Mercado imobiliário e o Judiciário
Pedro Cortez
Fala-se de uma nova ordem jurídica, trazida pela Constituição Federal, por novos ordenamentos jurídicos onde se sobressaem o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
quinta-feira, 5 de maio de 2005
Atualizado em 28 de abril de 2005 08:53
Mercado imobiliário e o Judiciário
Onde mora o equilíbrio?
Pedro Cortez*
Quando falo nessa possibilidade de aplicação das cláusulas gerais na consecução do que é o justo, fico bastante angustiado porque este sonho ideal pode também se concretizar em pesadelo, perdendo-se o referencial da estabilidade jurídica. Devo dizer, no entanto, que essa angústia faz parte do nosso processo como um ser que basta em si mesmo, que reflete sobre si mesmo, em que há inerente a angústia sobre o porvir e, por conseguinte, também sobre a segurança jurídica. Estou angustiado e tenho duas possibilidades: ou procurar superar essa angústia, ou me acovardar, aceitando o cotidiano e as verdades existentes. Mas não é isso a que se propõe o sistema, quando existe uma Constituição com princípios fundamentais abertos, quando existem as cláusulas gerais do Código Civil, quando existe o Código de Defesa do Consumidor, permitindo, em cada caso, com a devida fundamentação, chegar-se a uma decisão diferente daquela obtida em caso semelhante. O que fazer, então?
Há um trabalho muito interessante de pesquisa, feito por Armando Castelar Pinheiro, divulgado pelo Ipea e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que as respostas às questões propostas desse naipe foram sistematizadas, obtendo-se algumas informações que merecem reflexão. Em dado momento, foi perguntado a magistrados o que fariam frente a determinadas questões: "Os contratos devem ser sempre respeitados, independentemente de suas repercussões sociais?" (primeira questão). E a segunda: "Se o juiz tem um papel social a cumprir, justificam-se decisões que violem o contrato?" A mostra revelou que, dos juízes federais com menos de 40 anos, em exercício nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e no Distrito federal, 78,8% deles afirmaram ter, efetivamente, um papel social a cumprir e que a busca da justiça social justificaria decisões que violassem os contratos. Se real ou não essa conclusão da amostragem, tenho para mim que devemos ter apenas duas certezas: a primeira, é que devemos utilizar os princípios jurídicos de forma balizada; e a segunda, é que casos semelhantes poderão ter decisões diferentes.
O que precisamos fazer, então? No início das nossas palestras, foi mencionada a enorme satisfação de o Poder Judiciário estar aqui presente com a sociedade; representada pela Ademi e por membros da atividade imobiliária, e que era o Poder Judiciário chegando à sociedade. Nós também, dentro da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e da sua Comissão da Indústria Imobiliária (CII), temos esta mesma preocupação, ou seja, de que a sociedade procure conhecer um pouco mais o Poder Judiciário. Esta reciprocidade de interesses é um fato real. A CBIC e a CII estão levantando dados e procurando desenvolver um projeto de pesquisa (empírica) jurídica, porque algumas situações não podem mais ser ignoradas - como a de haver um núcleo de decisões de proteção ao hipossuficiente, sempre reconhecido pelo Poder Judiciário. Não sei se é de 20%, 30%, 40% ou 50% do quanto foi recebido, o valor a ser devolvido nos casos de rescisão de contrato. Mas sei que isso existe e gostaria de saber até que ponto podemos trabalhar com esse fato contra posto ao núcleo de decisões de proteção ao hipossuficiente.
Outro fato: as decisões contrárias à indústria imobiliária, como um todo, têm uma repercussão muito maior do que aquelas que lhe são favoráveis. E essas decisões contrárias são utilizadas das para demonstrara instabilidade jurídica, o que serve de justificativa para o encarecimento dos juros, para o aumento da segregação e da seletividade no oferecimento do crédito. Será que isso é real? Será que isso acontece, efetivamente? Essa afirmação me dói um pouco, porque é jogar ao Poder Judiciário, por sua atividade jurisdicional, a responsabilidade de problemas muito maiores, como a questão da dívida social, da miseria, do salário não reajustado, além de muitos outros. Dizer que os Poder Judiciário, por sua decisões contrárias ao contrato, é o responsável pela instabilidade jurídica e pelos efeitos daí emergentes (encarecimento dos juros e maior da seletividade do crédito), não me agrada. Acho que toda atividade procura o seu melhor resultado e, provavelmente, quanto maiores os juros, melhor remuneração terá o meu capital. Então para mim, isso é perfeito; está no meu direito agir dessa forma. Mas talvez devamos mudar um pouco o enfoque e procurar dar responsabilidade efetiva desses juros altos, das dificuldades, a quem de direitos e não ao juiz. Quando ele verifica um contrato em que o comprador adquiriu por 10, amortizou 20 ainda deve 40, vai dizer o quê? Sem dúvida se sentirá como repositório de todas as dificuldades da nação! E na sua atividade judicante, procurará solucionar a demanda, utilizando-se dos princípios constitucionais e das cláusulas gerais a seu dispor, da melhor forma, minorando, no que puder, a carga do comprador inadimplente. Na ordem legislativa ou judicante, talvez a gente possa não resolver o dilema. Talvez devamos atuar de uma outra forma, procurar agir politicamente perante o Poder Executivo e Legislativo, exigindo reformas adequadas, exigindo atuações efetivas.
Outro aspecto: diz-se que a lei resolve tudo. Será que resolve mesmo? Tivemos o Decreto-Lei 70, já citado, a execução judicial reformulada, a hipotecária, temos o valor incontroverso estabelecido e a tutela antecipada no processo. Será que se resolvem os problemas de instabilidade jurídica dessa forma através de modificações legislativas que vão dizer agora, ao juiz, o que é valor incontroverso? Não sei se é esta a solução.
Acho que está faltando algo, acho que está faltando conhecimento maior do problema, uma reflexão maior sobre todas essas coisas. Talvez a miséria, a forme, a falta de dinheiro, a desigualdade social sejam o grande problema. Talvez a questão de a alienação fiduciária efetivar-se em 90 dias, ou em 100 dias, ou em um ano, não seja a questão crucial. Mas na verdade, seja ela qual for, qual o reflexo social disso? Será que os senhores, como eu - como todo o ser humano que reflete sobre sua existência -, não vão refletir também quando da execução da alienação fiduciária, sobre o que fazer com aquela família que reside no imóvel garantido, para onde irá após ser despejada?
Para terminar. Essa idéia de um projeto de pesquisa jurídica, experimental, que estamos desenvolvendo, tem por finalidade conhecer através das atividades dos incorporadores, construtores, e agentes financeiros qual a verdadeira realidade e separar o joio do trigo. A atividade imobiliária é séria e confiável. Não é da responsabilidade do incorporador aquilo que aconteceu em 91/92, quando uma atuação do Poder Executivo, absolutamente irresponsável, gerou a quebra do FGTS e o desiquilíbrio dos contratos. Não é da responsabilidade do incorporador aquela hipoteca constituída pela ENCOL, aceita pelos bancos, que ignorou a existência do empreendimento e dos condôminos, que ali estavam abrigados. Devemos conhecer um pouco mais a realidade para que, sobre ela, possamos refletir um pouco melhor.
Será que numa região, como o Rio Grande do Sul - onde há uma tradição do direito alternativo, onde a decisão social é mais efetiva -, será que, nesse Estado a seletividade do crédito, a dificuldade do crédito é maior? São constatações, de ordem experimental, que podemos ter para dizer ao Juiz, efetivamente: "Sua atuação resultou numa seletividade do crédito, num acréscimo de juros, mas de uma forma consciente" - o que eu ainda, até hoje, não sinto existir. Sei que, como advogado, uso a retórica; e todos nós, pela nossa de formação profissional, o fazemos. Mas acho que está na hora de trabalharmos um pouquinho melhor, com dados mais concretos, mas pausados, para chegarmos a uma consciência real do que está acontecendo e brigar com quem devemos, não jogando as decisões judiciais, por serem contrárias às nossas expectativas na aplicação da lei, a responsabilidade pela alegada instabilidade jurídica.
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* Advogado, especialista em direito imobiliário, membro do Conselho Jurídico do Secovi-SP e da Comissão da Indústria Imobiliária (CII) da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC).
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