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Em defesa da vida, o aborto

No Brasil uma mulher faz aborto a cada 33 segundos e a prática insegura mata uma delas a cada dois dias (O Globo de 10/10/10). Muito raramente morre, por essa causa, uma mulher rica. As mortes, aqui, atingem quase 100% as mulheres pobres. 71% dos entrevistados pelo Datafolha querem que a lei continue como está.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Atualizado em 16 de novembro de 2010 14:44


Em defesa da vida, o aborto

Luiz Flávio Gomes*

No Brasil uma mulher faz aborto a cada 33 segundos e a prática insegura mata uma delas a cada dois dias (O Globo de 10/10/10, p. 3). Muito raramente morre, por essa causa, uma mulher rica. As mortes, aqui, atingem quase 100% as mulheres pobres. 71% dos entrevistados pelo Datafolha querem que a lei continue como está (Folha de S. Paulo de 11/10/10, p. A8). 79,2% dos juízes entrevistados pela Unicamp optaram pelo aborto diante de uma gravidez indesejada. 74% das juízas entrevistadas já fizeram aborto (Folha de S. Paulo de 10/10/10, p. C6). Milhões de abortos são feitos diariamente no mundo. Milhares de pessoas estão vivendo esse drama neste momento. Abortar ou não abortar?

O dramático tema do aborto está agora na pauta política. A pobreza do debate político só perde para a indigência generalizada do seu povo. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. A vida é uma premissa indiscutível. Preservá-la constitui nosso primeiro dever. Mas existem muitas situações extraordinárias em que ela se torna insustentável. A vida já não pode ser vista sob dogmas absolutos. A chave jurídica da questão é a seguinte: "ninguém pode dela ser privado arbitrariamente" (art. 4º, da Convenção Americana de Direitos Humanos). Isso significa que, no Brasil, o debate sobre o aborto só pode ser travado dentro da equação regra-exceções.

Como regra o aborto é proibido. Mas em hipóteses excepcionais pode (e deve) ser permitido. O CP brasileiro (já) prevê duas situações: para salvar a vida da gestante e em caso de estupro (caso a mulher queira abortar). Não seria uma vida digna a de quem tivesse que suportar uma gravidez resultante de estupro. Os ricos e esclarecidos, pelo menos, jamais concordariam com essa gravidez. Aos pobres devemos reconhecer o mesmo direito.

Como se vê, para respeitar a vida (ou a vida digna) é que nosso Código permite o aborto. É fácil notar que nas duas situações legais citadas não existe arbitrariedade na morte (do feto). O nascituro (o feto) tem que ser respeitado. Mas a vida (ou vida digna) da mulher grávida também. Em regra deve preponderar a vida do nascituro. Mas excepcionalmente a equação se inverte. Por quê? Porque o direito é razoabilidade, prudência e equilíbrio.

A partir das causas permissivas contidas na lei penal brasileira temos que ir construindo o direito e descobrindo quais seriam outras situações excepcionais de licitude do aborto. Esperar que o Congresso Nacional faça isso é uma ilusão. Quando se mescla política com religião jamais há consenso (ou mesmo a construção de uma maioria qualificada). É pelo caminho da jurisdicionalização - dos juízes - que estamos alcançando progresso nessa área. Por exemplo, no caso do aborto anencefálico (quando devida e medicamente comprovada a inviabilidade da vida do feto). Também nessa situação não existe morte arbitrária ou intolerável (logo, não há que se falar em ilicitude, muito menos penal).

Não existe crime quando o resultado - a morte - não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). No filme "Morte e Vida Severina" (que recomendo) mostra-se, com clareza, o quanto que a tentativa de preservação a todo custo (religiosa) de um feto anencefálico inviável afeta a dignidade humana. Sem desprezo à vida, sem indiferença frente à vida. Em casos excepcionais não há como lutar contra o direito. Não se trata de tirar a vida de pessoas inocentes e indefesas, sim, de respeitar a vida digna de todas as pessoas (incluindo-se a da mulher grávida).

A questão do aborto anencefálico ainda está pendente de decisão no STF, sendo que no último informativo a respeito da matéria (Informativo 385) noticiou-se o entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence, que refutou o fundamento de que a ADPF 54 (clique aqui) se reduziria a requerer a inclusão de uma terceira alínea no artigo 128 do CP (clique aqui), por considerar que a pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos princípios constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade, mas a atipicidade do fato. Se o fato não é típico, tampouco é ilícito. Portanto, não há crime.

Esse entendimento revela equilíbrio e sensatez. Por força da teoria constitucionalista do delito que adotamos não existe crime quando a morte não foi arbitrária. "O que a mulher traz no útero não é parte do seu corpo, mas um outro corpo, diverso do dela." Quem se perde nessas abstrações (absolutistas) que negam o óbvio ululante nunca consegue raciocinar de acordo com o direito, que se fundamenta na premissa de dar a cada um o que é seu (na devida proporção).

O nascituro tem seus direitos, que devem ser respeitados. A mulher grávida também tem seus direitos. Havendo confronto, cabe à Justiça decidir qual prepondera. Enquanto não revelador de uma arbitrariedade, o aborto está em consonância com os objetivos do direito justo e sensato. É dentro dessa margem que devemos estender a discussão para admitir o aborto em situações de grave afetação da saúde física ou mental da mulher.

Diga-se a mesma coisa da pílula do dia seguinte (ou dos 5 dias seguintes). A vida do nascituro está penalmente protegida a partir do momento em que se dá a chamada nidação, que acontece mais ou menos no décimo-quarto dia após a fecundação. Antes disso não existe vida a ser juridicamente protegida. Logo, mesmo que o produto da fecundação seja eliminado, não há que se falar em crime (sobre isso, pelo menos, já não existe discussão). Mais uma vez, sem arbitrariedade contra a vida não há ilicitude.

Se a mulher, por razões religiosas ou éticas, se nega a praticar o aborto permitido (em todas as situações que narramos), isso é algo que diz respeito exclusivamente ao seu foro íntimo. Se a sua decisão, no entanto, for em sentido contrário (pró-aborto), o direito, o Estado e a Justiça devem ser colocados à sua disposição, para amparar sua deliberação, sendo deplorável a postura metajurídica de alguns juízes (minoritários) que andam confundindo direito com religião. O processo de secularização (separação entre Igreja e Estado, Direito e Religião, Crime e Pecado) ainda não foi concluído, mas já é hora de pôr fim a tanta confusão. Direito é direito, religião é religião! Crime é crime, pecado é pecado!

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*Diretor Presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes







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