igreja, como em fontes geradas pela Illinois State Bar Association, apontam que é tarefa da sociedade a prevenção e repressão dos abusos contra as crianças. Há, todavia, uma dose forte de cinismo e hipocrisia, em não se considerarem abuso de criança alguns dos fatos mencionados no item 6, pondo em questão se as medidas anteriores são fruto de amor ou meros escapes sociais para não se criarem mais psicopatas na sociedade.
Traçados esses caminhos da humanidade, conduzidas as pessoas que foram pela patologia que a assola, faz-se necessária uma merecida pausa, para a indispensável reflexão: o mundo em que vivemos, aliás, é o único. A época, em que estamos transcorrendo nossa existência, sobre ser intrigante, reforça a ditadura do relativismo, que é o seu modelo humanista. É o que tentaremos esquadrinhar.
A pausa é o reconforto que se dá àquele que almeja cogitar sobre um tema de realce e que possa interessar aos que rodeiam ou aquele a quem se dirige, num propositado diálogo.
E o escriba buscou em Drummond, numa sonora poesia, rica de conteúdo e de idéias, algumas estrofes do "Alceu, Radiante Espelho".
Este Alceu é um personagem drummoniano, mas, antes de qualquer coisa, "... e lá se vai Alceu, servo de Deus, servo do amor, que é cúmplice de Deus". Tirada da série "Convívio Ideal", reflete o autor sempre sobre Alceu:
"Seu claro riso e humana compreensão e universal doçura
Revelam que pensar não é triste.
Pensar é exercício de alegria
Entre veredas de erro, cordilheiras de dúvida,
Oceanos de perplexidade.
Pensar, ele o provou, abrange todos os contrastes
Como blocos de vida que é preciso polir e facetar
Para a criação da pura imagem:
O ser restituído de si mesmo,
Contingência em busca da transcendência2".
A interação do poeta com o personagem é onde a série de poesias repousa na convivência ideal. Conviver é viver com alguém. E fazê-lo idealmente não é no plano das idéias, mas no concreto, com o sentido do que ardentemente se deseja: o Nirvana. Mas Alceu, que entrelaça o outro ideal é, sendo servo de Deus, também do amor, cúmplice Dele, porque é sempre, eternamente, amor.
Pensar, amar, alegria, dúvidas, perplexidade, contingência, transcendência, restituir-se a si mesmo, criação de pura imagem, tudo se vincula e se intercala ao tema deste artigo. Não há amor que se dê à criança, se não se criou à imagem própria o ser, ao qual se vincula, restituindo-se a própria dignidade. E, quando não se é cúmplice de deus, como Alceu, não se ama, sobretudo as crianças.
O Estado de Illinois, através do seu legislativo, criou, dentro dos seus Statutes, uma lei que foi promulgada e passou a ser conhecida como "(325ILC5) Abused and Neglected Child Reporting Act".
É um texto enfadonho, repetitivo, entrelaçado dos mesmos conceitos, mas abrangente. Ocupa trinta e uma páginas, no tamanho ofício, da Seção Legislativa da Illinois Bar.
Para fazer frente ao crescente abuso, como se viu, o legislador foi pródigo em definir, conceituar, elencar, precisar, como o objetivo de dar a maior abrangência possível e não se deixar de detectar, prevenir, amparar e reprimir os abusos.
A finalidade, nesse estágio do artigo, é lançar alguns tópicos da 325ILC5, que possam interessar aos leitores e incitá-los a ingressar no frutuoso campo do direito comparado.
A Seção 2 é longa, num período gramatical, que tenta abranger:
a. a proteção da saúde, segurança e melhores interesses da criança que sofreu abuso "em todas as situações na qual a criança é vulnerável ao abuso infantil ou negligenciada", de sorte que se lhe ofereçam serviços de proteção para prevenir qualquer outra repetição;
b. essa proteção é extensiva ao ambiente familiar ou àquele em que viva, com a finalidade de resguardar o ambiente e estabilizar a vida em família, e
c. essa proteção se amplia, porque é necessária, aos outros locais em que a criança permaneça, de forma permanente ou não, públicos ou privados.
Na Seção 2.1, a proteção e os serviços também são oferecidos a quem buscar os órgãos próprios, em benefício das crianças.
Na seção 3, aparecem as definições dos termos que serão usados no Act e que serão destacados, apenas alguns, para informação dos leitores:
"Child" means any person under the age of 18 years, unless legally emancipated by reason of marriage or entry into a branch of the United States armed services.
"Department" means Department of Children and Family Services.
"Abused child" means a child whose parent or immediate family member, or any person responsible for the child's welfare, or any individual residing in the same home as the child, or a paramour of the child's parent:(a) inflicts, causes to be inflicted, or allows to be inflicted upon such child physical injury, by other than accidental means, which causes death, disfigurement, impairment of physical or emotional health, or loss or impairment of any bodily function;
(b) creates a substantial risk of physical injury to such child by other than accidental means which would be likely to cause death, disfigurement, impairment of physical or emotional health, or loss or impairment of any bodily function;
(c) commits or allows to be committed any sex offense against such child, as such sex offenses are defined in the Criminal Code of 1961, as amended, and extending those definitions of sex offenses to include children under 18 years of age;
(d) commits or allows to be committed an act or acts of torture upon such child;
(e) inflicts excessive corporal punishment;
(f) commits or allows to be committed the offense of female genital mutilation, as defined in Section 12-34 of the Criminal Code of 1961, against the child; or
(g) causes to be sold, transferred, distributed, or given to such child under 18 years of age, a controlled substance as defined in Section 102 of the Illinois Controlled Substances Act in violation of Article IV of the Illinois Controlled Substances Act, except for controlled substances that are prescribed in accordance with Article III of the Illinois Controlled Substances Act and are dispensed to such child in a manner that substantially complies with the prescription."Neglected child" means any child who is not receiving the proper or necessary nourishment or medically indicated treatment including food or care not provided solely on the basis of the present or anticipated mental or physical impairment as determined by a physician acting alone or in consultation with other physicians or otherwise is not receiving the proper or necessary support or medical or other remedial care recognized under State law as necessary for a child's well-being, or other care necessary for his or her well-being, including adequate food, clothing and shelter; or who is abandoned by his or her parents or other person responsible for the child's welfare without a proper plan of care; or who is a newborn infant whose blood, urine, or meconium contains any amount of a controlled substance as defined in subsection (f) of Section 102 of the Illinois Controlled Substances Act or a metabolite thereof, with the exception of a controlled substance or metabolite thereof whose presence in the newborn infant is the result of medical treatment administered to the mother or the newborn infant. A child shall not be considered neglected for the sole reason that the child's parent or other person responsible for his or her welfare has left the child in the care of an adult relative for any period of time.
"Person responsible for the child's welfare" means the child's parent; guardian; foster parent; relative caregiver; any person responsible for the child's welfare in a public or private residential agency or institution; any person responsible for the child's welfare within a public or private profit or not for profit child care facility; or any other person responsible for the child's welfare at the time of the alleged abuse or neglect, or any person who came to know the child through an official capacity or position of trust, including but not limited to health care professionals, educational personnel, recreational supervisors, members of the clergy, and volunteers or support personnel in any setting where children may be subject to abuse or neglect.
"An unfounded report" means any report made under this Act for which it is determined after an investigation that no credible evidence of abuse or neglect exists.
"An indicated report" means a report made under this Act if an investigation determines that credible evidence of the alleged abuse or neglect exists.
"An undetermined report" means any report made under this Act in which it was not possible to initiate or complete an investigation on the basis of information provided to the Department.
"Subject of report" means any child reported to the central register of child abuse and neglect established under Section 7.7 of this Act and his or her parent, guardian or other person responsible who is also named in the report.
"Perpetrator" means a person who, as a result of investigation, has been determined by the Department to have caused child abuse or neglect.
"Member of the clergy" means a clergyman or practitioner of any religious denomination accredited by the religious body to which he or she belongs.
Na Seção 4, há uma extensiva lista das pessoas que devem reportar os abusos, porém, tomando o cuidado para não oferecerem falsas denúncias, o que no Act é longamente tratado.
Aliás, nas Seções seguintes, criam-se meios e métodos para que exista harmonia nas atitudes e nos mecanismos criados, inclusive, com sofisticado Departamento de Estatísticas, atualizadas diariamente, que mostram o grande interesse com que a sociedade cuida dessa patologia. Enfim, estamos diante de uma malaise, produzida pela exacerbação sexual e pela necessidade de se consumir, sempre, tudo que der, a qualquer custo, com a desagregada família em baila.
Encerro, lamentando não poder dar os acessos à vasta literatura que obtive na Illinois State Bar Association, que é permitida somente aos associados.
Notas bibligráficas
1 Essa expressão "abusivo cuidado", traduzida literalmente do inglês, aparenta ser contraditória, mas, na prática, os exemplos a esclarecem, à mingua de não saber como de outra forma exprimi-la.
2 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Amor se aprende amando. Poesia de convívio e humor. Poema "Alceu, Radiante Espelho". 24ª ed. São Paulo: Editora Record, 2001. p. 78-79.
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos