O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber melhorar
No Senado, o relatório recentemente apresentado do projeto do novo CPC resolveu inovar e, surpreendentemente, acolheu alguns clamores que ecoaram e encampou, como procedimento especial, a disciplina da "ação de dissolução parcial de sociedade". Mas, o que parece uma inovação, na verdade, reinventa a roda.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Atualizado em 8 de dezembro de 2010 12:53
O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber melhorar
Paulo Sérgio Restiffe*
O caranguejo é o único bicho que anda para trás. Essa afirmação, adequada ou não, do ponto de vista biológico, não importa, é certo, todavia, que ela traz à luz um conceito bastante óbvio: evolução é progredir, transformar; ou, em outras palavras, ir além do ponto em que se está!
No Senado, o Relatório recentemente apresentado do Projeto do Novo CPC resolveu inovar e, surpreendentemente, acolheu alguns clamores que ecoaram e encampou, como procedimento especial, a disciplina da "ação de dissolução parcial de sociedade".
Até aí tudo bem, pois se estaria, em tese, inovando, na medida em que se passa a disciplinar na legislação algo que ela nunca havia tratado (lembrar que o CPC de 1939 - clique aqui, mantido nessa parte pelo CPC de 1973 - clique aqui, tratava da dissolução total de sociedade). Isso, ainda que se aceitasse correto - mas não é -, parece ser muito pouco e, no mínimo, nada tem de técnico ou prático nem de acadêmico que faça por merecer a qualidade de novo.
Tem-se a impressão - nunca é demais lembrar que a lei não é feita para os profissionais do Direito nem os processos são a eles dirigidos, mas sim aos jurisdicionados!!! - que antes desse Relatório do Senado, no campo das "brigas" societárias, como o são as ações de dissolução parcial, tudo era o caos; mas, agora, com essa "novidade", fez-se a luz! Puxa! Sugere-se a quem tenha essa percepção que a re-pense, pois, até aqui, nada mais se está fazendo do que re-inventar a roda.
Observe-se que, na atualidade, o procedimento de dissolução parcial de sociedade tem três fases distintas e bem claras: (a) definição da causa de dissolução (fase de conhecimento), em que pode haver ampla dialética entre as partes sobre as causas e os motivos dessa "briga" (ou elas simplesmente se resolvem e já partem para a fase seguinte), (b) apuração de haveres (fase de liquidação), sendo essa a fase, do ponto de vista pragmático, a mais delicada e relevante, e (c) pagamento da participação societária do sócio que sai (fase de cumprimento de sentença). O leitor atento percebeu que, em síntese, se está falando do procedimento comum ordinário, como hoje (bem) previsto no CPC de 1973, em especial com as alterações havidas em 2005 e 2006, que adequaram as fases de liquidação e de execução de sentença (cumprimento de sentença) e sem os percalços ou artimanhas anteriores. Dessa forma, qualquer procedimento relativo à dissolução parcial de sociedade e que venha a fugir disso só pode fazê-lo para melhorar - e muito -, pois, manter o que já está ou piorar é o andar do caranguejo.
A regra projetada, entretanto, está curiosa.
Observa-se que a ação de dissolução parcial de sociedade passa a ser um procedimento especial. Ora, se é especial, obviamente, o é porque tem alguma especificidade ou particularidade em relação ao procedimento comum, distinção esta que justifica essa especialização, com perdão do pleonasmo. E onde estaria essa particularidade desse novel procedimento para "ação de dissolução parcial de sociedade"? Não se sabe.
Veja-se que, conforme o art. 588, caput, "os sócios e a sociedade serão citados para, no prazo de quinze dias, concordarem com o pedido ou apresentarem contestação". Ok: citação e 15 dias para contestação. Onde está a distinção com o procedimento comum ordinário? Isso fica mais legal ainda diante da redação do art. 589, § 2.º, que diz: "havendo contestação, observar-se-á o procedimento comum". Ou seja, tem olho de porco, cabeça de porco, orelha de porco, focinho de porco, mas não é porco? Que é? Um ornitorrinco? Data venia...
Veja-se também que, conforme o art. 587, "o juiz determinará à sociedade ou aos sócios que nela permanecerem que depositem em juízo a parte incontroversa dos haveres devidos". Ora, a questão parece que já está tratada, atualmente, pelo art. 273, § 6.º, do CPC ("A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso"). Desse modo, essa previsão de tutela de emergência, já há um bom tempo, não é mais característica para distinguir um procedimento comum do especial.
Realmente, não se verifica o ponto que mereça ser tratada essa ação como um procedimento especial distinto daquele comum. Ousem o Relatório ou os seus artífices a fazê-lo.
Há outros pontos bastante curiosos no Projeto. Bem curiosos.
Um desses pontos curiosos é o que estabelece que a coisa julgada alcança a sociedade, ainda que ela não tenha sido citada (art. 588, § 1.º). Isso é brincadeira, não é? Só pode ser.
Na realidade, há a necessidade de a sociedade ser sempre parte na demanda de dissolução. A jurisprudência está careca de afirmar isso. Porém, o Projeto, não se sabe o motivo, descurou desse aspecto. E aí? Mais 20 ou 30 anos de discussões? Por que já não cuida disso logo e encerra essa discussão? É importante ter em mente que, embora haja o fim da relação contratual entre os sócios, não importa o motivo, o pagamento dos haveres do sócio que sai é realizado pela sociedade, pois são os seus haveres nela que lhe são granjeados, daí a necessidade de sua participação na demanda. E isso decorre do princípio elementar de Direito Societário, mas que é olvidado, de que a integralização dos recursos enseja a distinção dos sócios e da sociedade. Ficção ou não, isso é fato e é jurídico, somente podendo ser afastado nos casos de desconsideração da personalidade jurídica. Deveria, portanto, restar claro que a sociedade intervém como litisconsorte necessário; e isso é imperativo.
É por esse mesmo motivo que não se justifica o § 3.º do art. 592 ("Os honorários do perito nomeado serão arcados pelos sócios, na proporção de sua participação no capital social da sociedade"). Cabe à sociedade arcar com esses custos e não aos sócios. Mas, sem dúvida nenhuma, esse será mais um ponto de discórdia - discórdia esta que o Projeto apenas suscita, mas nunca pacifica, deixando de cumprir sua função social, inclusive - e mais incidentes e respectivos recursos.
E o que falar do art. 588, § 2.º, segundo o qual "a sociedade poderá formular pedido de indenização compensável com o valor dos haveres a apurar". Legal: a sociedade, parte em sentido processual (só pode ser), portanto, está habilitada a formular pedido contraposto, que seria a futura antiga reconvenção. Ok. Na prática como fica? Os sócios que tiveram sua relação esgarçada e não chegam a um consenso quanto aos haveres, seja na forma de apuração seja no modo do pagamento realizar-se, por exemplo, como ficam? Passo seguinte: ajuizamento da ação de dissolução parcial. Vêm os sócios remanescentes e, como forma de reduzir ou criar um meio de barganha dos haveres do sócio que sai, propõem, em nome da empresa, essa ação de indenização. Para quê? Compensar os haveres? É isso mesmo? A sociedade, encapuzada pelos sócios remanescentes, passa a demandar em face do antigo sócio? Que coisa bizarra. E sobre essa compensação? Será que a compensação, como forma de pagamento, aplica-se? Para ajudar na conclusão, eis o que dispõe o art. 369, do Código Civil: "A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis". Onde está a liquidez do pedido de indenização? Ah! Vai ser liquidado? Alguém faltou na aula de Direito Civil.
O art. 591 projetado, cuidando de regra de direito material, pois relativa à definição da data de resolução da sociedade, ou melhor, da resolução do contrato social entre os sócios, estaria mais adequado no Código Civil.
E ainda sobre esse mesmo dispositivo (591): no inciso II, ele fala que a data da resolução da sociedade será, na retirada imotivada (sabe-se lá o que se teve em mente ao escrever-se isso), o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante. Ou seja, sabendo que as relações estão esgarçadas, os sócios remanescentes terão mais 60 dias para fazer e acontecer com a escrituração contábil nesse período. Ou alguém duvida que isso possa acontecer? Se duvida, sugere-se retirar o óculos de Poliana. A solução aventada no Projeto é pouco feliz, porque joga mais um ônus no colo do sócio que sai, que, de regra, é o minoritário. Na verdade, parece que o Projeto tem dois pés esquerdos, porque, desde que entrou em campo, não teve muita sorte. Não ao menos em relação à dissolução societária.
E o que falar então da bastante discutível constitucionalidade dessa regra projetada? O art. 5.º, XVII, da CF/88, assegura o livre direito de associação e também, obviamente, o de dissociação a qualquer tempo. Vem esse dispositivo (art. 591, II, do Projeto de novo CPC) e limita essa garantia constitucional? É ululante a sua inconstitucionalidade.
É tão raso o Projeto no que concerne às questões de dissolução societária parcial que se esquece de mencionar sobre uma situação, infelizmente, usual, que se refere à perda superveniente de capacidade do sócio. E aí? Que diz o Projeto sobre isso? Nada! Silêncio sepulcral.
E seria oportuno já estabelecer quando se dá a alteração do contrato social em caso de dissolução: só com o pagamento dos haveres ou por acordo anterior? O Projeto é omisso sobre isso, embora não tenha contido sua ansiedade para adentrar em questões materiais. Curioso... bem curioso!
E sobre o vernáculo? Assaltaram a gramática, diria a música dos Paralamas... A insegurança do Projeto nesse aspecto é latente. Ou, no mínimo, faltaram criatividade e colorido.
Veja-se o exemplo a seguir. O art. 595 está redigido da seguinte maneira: "Apurados os haveres do sócio retirante, serão os mesmos pagos conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do artigo 1.031 do Código Civil". Em bom vernáculo: apuraram-se os haveres e o sócio recebe como pagamento "os mesmos". Essa não é, todavia, a moeda de curso forçado no Brasil. "Mesmo" com função pronominal é erro grave, comum, mas ainda assim erro e grave.
Questiona-se - e duvida-se - se, no caso em testilha, acerca da regulamentação processual da ação de dissolução parcial de sociedade, houve a devida, merecida e bastante necessária reflexão das possíveis e prováveis interferências práticas que a redação projetada terá no atual Código Civil, que já cuida da resolução do contrato social em relação a um ou mais sócios, ou seja, da dissolução parcial de sociedade? Se isso não foi pensado, deveria sê-lo; e com urgência!
Há muitos outros pontos e aspectos que poderiam ser abordados, mas isso será realizado no local e na forma apropriados, mas que não aqui, cujo intuito, principal, foi o de fazer um alerta e colocar luzes vermelhas - bem vermelhas - nesse ponto do Projeto do Novo CPC.
O Projeto do Novo CPC, ao menos na parte que resolveu disciplinar a ação de dissolução parcial de sociedade, deveria fazer como qualquer bicho: andar para frente, nunca para o lado ou para trás...
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*Professor de Direito Comercial e Processo Civil em graduação e pós-graduação. Advogado do escritório Contrucci & Restiffe - Sociedade de Advogados
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