Metas de inflação: A influência da Selic sobre a propensão ao consumo é nenhuma
O curso da inflação no Brasil tem muito mais afinidade com a população, emprego, câmbio, indexação, salários, tributos, commodities, emissão de moeda, expansão do crédito e ciclos econômicos, do que com a política de juros do BC.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Atualizado em 15 de dezembro de 2010 16:55
Metas de inflação: A influência da Selic sobre a propensão ao consumo é nenhuma
Sacha Calmon*
Conquanto não formado em economia, lecionei no passado a disciplina economia política na PUC Minas e, desde então, tenho lido a respeito. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, discordei da âncora cambial gerada no Consenso de Washington. Navio algum fica ancorado o tempo todo, deve navegar. No segundo, depois do barco fazer água, FHC desancorou a economia, adotou o câmbio flutuante, a independência do BC, as metas de inflação e a política de superávits primários, mantidos integralmente nos oitos anos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, diga-se de passagem, assim como as privatizações. Desde então, tenho duvidado, no ambiente brasileiro, da política monetária por trás da técnica das metas de inflação, pela instrumentalização dos juros primários fixados pelo Copom, do BC. Essa política tem pressupostos que o Brasil não tem. Aqui o fosso entre o juro primário (Selic) e os juros secundários cobrados das pessoas físicas e jurídicas (cartão de crédito, capital de giro, vendas a prazo, crédito pessoal etc.) são brutais, ao contrário dos países que utilizam as metas prefixadas. Aqui para conter a demanda surtem efeitos: entrada maior, menor número de prestações, aperto no crédito. Nada mais!
A influência da Selic sobre a propensão ao consumo é nenhuma. Para uma Selic de 10%, os juros no cartão de crédito estão em 178% ao ano. A propensão para gastar, portanto, não é sequer arranhada pelo aumento da Selic. Esta apenas remunera os rentistas, detentores de capital disponível para ganhar dinheiro e onera o serviço da dívida. Basta dizer que é o maior gasto da República (disparado na frente): são R$ 192 bilhões em 2010. Os aumentos automáticos dos preços ditos administrados (luz, água, saneamento, telefonia, ônibus, pedágios, planos de saúde, salários, contratos diversos, mensalidades escolares etc.) geram impactos inflacionários brutais, banalizando a taxa Selic. Corte-se a indexação. A carga tributária sobre bens e serviços vai na garupa da indexação e ainda é corrigida pela Selic. É o fim da picada acreditar que os juros primários sejam a principal arma do BC, logo a mais fraca.
O cerne da política de metas de inflação assenta-se em quatro condições: 1) não estar a economia que a pratica sujeitada a índices de correção monetária da moeda. O Brasil está. Anualmente, e até diariamente, milhares de obrigações são corrigidas (Selic diária), fomentando a chamada inflação pré-contratada ou inercial (carry over); 2) estar a apuração da inflação sujeitada a um núcleo duro e a fatores sazonais, tais como fenômenos climáticos, entressafras e preços voláteis, como o do petróleo. Entre nós essa distinção inexiste, daí, às vezes, a imprensa noticiar que o vilão da inflação em dado mês foi o feijão ou os farináceos; 3) haver uma técnica sofisticada de medição do curso inflacionário para sopesar os influxos aleatórios no cálculo correto da inflação. Nós medimos com a mesma intensidade o preço do corte de cabelo, de um sapato e do petróleo. Não é assim nos Estados Unidos; 4) existir uma sociedade que tenha um poder de compra, de poupança e de investimento o mais homogêneo possível. Não é o nosso caso, em que apenas 15% da população tem condição de poupar, ou seja, optar por consumir ou investir, objeto primacial do regime de metas de inflação com base na política de juros primários (se há pressão de consumo aumentam-se os juros primários, puxando os consumidores para as aplicações financeiras; se o consumo está deprimido, a gerar recessão econômica, caem os juros até zero para que as pessoas passem a consumir, inexistentes lucros nas aplicações financeiras).
A teoria é absolutamente equivocada, mas no Brasil virou dogma que se não discute, a bem dos rentistas e seus inocentes úteis. O curso da inflação no Brasil tem muito mais afinidade com a população, emprego, câmbio, indexação, salários, tributos, commodities, emissão de moeda, expansão do crédito e ciclos econômicos, do que com a política de juros do BC. O rei está nu e ninguém vê, menos Antônio Machado, na sua coluna no EM. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, quer ponderar alimentos, sazonalidades e petróleo do cálculo inflacionário. Está certíssimo. A presidente eleita, Dilma Rousseff, quer juro real de 2% no fim do seu mandato (taxa Selic de xis menos inflação de ipsolone, igual a juro primário real de 2%). Está corretíssima. Não querem manipular índices, mas adequar a medição da inflação às circunstâncias do país. O que me deixa perplexo é continuarmos com a correção monetária da moeda e dos ativos, política heterodoxa adotada nos tempos da hiperinflação, por natureza temporária. Meta prefixada de inflação e correção monetária são incompatíveis. Parece que a lucidez está voltando aos poucos a este país de enganados. Sursum corda.
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*Advogado tributarista, professor titular de Direito Tributário da UFRJ, coordenador do curso de especialização em direito tributário das Faculdades Milton Campos e sócio do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados
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