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A auditoria jurídica como atividade multidisciplinar e a utilização de tecnologias modernas

A auditoria jurídica nem sempre prescinde de outros ramos do conhecimento para operacionalizar e para cumprir sua missão. Serve para a prática redução de riscos, cujos benefícios se estendem à inibição ou à redução das ações equivocadas, errôneas ou mal intencionadas dos agentes.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Atualizado em 23 de novembro de 2010 14:47


A auditoria jurídica como atividade multidisciplinar e a utilização de tecnologias modernas

Jayme Vita Roso*

É uma honra que dignifica a advocacia brasileira o convite que me fez esta prestigiosa Universidade, voltada à Tecnologia, com um ramo que se ocupa das ciências humanas e sociais, aí se encaixando a Faculdade de Direito. Quando a notável advogada e professora Elsa Roca Salonen informou-me ser portadora do convite para eu discutir auditoria jurídica com o corpo discente, senti a responsabilidade aumentar, mesmo porque, já é uma afirmativa, a auditoria jurídica, na maioria das suas atividades, de fato, nem sempre prescinde de outros ramos do conhecimento para operacionalizar e para cumprir sua missão.

Duas vertentes se abrem para iniciar esta exposição: que é, para que serve e quem deve cumprir o trabalho da auditoria jurídica, a primeira; como compatibilizá-la com outros ramos do conhecimento humano, a fim de que alcance a sua função, a segunda.

Ante a tomada de posição necessária, sobretudo neste mundo, onde impera a regra e o comportamento do politicamente correto, iniciemos com uma ideia da auditoria jurídica.

A auditoria jurídica, levando em conta o modelo brasileiro que propõe, dentre as atividades privativas da advocacia "consultoria, assessoria e direções jurídicas", como prevê o seu Estatuto no artigo 1º, hoje, poderia ela estar catalogada dentre as direções jurídicas. No entanto, há nove anos, venho lutando, para que se agregue a esse mesmo artigo da lei como atividade privativa do advogado a auditoria jurídica.

Como eu defini a auditoria jurídica?

Conceituei-a como é trabalho que pode ser desempenhado unicamente por advogado no regular exercício da profissão, mediante contratação prévia e escrita, dentro dos cometimentos conferidos por lei, destinada a operar a revisão de processo de qualquer natureza ou proceder a avaliação de uma ou plúrimas situações concretas que lhes são apresentadas, no âmbito da advocacia, para emitir, concluído o trabalho, nas duas hipóteses, com observância dos princípios éticos e legais, parecer vinculante.

Esclareço que, quando escrevi múltiplas atividades ou processos, não me restringi unicamente aos litígios judiciais. A palavra processo é entendida no sentido genérico, que a sua própria etimologia se incumbe de explicar.

Diziam, em latim, sem razão, os mestres escolásticos nos seminários de filosofia que: "Toda definição é perigosa". A tarefa de quem se propõe a definir um ramo de conhecimento ou um conceito ou uma teoria, sempre é discutível academicamente, sobretudo quando proposta ou formulada ou divulgada. Mas pouco importa, pois o conhecimento de um novo ramo sempre exige a sua conceituação para ser entendido e quiçá estudado, pesquisado e desenvolvido cientificamente.

Para a concepção da auditoria jurídica, vali-me das lições do ilustre professor da London Economic School, Michael Power1, que vivemos uma época de explosão de auditoria, em razão de problemas de dúvida, conflito, falta de confiança e perigos de diversas matizes. Hoje vigora o mote que comprova a grande dificuldade dos tempos modernos com a perda da confiança: never trust, always check. E, nessa indesejável situação, as empresas passaram a ser auditadas, tanto as públicas quanto as privadas, para diversas finalidades (por exemplo, quanto à administração, o seu valor monetário, a sua tecnologia, suas relações com o meio ambiente). É muito curioso que esse grande expert internacional, criador da expressão acima lembrada de que vivemos numa sociedade auditada, não cuidou da auditoria jurídica. Mais curioso ainda porque a sociedade auditada na verdade é uma sociedade "auditados" muito mais do que auditores. A auditoria jurídica serve para a prática redução de riscos, cujos benefícios se estendem à inibição ou à redução das ações equivocadas, errôneas ou mal intencionadas dos agentes.

Qual a relação da auditoria jurídica com a tecnologia? Poderia dizer ainda, qual a relação do auditor jurídico com os tecnólogos das diversas áreas, que podem ser convocados para auxiliá-lo na tarefa que lhe foi incumbida por contrato de prestação de serviço profissional?

Mas o conhecimento científico só pode sair da estagnação se existir uma proposta e a necessária discussão sobre ela. Enfatizo que ambas devem estar assentadas em a necessária probidade intelectual na elaboração do texto e, para criticar, não basta ter conhecimento superficial ou má vontade com o proponente da definição ou até inveja, pecado capital que nunca encontrou antídoto nos meios intelectuais.

Nos meados do século XIX, em Portugal, a palavra tecnologia era conhecida e usada nos meios científicos. Encontrei esta singela definição: "Tratado das artes. Conjunto dos processos relativos a uma ou mais artes"2.

Curiosamente - é tema para a reflexão -, a mesma palavra, com o forte desenvolvimento do século XX, passou a ser usada mais no plural, porque, a meu juízo, sempre é relacionado o conhecimento estudado com outro que se aproxime ou mantenha dependência ou se apresente como independente, mas passe a ter interesse direto ou indireto, mediato ou imediato. É o que ocorre com a navegação, com a construção de barcos, com a destinação das embarcações: existe nesse campo uma série numerosa de finalidades, todas voltadas ao barco, sejam quais forem os seus tamanhos. Um iate de 100 pés tem singularidades, próximas ou remotas, com um barco de transporte fluvial de passageiros.

Retomando, adoto o conceito pragmático de tecnologia(s), que se encontra num clássico dicionário inglês: "O estudo ou uso das artes mecânicas e ciências aplicadas", acrescentando seus autores à explicação do uso do plural: "estes propósitos coletivamente"3.

Mal entendidas, as tecnologias passaram a substituir a pessoa humana como razão de ser de sua existência, tanto é verdade que o celebrado ficcionista inglês Arthur C. Clarke (1917-2008), com precisa afirmativa, adverte: "Qualquer tecnologia suficientemente desenvolvida é indistinguível da mágica"4. Por isso, o renovado físico Richard Phillips Feyman (1918-88), como sempre destemido nas suas atitudes, pronunciando-se sobre o desastre da espaçonave Challenger, afirmou: "Para uma bem sucedida tecnologia, a realidade deve ter precedência sobre as relações públicas, porque a natureza não pode ser tomada como idiota"5.

Em suma, as tecnologias são, existem, para ajudar o ser humano a buscar e encontrar a felicidade6.

Pergunto: "A auditoria jurídica não teria o mesmo fim?".

Se o advogado é a causa eficiente da auditoria jurídica, ele se vincula aos princípios ontológicos da profissão, quando pretende exercê-la com ética e com dignidade, porque deve amar o que faz. E, quem ama, compromete-se e se insere no processo da vida, tendo em conta que, no pós-moderno, não existe verdadeiramente previsão7.

A auditoria jurídica não se confunde com nenhuma outra da sua espécie, porque o seu objeto só pode ser estudado e praticado pelo advogado como uma das suas inúmeras tarefas. Nenhuma outra profissão tem, no mundo contemporâneo, tantas tarefas, tantas obrigações e tantos compromissos consigo mesma, com a sociedade e com a humanidade8.

O cinismo relativista, típico desta época não pode fazer parte do comportamento do auditor jurídico seja na sua vida privada como na pública.

Se o auditor jurídico fosse convocado a apreciar a questão do derramamento de petróleo no Golfo pela British Petroleum ou, por outro lado, as causas e efeitos jurídicos, mas com repercussões sérias e graves às vidas dos mineiros chilenos em Atacama, como procederia? Ou qual seria o mais adequado comportamento, para o evento?

Em ambas situações, iria defrontar-se com casos ocorridos (faits accomplis). Ingressando no tempo em que os infortúnios ocorriam, porque não se imaginava quando o vazamento cessaria ou se os mineiros sobreviveriam, não há a dúvida de que os atuais tempos aí estão na colheita dos desafios da época em que vivemos, sem navegarmos no passado que não é mais o mesmo, ou acariciar um futuro que ainda não é e, comumente, não se sabe como será.

A práxis, nos casos, obrigaria o auditor jurídico ser cauteloso, aguardando todos os relatórios técnicos referentes aos eventos e, então, avaliá-los, solicitar esclarecimentos de quem os confeccionou, de testemunhos e dos departamentos das empresas, encarregados da segurança, como e quando procedida a revisão de garantias dos equipamentos instalados, da sua eficácia e da eficiência e da obsolescência, no momento de cada evento letal. Ele não questionará qual é a vida dos mineiros, como vivem os povos à margem das águas poluídas e se tudo estava de acordo com os manuais antes dos eventos (aliás, como nos dois casos as empresas publicitaram).

Valendo-se dos relatórios técnicos, por confiáveis fossem, poderiam os auditores jurídicos, se seus conhecimentos dos fatos levassem a colocar em dúvida as peças técnicas, valer-se de outros experts, tantos quantos fossem necessários ao seu convencimento final, que iriam expressar no relatório. Para os dois casos, o valor imaterial das perdidas vidas aquáticas e do meio ambiente lesionados, se colocados em paralelo, com os valores das vidas dos mineiros lembram em número inferior daquelas populações atingidas não seriam os mesmos, aos do campo dos Direitos Humanos, pela relevância da tutela garantidora do direito à vida da pessoa humana.

Pulsaria a temperatura do auditor jurídico, frente às vidas perdidas ou não, embora seriamente ameaçadas, porque elas transcendem qualquer valor material, sempre que se tem em conta a iniludível força de outro instrumento de medida imaginável, que suplante a dignidade da vida humana.

Em suma, concluído o trabalho de auditoria para o qual foi contratado, valendo-se ou não de experts técnicos, envolvidos em qualquer uma das artes tecnológicas, o advogado, como proponho, apresenta o relatório final e tecnicamente é responsável por ele9.

Seria como celebrar a liturgia do profissionalismo ético sem temor de perder o cliente, uma vez que o auditor jurídico não entra em cisma consigo mesmo, quando cumpre com sua tarefa, porque deverá estar comprometido com a profissão e ciente do jogo de interesses que vai ferir, quando escrever o relatório com que conclui o seu trabalho.

Para concluir, recordando, como sempre, o inolvidável Albert Camus: Il s'agit de vivre la lucidité dans um monde où la dispersion est la règle.

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1 POWER, Michael. Professor of Accounting. Research Theme Director of the ESRC Centre for the Analysis of Risk and Regulation (CARR)| at LSE. Educated at St Edmund Hall, Oxford and at Girton College Cambridge; a Fellow of the Institute of Chartered Accountants in England and Wales (ICAEW) and an Associate member of the UK Chartered Institute of Taxation. Visiting fellow at the Institute for Advanced Study, Berlin and at All Souls College, Oxford (2000). (clique aqui)

2 COELHO, F. Adolpho. Diccionario Manual Etymologico da Lingua Portugueza. P. Plantier - Editor, Lisboa, 1890. P. 1152, verbete technologia.

3 Technology, in The Oxford English Reference Dictionary. Second edition, edited by Judy Pearsall and Bill Trumble. Oxford University Press, 2001.

4 CLARKE, Arthur. "Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic". Em Oxford Dictionary of Quotations, seventh edition, edited by Elyzabeth Knowles. Oxford University Press, 2009.

5 FEYNMAN Richard Phillips. "For a successful technology, reality must take precedence over public relations, for nature cannot be fooled". Em Oxford Dictionary of Quotations, seventh edition, edited by Elyzabeth Knowles. Oxford University Press, 2009.

6 FEENBERG, Andrew. Transforming technology - a critical theory revisited. Oxford University Press, 2002, 218 páginas. Nessa obra sustenta o autor que a moderna tecnologia é muito mais do que uma ferramenta neutra, pois ela emoldura a nossa civilização e dá forma ao nosso modo de vida. Os críticos sociais contemporâneos reclamam que devemos escolher entre esse modo de vida e os valores humanos.
VANDERBURG, Willem. Living in the labyrinth of technology. University of Toronto Press, 2005, 539 páginas. O autor dessa obra, discípulo de Jacques Ellul (1912-1994), renomado filósofo, professor de direito, anarquista cristão e sociólogo. Preocupou-se profundamente nos seus trabalhos, chegando a quase ser descrente de que as tecnologias seriam mais benéficas ao ser humano do que as suas vicissitudes. Com esse mesmo espírito, como anota Vanderburg: "À parte dos seus estudos sobre a técnica, Ellul pesquisou a vida humana numa sociedade de massa com a democracia transformada pela técnica em uma ilusão, com os valores ocidentais traídos ao serviço da técnica, nossa posse de bens por meio do secular transformado em sagrado, mitos e religiões políticas seculares construídas por ele como também os lugares comuns, com uma autópsia da revolução marxista e com todos os contornos de uma mutação genuína" (pág. 530).

7 MELUZZI, Alessandro. Ho visto e ho creduto, Piemme, Milão, 2010. Pág. 87-91. O psiquiatra italiano Alessandro Meluzzi, com raro brilho, escreve: "Dizer ser 'pós-moderno' é como dizer 'estar com os pés na terra', ou 'estar com a testa voltada ao alto e os pés voltados ao chão' ou ainda 'debaixo da chuva ou debaixo do sol'. É um dado objetivo da época em que vivemos".

8 A função dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil é, amplamente, atuar "em defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas" (Artigo 44, I).

9 Como escrevi, a tarefa do advogado auditor é especialíssima e deve ser rigorosamente norteada pelos princípios da ética profissional. Além disso, toda e qualquer censura, a trabalho executado por outro colega, não pode sequer resvalar do obrigatório tratamento polido, nem o dever de urbanidade e, muito menos, ser motivada por caprichos e melindrices ou fazer verberações desavisadas. Em suma, o advogado, seguindo as palavras de Elias Farah, deve funcionar na advocacia, assim como na auditoria jurídica, com prudência e serenidade.

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*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica

 

 

 

 

 

 

 

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