Não matarás
Há muitos anos, na verdade, na minha remota juventude, alguns dos mandamentos alinhavados por Deus e entregues a Moisés pareciam-me possuir gradações diversas, embora meu pai insistisse que todos detinham iguais valores e, se acaso qualquer deles viesse a ser violado, o seu infrator seria conduzido para os mais submersos rincões do Inferno.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Atualizado em 5 de janeiro de 2011 11:55
Não matarás
Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva*
Há muitos anos, na verdade, na minha remota juventude, alguns dos mandamentos alinhavados por Deus e entregues a Moisés pareciam-me possuir gradações diversas, embora meu pai insistisse que todos detinham iguais valores e, se acaso qualquer deles viesse a ser violado, o seu infrator seria conduzido para os mais submersos rincões do Inferno.
Ainda assim, mesmo no calor das discussões familiares, não havia divergências quanto ao sexto mandamento. A supressão da vida provocava entre todos nós a mais profunda indignação. A precipitação injustificada do fim, deliberadamente promovida por quem quer que seja não estaria sujeita a perdão. Eis que transcorrido meio século, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro deseja instituir benefícios salariais aos seus representantes que se abstiverem de cometer assassinato.
Mesmo com o recurso de palavras adocicadas, atenuantes e sob o cobertor do suposto tecnicismo burocrático, referida entidade não consegue disfarçar o seu propósito. Assim, conquanto se valha de expressões do tipo: "redução da letalidade violenta", "redução dos autos de resistência", "mudança de metodologia" a finalidade é uma só: impedir por meio de prêmios em dinheiro, os homicídios dolosos, os latrocínios e as lesões corporais seguidas de morte, praticadas por policiais de forma recorrente no Estado.
Trata-se mais ou menos dos meios utilizados no Velho Oeste através de cartazes para criminosos. Isto é, "procura-se vivo ou morto com a recompensa de alguns milhares de dólares". A Secretaria de Segurança do Rio inovou; "procura-se vivo ou morto, mas com a recompensa de R$ 3.000,00 para o que for preso vivo e R$ 2.000,00 para o que for executado".
Mencionada situação novamente traz de volta velhas lembranças. Naquele tempo, éramos, eu e meus colegas, recompensados com doces e sorvetes se porventura fizéssemos pouca bagunça na casa de nossos avós ou na de vizinhos não tão próximos. Agora, os doces e sorvetes foram substituídos por majoração salarial, os colegas tornaram-se policiais, e a bagunça consiste em crimes contra a vida.
Não houve, para minha surpresa, nenhuma demonstração de perplexidade pelas organizações não governamentais, jornalistas, magistrados e afins.
Muito pelo contrário, o Diretor da ONG Rio de Paz, Antonio Carlos Costa classificou como um avanço a criação do prêmio para a redução da "letalidade violenta".
A Constituição (clique aqui), para não mencionar o Código Penal (clique aqui), foi inteiramente ignorada. Os princípios esculpidos no artigo 5º e seus incisos sequer mereceram atenção, notadamente aquele assegurado no caput: "...garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida...".
Tudo se esqueceu, tudo se colocou de lado, todos os mínimos resíduos de conceitos milenares duramente alcançados pela humanidade foram jogados no esgoto, mas em nome de uma boa causa, sustentam os seus autores, em defesa da redução da criminalidade perpetrada pelos agentes de segurança do Estado.
O argumento de que a realidade impõe a medida extrema não é satisfatório e só convence aos oportunistas sem imaginação.
Não há substituição sensata, sequer razoável, que tenha o condão de alterar o dever compulsório pelo direito promíscuo.
A vida não necessita de cínicas e vis compensações alicerçadas em moedas, mas de respeito, de feroz respeito, de inflexível respeito, principalmente pelas autoridades públicas.
"Não matarás" não é apenas um mandamento, mas uma exigência intrínseca do gênero humano, destinada a ser cumprida por todos os moradores deste planeta e sem direito a bonificação..
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*Advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados
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